David Hume
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em nov. 2023
O mais radical dos filósofos empiristas, David Hume (1711-1776), tem como algumas de suas obras o Tratado sobre a natureza humana (publicado em três volumes em Londres entre 1739 e 1740) e Investigação sobre o entendimento humano (1748), sendo que esta é, na realidade, uma reelaboração da obra anterior. Escreveu ainda obras como: Ensaios morais e políticos (publicada em 1741 e que lhe rendeu um bom sucesso literário), Pesquisas sobre os princípios da moral (1751), Discursos políticos (1752), História da lnglaterra (1762, em oito volumes) e Diálogos sobre religião natural (publicada postumamente em 1779).
Hume procurou desenvolver um ambicioso projeto de fundar uma ciência da natureza humana, daí o título de sua principal obra. Para Hume, da mesma forma que Newton construiu um sólido conhecimento da natureza física e Francis Bacon procurou desenvolver um método baseado na observação, o mesmo deveria ser aplicado no que diz respeito ao conhecimento da natureza humana. “Trata-se, então, de percorrer profundamente esse caminho, para fundar definitivamente a ciência do homem em bases experimentais. Em suma, Hume considera poder se tornar o Galileu, ou melhor, o Newton da ‘natureza humana’” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 134). Trata-se de pesquisar a natureza humana utilizando o método experimental.
Como parte da ciência da natureza humana podemos incluir a teoria do conhecimento de Hume, que se encontra sobretudo na primeira das três partes do Tratado e na Investigação sobre o entendimento humano. Para Hume todo o nosso conhecimento tem origem nas impressões e ideias ou, mais precisamente, todo o conteúdo da mente humana são percepções.
Nossas ideias sobre o real se originam de nossa experiência sensível, dos dados fornecidos pelos sentidos, sejam internas – como a percepção de um estado de tristeza – seja externa – como a visão de uma paisagem, o aroma de uma flor, etc. A experiência é o critério de validade do conhecimento e além, as relações ou associações entre ideias.
Nós passamos facilmente de uma ideia a outra que se lhe assemelhe (por exemplo: urna fotografia me faz vir a mente a personagem que representa), ou então de uma ideia a outra que habitualmente se apresenta a nós como ligada a primeira no espaço e no tempo [...] a ideia de levantar âncora suscita a ideia da partida do navio, e assim se poderiam multiplicar os exemplos) (REALE; ANTISERI, 2005, p. 136).
Trata-se de uma mecânica mental onde na base está a percepção das ideias e a associação entre elas. “As ideias são representações da memória e da imaginação e resulta das impressões como suas cópias modificadas; podem ser associadas por semelhança, contiguidade espacial e temporal e causalidade” (HUME, 1999, p. 8). Essa concepção também é conhecida como empirismo psicológico, uma vez que constitui uma teoria do conhecimento baseada na análise das funções subjetivas aí envolvidas.
Crítica a Descartes
Com base neste empirismo psicológico temos a chamada crítica de Hume da identidade pessoal, ou seja, o filósofo questiona a noção de René Descartes da mente como substância pensante (res cogitans), afirmando “que não podemos ter nenhuma representação de nossa mente independente da nossa experiência, ou seja, de nossas impressões sensíveis e da maneira como as elaboramos” (MARCONDES, 2002, p. 183). A crítica de Hume levanta fortes objeções à concepção cartesiana de subjetividade que, posteriormente, o filósofo alemão Immanuel Kant tentará resolver com sua concepção do sujeito transcendental.
Hume questiona o modelo cartesiano de mente como substância pensante, a res cogitans de Descartes (ver III, 2) [...] Não há como nos representarmos o pensamento puro, independente de qualquer conteúdo. Para Hume, jamais posso apreender a mim mesmo sem algum tipo de percepção. O “eu” (self), portanto, nada mais é do que um feixe de percepções que temos em um determinado momento e que varia na medida em que nossas percepções variam. Não somos agora o mesmo que fomos algum tempo atrás, nem o mesmo seremos dentro em pouco, pois a cada momento novas percepções são acrescentadas ao feixe, e outras empalidecem ou desaparecem. Tudo o que temos, por conseguinte, é, mais uma vez, força do hábito, do costume, da memória, e é apenas isso que assegura a continuidade do que consideramos o “eu” (MARCONDES, 2002, p. 183).
O eu não é uma impressão determinada, nem constante e nem invariável. A identidade do eu resulta do hábito, repetição ou costume que eu tenho de uma regularidade desse algo que chamamos nosso eu.
Além do empirismo psicológico temos o empirismo lógico, desenvolvido por filósofos posteriores mas cujas bases já se encontram no filósofo inglês. Do ponto de vista lógico, as palavras só têm significado na medida em que se referem a fatos concretos. Não faz sentido, portanto, abordar conceitos de ordem metafísica, já que estes se referem a realidades exteriores ao sujeito, sem qualquer traço de experiência sensível. Quando um filósofo como Descartes afirma que existem duas substâncias no universo, a matéria e o espírito, por exemplo, este seria um juízo sem significado, pois o conceito de uma substância material ou espiritual não pode ser extraído da realidade sensível.
Por isso as ideias são sempre de natureza particular. É somente ao associá-las que resulta o universal. Assim, por exemplo, a ideia de um ser infinitamente inteligente, sábio e bom, resulta de uma operação de nossa mente, aumentando sem limites essas qualidades de bondade e sabedoria. Entendido desta forma, o conhecimento se deve a relação entre as ideias.
