por Luana P. Medeiros
postado em jul. 2025
Retirantes, 1944 (Candido Portinari)
A literatura é uma forma de expressão da arte e, assim como esta, pode ser considerada uma manifestação humana que opera no campo do sensível e do simbólico. Ambas compartilham a capacidade de dar ou forjar sentido ao mundo, provocar afetos e instaurar outras formas de percepção da realidade. Ainda que possam operar em suportes diferentes; pintura, escultura, música ou dança no caso da arte; romance, poesia ou teatro no caso da literatura, elas se entrelaçam no campo das representações culturais.
Literatura e arte são expressões simbólicas fundamentais da experiência humana e de suas formas de estar e criar no mundo. Desde as primeiras manifestações rupestres até as linguagens contemporâneas da performance, do cinema e da poesia marginal, arte e literatura atuam como modos de produzir sentido, narrar realidades e tensionar estruturas sociais. Ainda que operem em linguagens distintas, a arte visual com imagens e formas, e a literatura com palavras e discursos, ambas compartilham um núcleo comum: o impulso de criar mundos possíveis, elaborar afetos e produzir conhecimento por meio da sensibilidade e da imaginação.
A arte, enquanto prática estética e simbólica, constitui-se historicamente como mediação entre o indivíduo e o coletivo, entre o visível e o invisível. Ela permite apreensões não racionais da realidade, revelando dimensões ocultas da existência e instaurando novas formas de percepção. A potência da arte não é como um espelho que reflete o mundo, mas uma ferramenta que nos ajuda a transformá-lo, forjando sentidos e significados ressaltando seu potencial transformador e crítico. A arte não apenas representa, mas inscreve-se como uma prática de reinvenção do sensível, do humano e de disputa simbólica.
Por sua vez, a literatura, entendida aqui em sua dimensão artística e não apenas como repositório de gêneros e estilos, é uma linguagem que interroga a própria linguagem. Ela subverte o signo, dilata os sentidos e questiona o que parece óbvio no discurso social. Ao narrar histórias, a literatura revela estruturas históricas, sociais e afetivas, permitindo ao leitor deslocar-se do lugar da certeza e entrar em contato com o outro, com o diverso e com o contraditório, “a literatura é a pergunta que não se cala diante das respostas que o mundo oferece” (Barthes, 1971).
A interseção entre arte e literatura ultrapassa, portanto, o plano da estética e adentra o território ético e político. Ambas são portadoras de memória, lugares de resistência e invenção de subjetividades. Em contextos de violência simbólica, colonialidade do saber e apagamentos históricos, a arte e a literatura emergem como formas de insurgência cultural.
A arte como linguagem sensível
A arte pode ser compreendida como linguagem que rompe com a lógica utilitária da comunicação cotidiana. Como defende Argan (2005), a arte “não é apenas uma forma de expressão, mas uma forma de conhecimento que se realiza por meios sensíveis”. O conhecimento artístico não se reduz à racionalidade instrumental, pois opera no campo da estética, da experiência e da percepção, construindo outras formas de apreender o mundo. Nesse sentido, a arte se coloca como um discurso contra-hegemônico, a arte contemporânea, ao negar os limites entre vida e estética, revela que o mundo da arte é também um mundo de ideias, onde o conceito e a forma dialogam. Portanto, a arte se insere no campo do simbólico, sendo capaz de gerar crítica social, memória histórica e práticas de resistência.
A visão de Walter Benjamin (1985), sobre arte e literatura articula sensibilidade estética e crítica política. Ao refletir sobre os impactos da técnica na arte e sobre a função social da produção literária, ele inaugura uma forma radical de pensar a cultura como campo de luta. Em um mundo marcado pela industrialização da imagem e pela manipulação das massas, Benjamin propõe uma arte consciente de seu papel histórico, capaz de intervir nos processos sociais e de deslocar os modos de ver, sentir e pensar. Sua obra permanece atual como instrumento de análise crítica das mediações entre estética, política e tecnologia.
Literatura: linguagem, imaginação e crítica
A literatura é uma forma de arte cuja matéria é a linguagem. Como observa Candido (1972), “a literatura não apenas reflete a sociedade, mas também participa de sua constituição simbólica”. Ao criar mundos ficcionais, a literatura expande o real e questiona seus limites, deslocando o olhar do leitor para além da superfície imediata dos acontecimentos.
A linguagem literária é, por excelência, polissêmica e ambígua. Segundo Barthes (1971), “a literatura é a linguagem que se lembra de que ela é linguagem”. Isso quer dizer que a literatura opera um jogo entre significados, ampliando a potência expressiva da palavra e possibilitando a crítica aos discursos instituídos.
Arte e literatura se encontram na função de resistência estética e política. Ambas carregam em si a possibilidade de reinvenção do mundo. Ao tratar da literatura marginal, das artes visuais decoloniais ou da performance negra e indígena, por exemplo, evidencia-se como essas expressões tensionam os discursos coloniais, patriarcais e racistas.
Nesse contexto, é possível compreender que arte e literatura não são apenas campos da fruição, mas territórios de disputa simbólica. Em sociedades marcadas pela colonialidade do saber (Quijano, 2005), essas linguagens tornam-se ferramentas de denúncia, de visibilidade e de construção de outras narrativas possíveis.
A arte e a literatura são expressões essenciais da experiência humana. Mais do que linguagens, elas são territórios de invenção do sensível e do simbólico. Ao articularem memória, imaginação e crítica, tornam-se espaços de criação de subjetividades insurgentes e formas alternativas de conhecimento. Em tempos de necropolítica e esvaziamento do sensível, afirmar a potência da arte e da literatura é também um ato político e ético de resistência.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Trad. Heloisa Dantas; Anne Arnichand; e Álvaro Lorencine. São Paulo: Cultrix, 1971.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São Paulo, v. 24, n. 9, 1972.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005.