ESPIRITUALIDADE E MÍSTICA

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em nov. 2023

Ao longo dos séculos, o ser humano sempre colocou para si questões sobre Deus: sua existência, seus atributos e sua natureza. Se Deus existe, Ele pode se manifestar aos indivíduos? Não há nenhuma razão ou impedimento para que isso não aconteça e, de fato, este fenômeno da experiência religiosa tem sido observada nas mais diferentes culturas, nas mais diferentes religiões e em diferentes épocas, dentro da qual podemos incluir o fenômeno conhecido como misticismo que pode ser entendido, de forma geral, como uma experiência de união do indivíduo com alguma força que ele considera divina e sagrada. Em sua análise da experiência mística, Velasco (2003) não deixa de ressaltar a dificuldade de encontrar um sentido único e universal para o conceito de mística, todavia, identifica alguns elementos que configuram uma tal experiência dentre os quais podemos destacar, precisamente, a ideia de uma união íntima com Deus como parte desta experiência.

 

Assim, pois, com a palavra “mística” nos referiremos, em termos todavia muito gerais e imprecisos, a experiências interiores, imediatas, fruitivas, que ocorrem em um nível de consciência que supera a que rege a experiência ordinária e objetiva, da união – qualquer que seja a forma com que se possa vivê-la – do sujeito com o todo, o universo, o absoluto, o divino, Deus ou o Espírito (VELASCO, 2003, p. 23, tradução nossa).

 

A experiência mística pode ser entendida ainda como uma “experiência radical do amor de Deus” (BINGEMER, 2020, p. 91). Trata-se de uma vivência concreta do ser humano, de percepção da presença divina, que se revela como uma presença que age amorosamente. Os místicos ensinam que Deus é amor. “Todos os místicos, de qualquer gênero, tempo ou espaço, são pessoas apaixonadas por Deus” (BINGEMER, 2020, p. 93).

A experiência mística pode se manifestar através de diferentes práticas oriundas de diferentes tradições religiosas e até não religiosas, como através de práticas meditativas, estados alterados de consciência, estados de transe, práticas de oração e, até mesmo, podem ocorrer de forma totalmente inesperada por aquele ou aquela que vivencia tal experiência. 

O Misticismo na Tradição Filosófica 

Em termos históricos, as manifestações dos fenômenos místicos são bem antigas, e no caso dos povos gregos, podemos destacar os mistérios de Elêusis, o dionisismo ou o orfismo (LOSSO, 2022, p. 39). “Os termos mystérion (ritual secreto), mystiké (relativo ao ritual secreto) e mystés (iniciado) são originários dos cultos dos Mistérios gregos, especialmente os de Orfeu, de Dionísio e de Elêusis” (PINHEIRO, 2022, p. 14).

A questão do Mistério também está presente na filosofia de Platão. Nele podemos encontrar a ideia de transcendência do divino e de ascese espiritual. A própria Teoria das Ideias de Platão apresenta algo de necessariamente divino e transcendente. Sobre a ideia de uma verdade transcendente, Pinheiro (2022, p. 16) destaca as seguintes passagens da obra do filósofo grego: “a analogia do Bem com o Sol, no fim do livro VI da República; a escada erótica de Diotima no Banquete; e a segunda hipótese sobre o uno no diálogo Parmênides”. Estes aspectos do platonismo (transcendência da verdade, erotismo espiritual e vida ascética), conforme aponta Pinheiro (2022, p. 18): “serão capitais na leitura neoplatônica pagã e cristã”.

Nos primeiros séculos da era cristã há uma variedade de autores que podem ser apresentados para tratar da temática do misticismo: o movimento do neoplatonismo com Plotino, Porfírio, Jâmblico e Proclo; os diversos gnosticismos de autores como Orígenes de Alexandria, os Padres da Capadócia (Basílio de Cesareia, Gregório Nazianzo e Gregório de Nissa); o movimento monástico de um Santo Agostinho.

Desta longa tradição dos primeiros séculos da era cristã podemos destacar a obra Cântico dos Cânticos, de Orígenes de Alexandria, onde o filósofo e místico apresenta três etapas no caminho místico relacionadas com os textos bíblicos como o livro dos Provérbios que corresponderia a etapa ascética da purificação, o livro de Eclesiastes que corresponderia ao estágio da contemplação (da natureza e das criaturas para, através da criação, chegar ao Criador) e finalmente o estágio da Epoptiká:

 

Termo relacionado aos mistérios já encontrados no Banquete para designar os mistérios elevados sobre eros. Vale ressaltar que o Banquete é um texto fundamental na argumentação que produz Orígenes. A releitura que ele opera do texto platônico é marcada por uma relação erótica fundamental com o Deus-Trindade, em que o termo agápe, tão nuclear na teologia neotestamentária, é relacionada com o eros do Banquete, encontrando especialmente os aspectos eróticos-espirituais do agápe divino. Este nível máximo da mística de Orígenes está relacionado à leitura e exegese mística do Cântico dos Cânticos. Este será central no que se chama de Mística Nupcial em que se interpreta o jogo entre noivo e noiva descrito no texto como a relação entre Igreja ou Alma (noiva) e Cristo (Noivo) (PINHEIRO, 2020, p. 20).