Crítica a noção de causalidade
Outra crítica do filósofo inglês é sobre a noção de causalidade. A metafísica racionalista concebe a relação causal como conexão necessária entre os fatos. A noção de causalidade explica o real em termos da relação de causa e efeito. Hume critica a noção de causalidade a partir da ideia de que o que vemos como esta relação é apenas um hábito, uma habitual associação entre o posterior e o anterior. A noção de causalidade não é mais do que uma crença baseada no hábito. Tudo o que a experiência nos revela é uma conjunção constante entre fenômenos, e não uma conexão necessária que chamamos causalidade.
O fato de um fenômeno ser sempre seguido por outro no tempo, faz com que os dois sejam relacionados como se houvesse conexão causal entre eles. Causa e efeito, enquanto impressões sensíveis, não seriam mais que o anterior e o posterior de uma sucessão temporal, transformados em elos de uma vinculação necessária (HUME, 1999, p. 10).
Embora Hume não pretendesse atacar pura e simplesmente o trabalho dos cientistas, pois a ciência é um tipo de conhecimento que se baseia na relação de causa e efeito, a consequência de sua teoria do conhecimento é a de que não é possível ter conhecimento científico da natureza. Seus fundamentos estão baseados numa crença sem qualquer estruturação lógica. A causalidade seria muito mais uma ideia derivada da nossa própria mente e não uma conexão entre dois fenômenos da qual resulta uma característica do mundo natural. “Para Hume, a causalidade resulta apenas de uma regularidade ou repetição em nossa experiência de uma conjunção constante entre fenômenos que, por força do hábito, acabamos por projetar na realidade, tratando-a como se fosse algo existente” (MARCONDES, 2002, p. 183).
Mas se não podemos falar em causalidade, segundo o filósofo inglês, como entender então a relação entre os fenômenos da natureza? O filósofo prefere falar em probabilidade:
para Hume, se todo nosso conhecimento provém de impressões sensíveis e da reflexão sobre nossas ideias, se essas impressões e ideias são assim sempre variáveis, se a causalidade e a identidade do eu resultam apenas de regularidade, repetição, costume e hábito, então, em consequência, jamais temos um conhecimento certo e definitivo; toda a ciência é apenas resultado da indução, e o único critério de certeza que podemos ter é a probabilidade. Hume foi um dos filósofos que mais influenciou, em suas origens, a concepção de uma ciência hipotética e probabilística, posição que veio a ser predominante contemporaneamente (MARCONDES, 2002, p. 184).
Quando descobrimos uma certa semelhança entre ideias que por outros aspectos são diferentes, empregamos um único nome para indicar. Forma-se assim no homem o hábito de considerar unidas de alguma maneira entre si as ideias designadas por um único nome. Dessa forma, o próprio nome suscitará em nós não uma só daquelas ideias, nem todas, mas o hábito que se tem de considerá-las juntas e, por conseguinte, uma ou outra, segundo a ocasião.
Dessa maneira, ele é um empirista, no sentido que a percepção repetida e habitual de uma determinada impressão ou fato nos leva a elaborar ideias sobre os fenômenos naturais, através de generalizações indutivas. De acordo com o seu pensamento:
Esse princípio é o costume ou o hábito. Visto que todas as vezes que a repetição de um ato ou de uma determinada operação produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem ser impelida por nenhum raciocínio ou processo do entendimento, dizemos sempre que essa propensão é efeito do costume [...] O costume é, pois, o grande guia de vida humana. É o único princípio que torna útil nossa experiência e nos faz esperar, no futuro, uma série de eventos semelhantes aqueles que apareceram no passado. Sem a influência do costume, ignoraríamos completamente toda questão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos. Nunca poderíamos saber como ajustar os meios em função dos fins, nem como empregar nossas faculdades naturais para a produção de um efeito. Seria ao mesmo tempo, o fim de toda ação como também de quase toda a especulação (HUME, 1999, p. 38).
Além dos hábitos e costumes, ele defende que as conclusões indutivas são percepções repetidas que nos chegam da experiência sensorial. Salta-se para uma conclusão geral, da qual não tem-se experiência sensorial e a certeza das proposições que se relacionam com fatos não é, portanto, fundada sobre o princípio de contradição.
Assim, segundo o pensador, a conclusão indutiva, por maior que seja o número de percepções repetidas, não possui fundamento lógico. Será sempre um salto do raciocínio impulsionado pela crença. Questionando a validade lógica do raciocínio indutivo, o grande valor desse pensamento foi ter deixado um importante problema para os epistemologistas o qual se constitui: é ou não possível partir-se de experiência particulares para chegar-se a conclusões gerais, representadas pelas leis científicas?
Assim, Hume questiona o princípio da causalidade, diz que é um raciocínio baseado em conexões de causa e efeito constatados na experiência mas, quando dizemos que o fato A causou B e não há nenhuma experiência que sustente a relação, trata-se de um raciocínio arbitrário. Nesse sentido, Hume critica os que atribuem demasiada importância ao conceito de causalidade. O raciocínio de causa e efeito é, em síntese, um raciocínio provável, cujo fundamento só é dado na experiência. Hume revela aqui o seu ceticismo teórico e recomenda que os cientistas apresentem suas teses como probabilidades lógicas e não como certezas irrefutáveis.
Hume foi, portanto, um filósofo empirista quanto ao problema da origem do conhecimento e um cético em relação à metafísica (a partir do seu questionamento do princípio de causalidade e identidade pessoal), levando às últimas consequências a tradição intelectual inglesa, desde os nominalistas da escola de Oxford, no século XIII, até a tradição empirista de Francis Bacon e John Locke.
Referências
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano; Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores)
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos Pré-socráticos a Wittgenstein. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia 4: de Spinoza a Kant. São Paulo: Paulus, 2005.