por Luana Pantoja Medeiros
postado em: mai. 2025
O Candomblé é uma religião afro-brasileira de caráter iniciático, baseada na ancestralidade, nos rituais e na reverência aos orixás, voduns ou inkices, dependendo da nação (grupo étnico-religioso de origem africana). Surgido no Brasil durante o período colonial, o Candomblé é fruto do encontro entre diferentes culturas africanas trazidas por pessoas escravizadas, principalmente de origem iorubá, jeje e banto, com elementos do catolicismo e das religiões indígenas.
Do ponto de vista científico e antropológico, o Candomblé pode ser compreendido como: uma forma de resistência cultural e religiosa à colonização e à escravização, que preservou saberes africanos por meio da oralidade, da ritualística e do corpo. Um sistema cosmogônico e cosmológico, no qual o mundo é regido por forças da natureza divinizadas, os orixás, cada um com histórias, elementos e atributos específicos.
Uma religião de ancestralidade, pois valoriza os laços com os antepassados e com as raízes africanas, sendo o axé (força vital sagrada) transmitido por meio das gerações. Uma prática ritual complexa, centrada em oferendas, danças, cantos em línguas africanas e o transe de incorporação, que conecta os iniciados às divindades.
Segundo Muniz Sodré: “O terreiro é, pois, um espaço de enraizamento no sagrado, uma territorialidade ritual em que o corpo é veículo de memória e onde a ancestralidade se atualiza constantemente” (Sodré, 2015, p. 41).
A prática do Candomblé envolve uma ritualística rica e detalhada, onde cada elemento, do toque dos tambores ao uso de ervas sagradas — possui um significado ancestral. Como explica Reginaldo Prandi (2005), “o Candomblé é uma religião essencialmente prática, baseada em rituais que visam a comunicação com os orixás e a obtenção do axé, a força vital sagrada que sustenta a vida”.
O pesquisador Elton Ibrahin de Vasconcelos (2024) aborda o conceito de “encruzilhamento” como espaço simbólico de múltiplas possibilidades e resistências, especialmente no contexto das identidades trans* dentro do Candomblé. Esse conceito reflete a complexidade e a riqueza das experiências vividas nos terreiros, onde diferentes caminhos e identidades se encontram e se entrelaçam.
Na concepção de Elton Ibrahin de Vasconcelos (2024), a encruzilhada não é apenas um lugar físico ou simbólico, mas uma forma de existência e de resistência política.
Já Muniz Sodré propõe uma leitura da religião como campo simbólico de poder e memória coletiva, onde o corpo é território sagrado: “O Candomblé consagra o corpo como lócus de uma linguagem sacralizada que expressa, na dança e no transe, a própria ancestralidade do ser negro” (Sodré, 2015, p. 45).
O Candomblé articula religião, política, estética e ancestralidade como formas de resistência histórica ao colonialismo, e reafirma cotidianamente a dignidade dos saberes africanos através da ritualística viva dos terreiros. Essa religião afro-brasileira que se desenvolveu a partir das tradições religiosas de diferentes grupos étnicos africanos trazidos ao Brasil durante o período da escravidão caracteriza-se por uma rica tradição oral, rituais complexos e uma profunda conexão com a ancestralidade.
Segundo Muniz Sodré, o Candomblé é “uma religião vivida, e não dada por outrem ou por uma doutrina”. Essa vivência se manifesta nos rituais, na música, na dança e na relação íntima com os orixás, que são divindades representando forças da natureza e aspectos da vida humana.
A ancestralidade é um elemento central no Candomblé. Como destaca Kabengele Munanga (1999), “a ancestralidade é a base da identidade cultural africana e afro-brasileira, sendo fundamental para a construção de uma consciência negra no Brasil”. Essa conexão com os antepassados é mantida e reforçada através dos rituais e da oralidade presentes nos terreiros.
Além disso, o Candomblé tem uma estrutura organizacional baseada em terreiros, que são comunidades religiosas lideradas por sacerdotes e sacerdotisas, conhecidos como babalorixás e ialorixás. Cada terreiro é autônomo e possui suas próprias tradições e práticas, embora compartilhem fundamentos comuns.
A religião também se destaca por sua resistência cultural. Como observa Luis Nicolau Parés (2006), “o Candomblé é uma forma de resistência à dominação cultural e religiosa imposta durante a colonização, preservando elementos essenciais das culturas africanas”. Essa resistência se manifesta na manutenção de línguas africanas, na culinária, na música e em outras expressões culturais presentes nos rituais.
Em suma, o Candomblé é uma religião que combina elementos de diferentes tradições africanas, adaptadas ao contexto brasileiro, mantendo uma forte conexão com a ancestralidade e oferecendo uma rica expressão cultural e espiritual para seus praticantes.
