PRÉ-SOCRÁTICOS

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em out. 2023


A filosofia surge por volta do século VI a.C., quando os primeiros filósofos começam a elaborar uma tentativa racional (através do logos) de explicar o universo, abandonando a velha cosmogonia dos relatos míticos em favor de uma cosmologia (cosmo, significa mundo, então os primeiros filósofos queriam entender esse cosmos do qual fazemos parte). Na origem desta cosmologia está a pergunta: qual é o elemento originário constitutivo de todas as coisas? Qual é o princípio (arché) de todas as coisas?

As respostas são variadas e podemos destacar algumas correntes principais: o monismo da escola de mileto (Tales, Anaximandro, Anaxímenes) e de Éfeso (Heráclito); o formalismo matemático da escola pitagórica (Pitágoras); o pluralismo de Empédocles, Anaxágoras e dos atomistas (Leucipo e Demócrito). A esta visão precisamos acrescentar ainda a escola Eleata de Xenófanes, Parmênides, Zenão e Melisso que não chegaram a pensar um princípio (arché) em termos de substância física como os demais pré-socráticos.

Como consequência direta desta preocupação com o cosmos, os primeiros filósofos se ocupam igualmente do mundo natural (da physis, de onde se origina a palavra física), buscando explicações causais dos processos e dos fenômenos naturais a partir de causas naturais e não mais através dos mitos (da cosmogonia). A este respeito, é curioso notar que Aristóteles, ao analisar as ideias dos filósofos pré-socráticos, irá se referir a eles não apenas como filósofos, mas também como físicos (physiologoi, ou seja, aqueles que estudam a physis). A chave da compreensão da realidade natural encontra-se na realidade mesma e não fora dela. Diferentes pensadores buscavam eventualmente diferentes princípios explicativos. A arché (princípio) estabelecia um elemento natural como princípio básico que permeava toda a realidade.

Escola Monista 

A Tales de Mileto (séc. V ou VI a.C.), é atribuída a idéia de que a água seria a causa material, o princípio (arché) de todas as coisas. O pronunciamento de Tales foi a primeira sugestão da ideia de uma substância fundamental, da qual todas as outras seriam constituídas por modificações. Assim, Tales postula a ideia de que todas as coisas poderiam ser reduzidas a um único princípio.

 

A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os que são de natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos, e de que primeiro são gerados e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para eles, o elemento (stokheion), tal é o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal natureza subsistisse sempre... Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais de uma, donde as outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à natureza destes princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser a água [o princípio] (é por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre a água), levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas (Aristóteles. In:  OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, p. 40).

 

A proposição de Tales de que a água é o princípio de todas as coisas, a arché, é, como dirá o filósofo alemão da segunda metade do século XIX, Friedrich Nietzsche, um postulado que pretende explicar o mundo físico; com tal proposição, a Filosofia se inicia, porque, através dela, se pensa uma forma física determinada de que o “um” é a essência, a origem de todas as coisas.

 

A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas (...) nela – na proposição – embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: “Tudo é um” (...) em virtude – desta mesma proposição – Tales se torna o primeiro filósofo grego (...) Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimir-lhe melhor – a proposição: ‘Tudo é um’ (Nietzsche. In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, p. 43-44).

 

Tales é considerado o primeiro filósofo por ser o primeiro a fazer uso de um modo de explicação da realidade natural a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou aos mitos. “Tales foi o iniciador da filosofia da physis, pois foi o primeiro a afirmar a existência de um princípio originário único, causa de todas as coisas que existem, sustentando que esse princípio é a água” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 29).

Eis, em resumo, as três proposições sobre Tales indicadas por Aristóteles (BURNET, 1952): 1. A terra flutua sobre a água; 2. A água é a causa material de todas as coisas; 3. Todas as coisas estão cheias de deuses.