 

Na História da Filosofia, Plotino deixou-nos elementos valiosos para uma reflexão sobre este tema na Antiguidade. No final da Antiguidade e já no início da Idade Média a questão do misticismo foi amplamente estudada e de diferentes maneiras, com destaque para a obra de Dionísio, o Areopagita, da segunda metade do século V, além do neoplatônico Proclo que vê no misticismo “uma relação originária, íntima e pessoal entre o homem e Deus em virtude da qual o homem pode retornar a Deus e unir-se finalmente a ele num ato supremo” (ABBAGNANO, 2007, p. 672). Além daquele autores já citados da tradição mística medieval, podemos incluir ainda: Santo Ambrósio, Hildegarda de Bingen, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa, entre outros.

Se por um lado as questões sobre Deus sempre ocuparam um lugar de destaque ao longo de toda tradição filosófica, por outro lado observamos na contemporaneidade um movimento contrário, em que a filosofia, pelo menos até a primeira metade do século XX, praticamente renunciou a tratar sobre questões de ordem metafísica e transcendental.

Uma das raras exceções é a do filósofo francês Henri Bergson, “preocupado com questões gnosiológicas e metafísicas, investiga com profunda perspicácia o fenômeno místico, relacionando-o com os eixos fundamentais da sua filosofia” (TREVISAN, 2003, p. 66). Bergson pode ser considerado como um dos maiores metafísicos franceses da primeira quinzena do século XX:

 

A primeira quinzena do século XX francês foi, como nunca antes, muito digno de atenção. Na filosofia, esses anos foram para nós a época de Bergson. Pela primeira vez depois de Descartes, a França tinha a boa fortuna de possuir um destes seres raros que são os grandes metafísicos (GILSON, 2005, p. 99, tradução nossa).

 

O filósofo e místico italiano Pietro Ubaldi, por sua vez, possui uma obra de grande amplitude filosófica, científica e religiosa e uma de suas obras tem como título Ascese Mística (UBALDI, 1993) onde analisa, em profundida, este fenômeno de união com o Criador.

Se a filosofia no século XX, “com a popularidade do existencialismo ‘ateísta’, do marxismo, do estruturalismo e da filosofia analítica “positivista”, que acreditava que o único discurso sensato era o das ciências exatas” (GRONDIN, 2019, p. 57, tradução nossa), acreditou poder excluir a questão de Deus, observamos também um movimento na direção oposta, e para alguns até surpreendente, que é o retorno da religião como tema de interesse digno da filosofia. Um renascimento da filosofia da religião que, segundo Grondin (2019, p. 58, tradução nossa), “foi acompanhado de uma renovação da pesquisa em metafísica”.

Bergson e Ubaldi podem facilmente ser incluídos como pensadores do séc. XX que contribuíram para aquilo que Grondin (2010) chama de: “O Espetacular retorno de Deus na Filosofia”, mas eles não foram os únicos. Analisando os impactos do estudo na mística na contemporaneidade, Bingemer (2020, p. 89) destaca como “hoje os estudos da mística estão de volta à academia e ao debate teológico”. E não teria como ser diferente, afinal, estamos falando da “mais profunda das experiências humanas – a experiência direta e profunda do mistério divino” (BINGEMER, 2020, p. 89). Por isso esse fenômeno tem sido estudado hoje em dia não apenas no âmbito teológico, religioso ou filosófico, mas também em áreas como a literatura, a psicologia ou a antropologia, por exemplo. 

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução coordenada e revista por Alfredo Bosi. 5. ed. revista e ampliada. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

BINGEMER, Maria Clara. Mística na Contemporaneidade: impactos sobre a antropologia e a teologia. In: PINHEIRO, Marcus Reis; BINGEMER, Maria Clara; CAPELLI, Marcio (orgs.). Mística e Ascese: da tradição platônica à contemporaneidade. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Petrópolis: Vozes, 2020, p. -89-106.

 

GILSON, Etienne. Le philosophe et le théologien. Paris: Vrin, 2005.

 

GRONDIN, J. Lo spettacolare ritorno di Dio in filosofia. Manifestazioni e motivi di un fenomeno. Concilium. Rivista internazionale di teologia, 4, p. 113-123, 2010. Acesso em: 23 set. 2023.

 

LOSSO, Eduardo Guerreiro. O Conceito de Mística: Os Problemas. In: LOSSO, Eduardo Guerreiro; BINGEMER, Maria Clara; PINHEIRO, Marcus Reis (orgs.). A Mística e os Místicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 37-50.

 

PINHEIRO, Marcus Reis. O Conceito de Mística: As Origens. In: LOSSO, Eduardo Guerreiro; BINGEMER, Maria Clara; PINHEIRO, Marcus Reis (orgs.). A Mística e os Místicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 13-22.

 

TREVISAN, Murilo Rubens. O valor filosófico do misticismo. São João da Cruz: aproximações bergsonianas. Síntese – Revista de Filosofia, (30)96, 2003: 65-83. Acesso em: 21 jun. 2022. 


UBALDI, Pietro. Ascese Mística. Tradução de Rubens C. Romanelli, Clóvis Tavares e Jerônimo Monteiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Fraternidade Francisco de Assis, 1993. (Obras completas de Pietro Ubaldi, v. 4)

 

VELASCO, J. M. El Fenómeno Místico – Estudio Comparado. 2. ed. Madri: Trotta, 2003. 

Veja também