Marquês de Condorcet
por Alexsandro M. Medeiros
lattes.cnpq.br/6947356140810110
postado em: abr. 2023
O filósofo e matemático francês Marie Jean Antoine Nicolas Caritat (1743-1794), mais conhecido por marquês de Condorcet, foi o filho mais velho de uma antiga família da nobreza francesa. Estudou primeiramente em Reimns no Colégio dos Jesuítas “e posteriormente no Colégio de Navarra em Paris [...] distinguiu-se como pioneiro da chamada “matemática social’ quando, em 1765, publicou um trabalho que teve, já à época, grande repercussão: Do cálculo integral” (BOTO, 2003, p. 740). Por seus conhecimentos como matemático, Condorcet colaborou com a elaboração da Enciclopédia, se tornou membro da Academia de Ciências e participou de um grupo de intelectuais, filósofos e científicos franceses que popularizaram o Iluminismo e escreveu vários trabalhos dedicados à educação e ao desenvolvimento das ciências. Dentre estes trabalhos temos a respeito da educação as Cinco Memórias sobre a Instrução.
O marquês atuou na vida social como funcionário de Estado e político além de ter uma importante participação nas diversas fases da revolução burguesa, destacando-se na defesa da razão e da garantia dos direitos naturais e políticos do homem.
Condorcet acreditava no progresso da humanidade e no poder civilizador da educação. Defendia a instrução pública e acreditava na necessidade de implementação de um plano de governo de instrução para todos, sendo que inicialmente apenas o nível primário é que seria estendido à totalidade dos cidadãos. Gradativamente a escola gratuita deveria se estender para todos embora apenas a escola primária tivesse à princípio condições de ser universalizada para todos os franceses. “O texto reconhece os limites postos pelas condições objetivas historicamente dadas; obstáculos esses que deveriam ser, com o tempo, progressivamente corrigidos e transpostos” (BOTO, 2003, p. 747).
O Marquês se notabilizou como responsável por formular e apresentar uns dos projetos mais importantes da Revolução Francesa, frente à Assembleia Legislativa em 1792: o Relatório e Projeto de Decreto sobre a organização geral da instrução pública (Rapport et projet de décret sur l’organisation générale de l’instruction publique), onde propunha a autonomia da educação, a instauração do Estado burguês, a direção e vigilância estatal sobre a educação e a independência da escola de qualquer interferência de natureza religiosa. “Dessa forma, a igreja, vista como criadouro de superstição e promotora de obscurantismos, estaria definitivamente afastada da instrução pública. Em suma, o Estado ocuparia o espaço que outrora fora dominado pela Igreja” (GARNICA; GOMES; ANDRADE, 2013, p. 136).
Nos dias 20 e 21 de abril de 1792 foi apresentado à Assembleia Nacional em nome do Comitê de Instrução Pública da Assembleia Legislativa Francesa o Relatório e projeto de decreto sobre a organização da instrução pública, que passaremos a chamar de Rapport. Conforme ponderam Silva e Rafante (2016), o Rapport foi elaborado sob influência das ideias iluministas, todavia, “o plano não obteve o debate que mereceria” (BOTO, 2003, p. 742).
Ao tratar da finalidade atribuída à educação nos “princípios e objetivos gerais da instrução pública”, é dito que cabe à educação prover as necessidades de todos os indivíduos da espécie humana, assegurar o bem-estar, desenvolver toda a extensão dos talentos, conhecer e exercer seus direitos, entender e executar seus deveres. A influência iluminista se torna cada vez mais evidente na medida em que são apresentados mais objetivos, como o seguinte:
Dirigir o ensino de maneira que a perfeição das artes aumente a felicidade da maioria dos cidadãos e a comodidade daqueles que as cultivam, que um grande número de homens se tornem capazes de bem desempenhar as funções necessárias à sociedade, e que o progresso crescente das luzes abra uma fonte inesgotável de recursos para nossas necessidades, de meios para a felicidade individual e de propriedade comum (CONDORCET, 1943, p. 6 apud SILVA; RAFANTE, 2016, p. 361 – grifo nosso).
O Rapport divide o ensino em: escolas primárias, secundárias, institutos (o que a título de comparação poderia ser o nosso nível de Ensino Médio), liceus (estabelecimentos de ensino superior) e Sociedade Nacional das Ciências e das Artes. Os conhecimentos gerais seriam dados na escola primária, oferecendo ainda as habilidades de ler, escrever, contar, as primeiras ideias sobre moral e regras de conduta, além de princípios de cidadania e ordem social que pudessem ser ensinados a essa faixa etária.
Além dos rudimentos da leitura, escrita e aritmética, é importante destacar que esse ensino elementar se destinaria também ao aprendizado dos novos critérios de mensuração criados no movimento revolucionário; instrumentos oficiais para pesos e medidas (que, até então, não possuíam qualquer padronização, dificultando, inclusive, as operações contábeis e as trocas comerciais). A escola primária deveria ensinar, pois, o sistema métrico-decimal, estipulado pelos revolucionários franceses com o fito de padronização dos parâmetros de mensuração (BOTO, 2003, p. 745).