 

A primeira destas indicações deve ser compreendida à luz da segunda, que é expressa na terminologia aristotélica, mas significa sem nenhuma dúvida que, na opinião de Tales a água era a coisa fundamental ou primordial da qual todas as outras não eram senão formas puramente transitórias, era justamente, como nós o vemos, uma substância primordial que procurou toda a escola milesiana... a grandeza de Tales consiste no fato de ter sido o primeiro a se perguntar não por qual era a coisa originária, mas qual é, agora, a coisa primordial, ou, mais simplesmente ainda, de que o mundo é feito (BURNET, 1952, p. 48, tradução nossa).

 

Discípulo de Tales, Anaximandro negava que a substância fundamental fosse a água ou qualquer das outras substâncias conhecidas; teria como caráter sua indeterminação, o ilimitado – apeiron –, sendo tal substância infinita e indestrutível. Seu pensamento (ou aquilo que sabemos dele), refere-se a uma unidade primordial de onde derivam e para o qual retornam todas as coisas. A causa material e o elemento primordial não é nem a água nem nenhuma outra substância dos elementos conhecidos, mas uma substância diferente, infinita, de onde tudo deriva, inclusive os céus e os mundos: é o apeiron. Anaximandro propõe assim uma noção mais abstrata que não se confunde com nenhum dos elementos tradicionais. “Com Anaximandro, a problemática do princípio se aprofundou: ele sustenta que a água já é algo derivado e que, ao contrário, o ‘princípio’ (arché) é o infinito, ou seja, uma natureza (physis) infinita e in-definida da qual provêm todas as coisas que existem” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 31). Anaximandro recusa-se a ver a origem do real em um elemento particular uma vez que tudo o que vemos é limitado e o limitado não pode ser origem de todo o real, mas sim alguma coisa de natureza ilimitada.

 

... deve haver, por isto, um princípio que lhes seja anterior e que permita compreender tudo o que é limitado. Do ilimitado surgem inúmeros mundos, e estabelece-se a multiplicidade; a gênese das coisas a partir do ilimitado é explicada através da separação dos contrários (como quente e frio, seco e úmido) em consequência do movimento eterno; ciclicamente, o que está separado volta a integrar-se à unidade primordial, restabelecendo-se a justiça (BORNHEIM, 1993, p. 24).

 

Um terceiro filósofo, também da escola de Mileto tal como Tales e Anaximandro, ensinava ser o ar a substância primeira. Anaxímenes provavelmente tenta conciliar Anaximandro e Tales, dizendo que o “princípio” deve ser infinito, mas algo determinado: o ar.  “Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o Cosmo sopro e ar o mantém” (In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, frg. 2). Assim disse Anaxímenes que introduziu ainda a ideia de que os processos de condensação e rarefação fossem causa da transformação da substância primeira nas demais substâncias. A condensação do vapor d’água, por exemplo, dando lugar às nuvens. Anaxímenes não afirmou como Anaximandro que o princípio primordial seria indeterminado, mas determinado, dizendo ser este o ar. Talvez porque seja o princípio mais incorpóreo e se encontre por toda parte Anaxímenes tenha adotado o ar como princípio originário. Temos aqui mais um exemplo de como a escola de mileto procura explicar os fenômenos da natureza com base em um pensamento filosófico racional abstrato, sem recorrer a explicação sobrenaturais. O ar seria assim, o elemento invisível e incorpóreo que mais se presta a explicar a realidade física.

 

(...) por sua natureza de grande mobilidade, o ar se presta muito bem para ser concebido como estando em perene movimento... o ar se presta melhor do que qualquer outro elemento às variações e transformações necessárias para fazer nascer as diversas coisas. Ao se condensar, resfria-se e se torna água e, depois, terra; ao se distender e dilatar, esquenta e torna-se fogo (REALE; ANTISERI, 1990, p. 34).


Heráclito de Éfeso tomou como matéria primeira àquela que parece ser a mais “etérea”: o fogo. Alguns dos aspectos essenciais de sua doutrina são: a unidade fundamental (In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, frg. 10, 50, 89, 103); a ideia de que todas as coisas estão em movimento, ou seja, o dinamismo como característica essencial do princípio gerador de todas as coisas (In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, frg. 12, 49a, 88); e o fogo como gerador do processo cósmico (In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, frg. 30, 31, 60, 90). 

