Tomaso Campanella
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em 2015
Tomaso Campanella foi um monge dominicano que entrou em vários conflitos com as ideias da Igreja por causa de suas teorias de inspiração neoplatônica e do materialismo do filósofo grego Demócrito. Por causa de suas constantes controvérsias com a Igreja foi condenado à prisão perpétua em 1602 e foi nesse período da prisão que escreveu A Cidade do Sol, procurando conciliar suas ideias com a autoridade da Igreja, onde descreve uma República ideal governada pela razão, inspirado em parte na República de Platão e na Utopia de Thomas Morus.
No lastro da Utopia de Thomas More, nos séculos seguintes dos tempos modernos, outras cidades imaginárias foram descritas. No século XVII, destaca-se a Cidade do Sol, de Tommaso Campanella [...] Embora hoje não seja muito lembrado, Campanella, personagem polêmico e contraditório, submetido a vários processos pelos órgãos de controle da ortodoxia da Igreja Católica, além de famosa contribuição de utopista expressa em sua obra Cidade do Sol, foi um pensador original (ALBORNOZ, 2005, p. 59 e 61).
Na obra, um timoneiro da frota de Cristóvão Colombo, denominado simplesmente Genovês, é quem descreve as características da Cidade do Sol, localizada na distante ilha de Taprobana, através de um diálogo com um cavaleiro Grão-Mestre da Ordem dos Hospitalários de São José de Jerusalém (ordem religiosa baseada no serviço hospitalar prestado aos peregrinos que viajavam à Terra Santa). O diálogo inicia-se justamente com uma pergunta do Grão-Mestre à Genovês: “Vamos, peço-lhe, conte finalmente o que lhe aconteceu durante essa viagem” (BRUNO; GALILEI; CAMPANELLA, 1983, p. 268). Tendo um dia desembarcado na ilha Genovês relata seus valores, costumes, tradições, seu sistema institucional, arquitetura, plano urbano etc. A obra de Campanella “integra o rol das utopias literárias, gênero caracterizado principalmente pelo vínculo com a história, pelo seu caráter descritivo e pelas reflexões que suscita através do cotejamento entre o mundo inventado e a sociedade real” (MONTEIRO, 2013, p. 01).
O relato de Genovês sobre Cidade do Sol inicia-se com a indicação de sua localização e a descrição de suas construções. Inquirido por Hospitalário, o marinheiro fornece poucas referências geográficas: a urbe está em uma alta colina de uma vasta planície da Taprobana, abaixo da linha do Equador. A zona em que a cidade se situa é de clima ameno, pois as temperaturas da linha do Equador são medianas [...] Morus escolhe o Oceano Atlântico Meridional para sediar Utopia. Campanella, menos de um século depois, escolhe o Índico [...] a escolha de um local distante e existente fornece verossimilhança à narrativa, impossibilita a verificação das ideias e dos fatos narrados e busca o convencimento do leitor (MONTEIRO, 2013, p. 39 e 40).
A cidade, circundada por grandes muralhas, é composta por grandiosos palácios, galerias com belas pinturas, um grande templo em forma circular “apoiado em maciças e elegantes colunas” (BRUNO; GALILEI; CAMPANELLA, 1983, p. 269), que simboliza o Sol: o templo fica no centro da Cidade, tal como o nosso Sol ocupa o centro do sistema solar. Campanella revela aqui um certo simbolismo de caráter platônico e oculto: o Sol representa a divindade e tal como esta, as leis da cidade fundam-se em uma lei eterna, que exprime a arte e a sabedoria divinas. A religião ocupa uma posição de destaque na organização da Cidade do Sol: o supremo soberano, Hoh ou Metafísico, detém o poder espiritual e temporal.
os preceitos que disciplinam e organizam a vida dos habitantes derivam de uma lei eterna, que exprime a arte e a sabedoria de Deus. O ordenamento legal da urbe visa ao bem comum; este, por sua vez, corresponde a um instrumento para a felicidade da coletividade e, consequentemente, para a felicidade individual. Sendo assim, o legislador dos solares é o mais sábio dentre eles e, ao mesmo tempo, cientista e sacerdote (MONTEIRO, 2013, p. 02).
Campanella imagina uma vida rigorosamente ordenada, já que a sociedade do seu tempo (como em todas as épocas, é bom que se diga) está repleta de problemas sociais, de desordens, tirania, arbitrariedades; por isso na Cidade do Sol aparece uma forte tendência à racionalidade, à organização segundo a razão. Esta ordem adquire um sentido de busca da harmonia natural. Para Campanella a desordem do mundo deriva da irracionalidade dos governantes que não seguem os preceitos da razão. Mas esta ordem e harmonia só podem ser adquiridas não apenas pela via da razão (sabedoria), mas da potência (poder) e do amor.
Poder, saber e querer, ou melhor, potência, sabedoria e amor são os traços fundamentais e as três virtudes fundamentais [...] As faculdades básicas de poder, saber e querer, transformadas, em outro nível, nas virtudes da potência, da sabedoria, do amor, acabam sendo transpostas a um nível filosófico superior, tornando-se determinações mais sublimes e precisas destas categorias, onde se dão como “necessitas”, “fatum” e “harmonia”. Nestas formas de dizer as forças do ser apresenta-se o elemento da ordem, e é a ordem o princípio fundamental do pensamento de Campanella (ALBORNOZ, 2005, p. 61 e 62).