O que seria correspondente ao ensino universitário o Rapport chama de liceus: o quarto grau de instrução, destinados à produção e divulgação do conhecimento erudito, onde são ensinadas todas as ciências. “Nos liceus haveria a tarefa imprescindível de preservação e irradiação do conhecimento em seu sentido pleno – ‘cada geração pode transmitir à seguinte o que recebeu da anterior e o que ela mesma pôde acumular’ (idem, ibid.)” (BOTO, 2003, p. 751). Condorcet chegou até a projetar com cálculos estatísticos da possível situação francesa se o Rapport viesse a ser adotado: “todos os anos, dentre cada 3.500 crianças escolares, 1.000 chegariam até o grau de instrução oferecido pelos institutos; desses, 600 atingiriam a etapa dos liceus; e, finalmente, 400 concluiriam este nível de ensino” (BOTO, 2003, p. 752).
O último nível de ensino, no topo da pirâmide da instrução, seria o da Sociedade Nacional das Ciências e das Artes, onde os mais talentosos poderiam avançar um degrau a mais na instrução. Esta Sociedade “atuaria como elemento aglutinador dos progressos do conhecimento e como um espaço de entrelaçamento criativo e criador das diversas ramificações do saber humano” (BOTO, 2003, p. 753).
Apesar do projeto não ter sido se quer votado pela Assembleia Legislativa (GOMES, 2008, p. 303), ele serviu como um esboço para se pensar uma nova educação, distinta daquela promovida pelo Antigo Regime e de influência marcadamente religiosa.
O Rapport pode ser visto como uma síntese das Cinco Memórias da Instrução, escrita em 1790, onde Condorcet apresenta sua concepção filosófica a respeito da instrução pública, com ênfase na ideia de uma educação nacional, influenciado pelos pensadores enciclopedistas, especialmente por Jean Jacques Rousseau, onde a República é entendida como um regime político governado por leis e a lei é um ato de vontade geral. Essa questão aparece logo na primeira parte (primeira memória) do texto das Cinco memórias sobre a instrução que trata da instrução pública (natureza e objeto da instrução pública), entendida como um dever da sociedade para com os cidadãos. O Estado deve se responsabilizar pela instrução.
La instrucción pública es un deber de la sociedad para con los ciudadanos. En vano se habría declarado que todos los hombres tienen los mismos derechos, en vano las leyes habrían respetado este primer principio de la justicia eterna, si la desigualdad en las facultades morales impidiera al mayor número gozar de estos derechos en toda su extensión (CONDORCET, 2001, p. 81).
Condorcet se destaca ainda no campo das ideias pedagógicas pelo papel atribuído às mulheres e aos negros. Ao contrário de filósofos como Rousseau e Kant que atribuíam um papel secundário para as mulheres, Condorcet denunciava a desigualdade de direitos entre os sexos e propunha a abolição da escravidão e defendia igualmente o direito dos homens negros das colônias francesas que deveriam ser tratados em igualdade de condições tal como o homem branco. Sobre a defesa das mulheres, afirma:
Entre los progresos del género humano más importantes para la felicidad general, debemos contar con la total destrucción de los prejuicios que han establecido entre los dos sexos una desigualdad de derechos, funesta incluso para el sexo al cual favorece. En vano se buscarían motivos de justificación en las diferencias de su organización física, en la diferencia que quisiera encontrarse entre sus capacidades intelectuales, entre sus responsabilidades morales. Esta desigualdad no ha tenido más origen que el abuso de la fuerza, y ha sido inútil que luego se haya tratado de excusarla con sofismas (CONDORCET, 1980, p. 241-242 apud ENGUITA, 2006, p. 13).
Partidário do laicismo nas escolas, Condorcet propunha que a religião fosse ensinada nos templos, ao passo que nas escolas fosse ensinado a moral e o direito.
Referências
BOTO, Carlota. Na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 84, p. 735-762, set., 2003.
CALÇA, Robson Pereira. Duas escolas, duas expressões do Iluminismo. Rousseau e Condorcet: o futuro que o passado ousou projetar. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, 2010.
CONDORCET. Cinco memórias sobre la instrucción pública e otros escritos. Madrid: Edições Morata, 2001.
ENGUITA, Mariano F. Sociedad y educacion en el legado de la Ilustracion: credito y debito. REP - Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 13, n. esp., p. 7-22, 2006.
GARNICA, Antonio Vicente Marafioti; GOMES, Maria Laura Magalhães Gomes; ANDRADE, Mirian Maria. A instrução pública na França revolucionária: considerações a partir do Essais sur l’enseignement en general et sur celui des mathématiques en particulier, de Sylvestre-François Lacroix. Hist. Educ., Porto Alegre, v. 17, n. 39, p. 129-151, jan./abr., 2013.
GOMES, Maria Laura Magalhães. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet. Campinas: Unicamp, 2008.
SILVA, Ribamar Nogueira da; RAFANTE, Heulalia Charalo. O ideário educacional iluminista na produção da escola pública. Quaestio - Revista de Estudos em Educação, Sorocaba, SP, v. 18, n. 1, p. 353-367, mai., 2016.