Escola Pitagórica 

A escola pitagórica é animada por um profundo misticismo religioso e tem o seu centro na Matemática, no estudo dos números, cuja lei domina em todas as coisas, ou seja, todas as coisas são reguladas por meio da relação matemática, numérica e geométrica. Todo o universo é harmonia e números: o mundo é concebido a partir de uma ordem perfeitamente interpretável pela razão. O princípio de onde tudo deriva não é uma “coisa”. A essência última de tudo, toda a diversidade do real, é dada pela diferença quantitativa e numérica. Com a analogia da música Pitágoras afirma que tudo o que vemos e tocamos, as coisas como se apresentam para nós, a existência real que está por trás de tudo são os números. Pitágoras, tendo descoberto que havia proporção quantitativa entre os comprimentos das cordas da lira e os acordes da música, ficou fascinado e estendeu isto para o universo. O universo deve ser harmonia e tudo deve ser composto de proporções quantitativas.

Essa concepção matemática do universo irá influenciar um dos maiores filósofos de todos os tempos, a saber, Platão. Este grande gênio da filosofia grega, na sua obra Timeu, apresenta suas ideias em relação com a doutrina pitagórica da harmonia dos números e identifica os elementos, terra, água, fogo e ar com os poliedros regulares, cubo, octaedro, tetraedro e icosaedro.

 

Para Platão... as menores partículas de matéria são, por assim dizer, apenas formas geométricas. Considera as menores partículas dos elementos idênticas aos corpos regulares da geometria. Como Empédocles, admite que os quatro elementos são terra, água, ar e fogo. Concebe as menores partículas do elemento terra como cubos, e as menores partículas do elemento água como icosaedros, identicamente, imagina como tetraedros as partículas elementares do fogo e, como octaedros, as do ar. A forma é característica para as propriedades do elemento (HEISENBERG, 2004, p. 12). 

Escola Eleata 

O principal problema abordado pela escola eleata, da qual os principais representantes são Xenófanes, Parmênides, Zenão e Melisso, foi a questão da permanência e da identidade ou da unidade do Ser diante da mudança e da multiplicidade dos seres particulares.

Esta questão a respeito do problema da natureza da realidade – se a realidade é una ou múltipla também foi abordada por Heráclito de Éfeso e costuma-se, inclusive, contrapor a visão de mundo da escola eleata ao modelo proposto por Heráclito também conhecido como a filosofia do devir, segundo a qual a realidade está em permanente e constante mudança.

A grande contribuição dos eleatas é a atribuição do Um como o Absoluto imutável. Tal era a visão de Xenófanes, de que o único princípio e ser de todas as coisas é uma unidade, um inteiro, identificando essa unidade com o Ser Divino: “Um só Deus, sumo entre os deuses e os homens, nem por figura nem por pensamento semelhante aos homens” (frg. 23 apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 57).

Parmênides, por sua vez, foi aluno de Xenófanes, dele sofrendo uma grande influência e defendeu as ideias de que o Ser é não gerado e imperecível, indivisível, todo igual e imóvel. O terceiro grande filósofo eleata foi o aluno de Parmênides, Zenão, que defendeu as ideias de seu mestre e ficou conhecido pelos paradoxos com os quais nega a realidade do movimento. Já Melisso é considerado como o grande sistematizador do pensamento eleata defendo ainda a eternidade do Ser, sua infinitude, sua unidade e sendo todo igual.


1. Assim, portanto, é eterno, infinito, uno, todo igual. 2. E não pode nem perder algo nem se tornar maior, nem pode mudar de forma, e não experimentar dor, nem sofre pena. Com efeito, se sofresse alguma destas coisas, não seria mais uno. Com efeito, caso se alterasse, necessariamente o ser não seria igual, as deveria perecer aquilo que era antes, e deveria nascer aquilo que não é. Se, portanto, se alterasse ainda que um só cabalo em dez mil anos, se destruiria tudo em toda a duração do tempo (frg. 7 apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 62). 