O Candomblé como Tradição Oral: Fundamentos Linguísticos e Epistemológicos
A hierarquia no candomblé é uma estrutura complexa e profundamente enraizada na tradição oral e funcionalidade dos terreiros. As religiões de matrizes africanas são de tradição oral pois não havia um livro, como os cristãos têm a Bíblia, ou os muçulmanos o Al Corão e etc., tudo que se aprendeu aqui no Brasil, foi transmitido através da oralidade.
O historiador belga Jan Vansina (2010) foi um dos pioneiros no estudo da tradição oral como fonte legítima para a compreensão das sociedades africanas. Em sua obra “A tradição oral e sua metodologia”, Vansina destaca que a tradição oral é uma forma de testemunho transmitido verbalmente, que requer uma escuta atenta e repetida, para apreender seus múltiplos significados. Enfatiza que, em muitas culturas africanas, a palavras falada possui um poder criado, sendo essencial para a manutenção da memória coletiva e das práticas sociais religiosas.
O Candomblé é uma religião marcada por uma transmissão de saber que escapa à lógica do texto escrito. Como outras manifestações de matriz africana, ele estrutura-se sobre um sistema de conhecimento oral, no qual a palavra falada é o principal veículo de saber, memória e espiritualidade. A oralidade, nesse contexto, não é um mero recurso técnico ou pedagógico, mas uma epistemologia própria, enraizada na ancestralidade africana.
Vansina foi um dos primeiros a reconhecer a legitimidade científica da tradição oral como fonte histórica. Segundo ele, as culturas africanas desenvolveram métodos sofisticados de memorização e transmissão verbal, com mecanismos próprios de verificação e validação social. Para Vansina, as tradições orais são formas organizadas de discurso histórico que exigem do ouvinte e do transmissor um rigor específico. No universo do Candomblé, esses saberes são transmitidos nos terreiros, por meio de cantigas, rezas, histórias míticas (os itãs) que significam em ioruba; história ou conto, e principalmente pela prática ritual, onde a experiência sensível é também forma de aprendizagem.
Ainda que Noam Chomsky não tenha se dedicado à análise de tradições orais específicas, suas contribuições à linguística moderna, especialmente a ideia de uma gramática universal inata, sustentam o entendimento de que todo ser humano possui uma capacidade cognitiva natural de apreender e reproduzir sistemas linguísticos complexos, inclusive aqueles que operam fora da lógica escrita (Chomsky, 1995). Isso valida a potência das culturas de oralidade como forma plena de transmissão e sistematização de conhecimento.
Nesse sentido, compreender o Candomblé como uma cultura de oralidade implica reconhecer que há uma outra forma de racionalidade em jogo, uma lógica do corpo, da escuta, da vivência. É na encruzilhada entre palavra, rito e ancestralidade que o saber se constitui. O silêncio do papel não indica ausência de teoria, mas uma teoria encarnada, que fala pelos corpos em movimento, pelas vozes dos mais velhos, pelas cantigas, pelos toques de tambor.
A tradição oral do Candomblé não é uma forma “menor” de transmissão de conhecimento, mas sim uma ontologia distinta, que rompe com o epistemicídio promovido pela colonização. Ao considerar as vozes da oralidade como legítimas, reabilita-se a memória negra e se afirma o lugar político e cultural das religiões afro-brasileiras.
Munanga destaca que nas cosmovisões africanas, a palavra não é apenas meio de comunicação, mas uma força vital que conecta o indivíduo ao universo. Essa perspectiva evidencia que, no candomblé, a oralidade é uma prática sagrada que sustenta a transmissão de saberes e cultura e da manutenção da identidade cultural.
Muniz Sodré, sociólogo e Obá de Xangô no terreiro Axé Opô Afonjá, enfatiza que o candomblé é uma forma de conhecimento que se realiza na experiência, na corporeidade e na oralidade. Ele observa que na tradição oral no candomblé não é apenas uma técnica de transmissão, mas uma forma de existência que valoriza a escuta, a memória e a participação ativa dos rituais. Sodré destaca que essa oralidade é fundamental para a preservação da cultura afro-brasileira e para a resistência contra a marginalização das práticas religiosas de matriz afro.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Ed. da Unicamp, 2006.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo; Rio de Janeiro: Imago, 2002.
VASCONCELOS, Elton Ibrahin de. Discursos encruzilhados: um estudo do pronunciamento de autoridades de Candomblé em suas relações discursivas sobre a pessoa Trans*. 2024. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2024.
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI- ZERBO, Joseph (org.). História geral da África. Brasília: UNESCO, 2010.