por Luana P. Medeiros
postado em ago. 2025
“Enfim, o que é o espanto que faz nascer o poema? É a súbita constatação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento nos põe diante do seu invencível mistério. Tentar expressá-lo é a pretensão do poeta”.
João Cabral de Melo Neto, A Poesia e o Espanto.
A poesia é, desde os primórdios da humanidade, uma forma de organizar a experiência humana por meio da linguagem sensível. Mais do que um gênero literário, ela se constitui como um modo de percepção do mundo, um gesto que transgride as estruturas do discurso racional e funcional. Em sua potência estética, a poesia revela dimensões ocultas da existência, reconfigura a linguagem e cria novas formas de habitar o tempo.
A filosofia clássica já reconhecia a especificidade da linguagem poética. Na Poética de Aristóteles, o filósofo diferencia a poesia da história ao afirmar que esta relata o que efetivamente aconteceu, enquanto aquela trata do que poderia acontecer. O filósofo compreende a poesia como uma forma de mímese que não visa imitar o fato concreto, mas o verossímil e o universal. Ao poeta é dado o poder de criar mundos possíveis, de captar a essência dos afetos humanos e de oferecê-los sob a forma de experiência estética (Aristóteles,1995). Diferentemente de Platão, que via a arte como uma cópia imperfeita do mundo das ideias e, portanto, distante da verdade, Aristóteles via a mimese como uma forma de representação do universal, capaz de gerar conhecimento e proporcionar uma experiência estética e emocional.
Na poesia brasileira moderna e contemporânea, esse gesto criador encontra expressões singulares. Manuel de Barros, por exemplo, propõe uma poética da desimportância e da infância. Ele valoriza o que é pequeno, inútil, insignificante, uma forma de insurgência contra a lógica da razão produtiva.
Seu trabalho com a linguagem é radicalmente inventivo: ele desmonta a sintaxe, inverte o valor das palavras e celebra o absurdo como forma de reinvenção do mundo. Para o poeta, o fazer poético exige “desaprender para ver com os olhos livres” (Barros, 2010).
Na poética de Manuel de Barros, a palavra “inutensílio” é uma invenção semântica que une “inútil” e “utensílio”, criando um neologismo que carrega, simultaneamente, a negação da utilidade e a ideia de objeto ou ferramenta. No entanto, ao contrário de um utensílio funcional, um inutensílio é um objeto ou palavra que não serve para nada, pelo menos não sob a lógica produtivista e utilitarista do mundo moderno.
Trata-se, assim, de uma forma de elogio àquilo que não tem serventia prática, mas que tem valor poético, simbólico ou afetivo. É a celebração do que é miúdo, do que não serve, do que escapa à razão cartesiana. Nesse sentido, o inútensílio representa o ato de desobedecer ao valor da utilidade, algo fundamental em sua poesia, que frequentemente valoriza a infância, o delírio, a natureza em seu estado bruto, e os “desobjetos”, coisas quebradas, insignificantes ou esquecidas.
É possível dizer que o inútensílio é também uma metáfora do próprio fazer poético, que, para Manuel de Barros, não serve a uma função direta, mas sim à potência de ver o mundo de outra forma. A palavra torna-se, assim, uma espécie de “objeto poético”, cuja finalidade é ser sentida, não aplicada.
Adélia Prado, por sua vez, habita o terreno da poesia com uma sensibilidade profundamente encarnada. Sua escrita mistura o sagrado e o doméstico, o corpo e a alma, a fé e o cotidiano. A autora opera uma transfiguração do comum, o varrer do quintal, o preparo do café, o amor conjugal, transformando o banal em lugar de revelação. Em suas palavras, “poesia é um jeito de ser corpo”, e essa corporeidade da linguagem é também um modo de resistência, de preservar a beleza diante da dureza do mundo (Prado, 1987).
Já Ferreira Gullar compreende o poema como uma forma de dar sentido à experiência bruta da vida. Seu fazer poético parte de uma urgência existencial: escrever seria, para ele, uma necessidade íntima, uma tentativa de compreender o mundo e de si mesmo. Sua poesia, por vezes marcada pela dor e pela memória política, tensiona os limites da linguagem, buscando uma revelação que só se alcança através da forma estética. Para Gullar, a poesia é invenção do real, e não sua simples representação (Gullar, 2014).
Essas três vozes poéticas, cada uma à sua maneira, afirmam que o poema é um lugar de travessia. Nele, a linguagem não serve apenas à comunicação, mas à criação de novos modos de sentir e pensar. O poema é corpo, é escuta, é invenção. E, sobretudo, é resistência: contra o automatismo das palavras, contra a insensibilidade do cotidiano, contra a lógica do lucro e da pressa.
A poesia, enquanto forma de linguagem, revela-se como espaço privilegiado de invenção, de presença e de deslocamento. Em Aristóteles, ela já era concebida como meio de tocar o universal através da criação simbólica; nos poetas contemporâneos brasileiros, ela se realiza como corpo, infância, memória e espanto. Em tempos marcados pela racionalidade instrumental, a poesia insiste em desacelerar o tempo, em devolver à palavra sua espessura simbólica, em manter vivo o espaço do indizível.
Ao recusar a domesticação da linguagem, a poesia abre brechas por onde podemos respirar. Como gesto de resistência estética e existencial, ela nos convida a perceber o mundo com olhos novos e a habitar essa experiência com profundidade, com intensidade e com delicadeza.
Essas cosmovisões e visões do fazer poético nos revela que a poesia pode ser considerada um “utensílio” por alguns escritores, onde encontram no gênero literário uma forma de expressar as mazelas sociais e humanas, versos comprometidos com a denúncia de fatos considerados importantes, reverberando vozes silenciadas de sujeitos das margens como mulheres negras, indígenas, poesia feminista e etc.
Há também de se considerar, como no caso de Manoel de Barros, a poesia como um “inúntensílio”, no sentido de não ser utilitarista, de não se colocar como mais um veículo servil das coisas “consideradas” úteis, porque não tem utilidade prática imediata no sentido de servir para algo funcional, como um objeto comum inanimado.
Nesse sentido, o termo é usado de forma crítica e poética para valorizar aquilo que aparentemente é “inútil” aos olhos do utilitarismo moderno, mas tem valor simbólico, existencial e estético profundo. Não resolve problemas práticos, mas abre perguntas, provoca sentidos e desloca certezas.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Jaime Bruna, 6. Ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
BARROS, Manuel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
GULLAR, Ferreira. Autobiografia poética e outros textos. São Paulo: José Olympio, 2014.
PRADO, Adélia. O pelicano. Rio: Editora Guanabara, 1987.