Escola Pluralista e Atomista

Empédocles de Agrigento foi o primeiro a passar do monismo a um certo pluralismo. Talvez a fim de evitar a dificuldade de que uma única substância primeira não poderia explicar a variedade das coisas e fenômenos, ele assumiu quatro elementos básicos: terra, água, fogo e ar; tais elementos misturar-se-iam uns aos outros e se separariam pela força do Amor (philia) e do Ódio (neikos). “A função do Amor é de produzir a união; a do ódio é de romper...” (BURNET, 1952, p. 264).

Contemporâneo de Empédocles, Anaxágoras pensou uma variedade infinita de “sementes” (spérmata), infinitamente pequenas das quais todas as coisas seriam compostas. Anaxágoras substitui as duas forças (philia e neikos) de Empédocles, por uma Inteligência (Nous) ordenadora e divina. O Universo é posto em movimento, não mais pelo Amor e Ódio, mas sim por Nous que podemos traduzir como “Inteligência”. Assim se refere Anaxágoras no fragmento 2:

 

Todas as outras coisas têm parte de cada coisa, mas a inteligência é ilimitada, independente e não misturada a alguma coisa, mas é só em si mesma... ela é a mais sutil e mais pura de todas as coisas, possui pleno conhecimento de tudo e tem imensa força. E todas as coisas que têm vida, as maiores, são todas dominadas pela inteligência. A inteligência deu impulso à rotação universal, de modo que desde o princípio se desse o movimento rotatório...” (apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 63 e 64).

 

Anaxágoras Concebeu a realidade como composta de uma multiplicidade infinita de elementos a que denominou de homeomerias.

 

Precisamente por essa característica de serem-divisíveis-em-partes-que-são-sempre-iguais é que as “sementes” foram chamadas “homeomerias” (o termo aparece em Aristóteles, mas não é impossível que seja de Anaxágoras), que quer dizer “partes-semelhantes”, “partes qualitativamente iguais” (obtidas quando se divide uma das “sementes”) (REALE; ANTISERI, 1990, p. 62).

 

Apesar de conceber uma pluralidade infinita de elementos Anaxágoras também reconhece que há em cada coisa uma porção de cada coisa, pois aquilo que existe (cabelo, corpo etc.) não poderia vir do que não existe, ou para ser mais exato, o que os homens chamam comumente nascimento e destruição não é senão mistura e separação (In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999, frg. 17). “Como o cabelo pode vir do que não é cabelo, ou a carne do que não é carne?” (frg. 10). E mais adiante: “Há em cada coisa uma porção de cada coisa” (frg. 11).

Mais um passo, e chegamos à concepção atomística de Leucipo e Demócrito. Pela primeira vez na história se enuncia a ideia da existência de partículas extremamente diminutas e indivisíveis. A doutrina atomista sustenta que a realidade consiste em átomos e no vazio, os átomos se atraindo e se repelindo, e gerando com isso os fenômenos naturais e o movimento. A atração e repulsão dos átomos devem-se às suas formas geométricas, sendo que átomos de formas semelhantes se atraem e os deforma diferente se repelem. Os átomos são qualitativamente indiferenciados, sendo diferentes entre si somente na forma ou figura geométrica, pela ordem e pela posição. Átomos, vazio e movimento constituem a explicação de tudo. O movimento leva os átomos semelhantes a agregarem-se em ter si. 

Referências 

BURNET, John. L'aurore de la philosophie grecque. Paris: Payot, 1952.

 

HEISENBERG, Werner. A descoberta de Planck e os problemas filosóficos da física atômica. In: BORN, Max [et al]. Problemas de Física Moderna. Trad. Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 9-27.

 

OS PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores)

 

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. 3 ed. São Paulo: Paulus, 1990. vol. I