No Governo da Cidade Hoh, o Sumo Sacerdote[1], é assessorado por um triunvirato: Pon, Sin e Mor: “nomes que, entre nós, equivalem a Potência, Sapiência e Amor” (BRUNO; GALILEI; CAMPANELLA, 1983, p. 270)[2]. De acordo com esta concepção, é previsto um Ministério do Poder, um Ministério da Sabedoria e um Ministério da Harmonia. Além dos governantes há os magistrados
que se chama Astrólogo, outro Cosmógrafo, Aritmético, Geômetra, Historiógrafo, Poeta, Lógico, Retórico, Gramático, Médico, Fisiólogo, Político, Moralista, havendo para eles um único livro chamado Saber, no qual, com maravilhosa concisão e clareza, estão inscritas todas as ciências (BRUNO; GALILEI; CAMPANELLA, 1983, p. 270).
Os objetivos principais da comunidade solar são a harmonia social e o perfeito funcionamento de suas instituições. A Cidade do Sol buscará a ordem onde tudo terá lugar previsto não sendo tolerada nenhuma perturbação pela contingência ou o acaso.
Não é nossa intenção fazer uma descrição pormenorizada da estrutura e da organização política da Cidade do Sol, por isso iremos nos deter apenas é mais um aspecto da organização solar, que é uma espécie de comunismo utópico: comunidade de bens e pessoas[3]. Na sociedade solar impera o princípio comunitário: tudo é comum – casas, dormitórios, alimentos, aprendizado, trabalho, inclusive mulheres e filhos. Baseado em um certo princípio de justiça distributiva, os magistrados são os responsáveis pela distribuição de todos os bens. A propriedade privada não é bem vista entre os solares e gera concentração de riquezas[4]. A desigualdade econômica é associada à pobreza e à riqueza, que são qualidades desprezíveis entre os solares.
Afirmam, além disso, que a pobreza é a razão principal de se tornarem os homens vis, velhacos, fraudulentos, ladrões, intrigantes, vagabundos, mentirosos, falsos testemunhos, etc., produzindo a riqueza os insolentes, os soberbos, os ignorantes, os traidores, os presunçosos, os falsários, os vaidosos, os egoístas, etc. (BRUNO; GALILEI; CAMPANELLA, 1983, p. 280).
Se o oposto da propriedade privada é o comunismo, então a primeira deve ser constantemente combatida e abolida, ao passo que só uma vida comunitária pode gerar uma sociedade ordenada, sem pobreza e desigualdade. Essa ideia de uma vida em comunidade está, inclusive, associada, ao ideal de vida dos primeiros cristãos que, segundo Genovês, são admirados pelos solares por seu estilo de vida virtuoso e solidário. Há aqui o que Carlos Berriel (2008) chama de “princípio ético-econômico do coletivismo”: garantia da igualdade, exaltação do trabalho (o regime de bens na Cidade do Sol proporciona trabalho a todos os solares) e ausência de propriedade. O coletivismo solar é representado por uma distribuição planejada e rigorosa das tarefas e afazeres, o que faz com que cada indivíduo não trabalhe mais do que quatro horas por dia, sobrando tempo para o estudo, leitura, passeios, lazer etc.
Por estas poucas observações vemos que o Estado solar é teocrático e baseado no princípio da comunidade de bens e do coletivismo. A autoridade está centralizada na figura de quatro sacerdotes, sendo três triúnviros que assessoram o Sumo Sacerdote. Este por sua vez detém o poder temporal e espiritual. A Cidade do Sol corresponde a um modelo social diferente de qualquer outro modelo existente no mundo real, a idealização de uma sociedade que deve ser diferente de toda organização social e política até então existente. “Assim, utilizando-se de alegorias dispostas em um texto ficcional, Campanella expõe e discute as principais ideias que defendeu ao longo de toda sua vida” (MONTEIRO, 2013, p. 76).
Referências
ALBORNOZ, Suzane Guerra. Trabalho e utopia na modernidade II: o trabalho na Cidade do Sol de Tommaso Campanella. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 8, pp. 59-69, 2005. Acessado em 05/11/2015.
BERRIEL, Carlos Eduardo O. Campanella: a consciência da possível Contrareforma. Considerações sobre o “Appendice della politica detta La Città Del Sole di Fra Tommaso Campanella – Dialogo poetico”. Revista Morus - Utopia e Renascimento. Campinas: Gráfica Central da Unicamp, nº 5, 2008. Acessado em 05/11/2015.
BRUNO, Giordano; GALILEI, Galileu; CAMPANELLA, Tommaso. Sobre o infinito, o universo e os mundos; O Ensaiador; A cidade do sol. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores)
MONTEIRO, Regina Maria Carpentieri. A Filosofia do Direito em A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella. Dissertação (Mestrado). Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 2013.