João Amós Comênio

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em out. 2022

 

Uma das características que marcam a modernidade é a busca por um método. O filósofo inglês Francis Bacon procurou inovar nesse campo, rejeitando o método dedutivo de Aristóteles, em favor do método indutivo. O filósofo francês René Descartes escreveu uma obra intitulada exatamente Discurso sobre o Método. Finalmente, Galileu Galilei conseguiu se notabilizar por conseguir conciliar o método empírico com o formalismo matemático.

Seguindo essa tendência de busca por um método, seja no campo filosófico ou científico, um método para conhecer corretamente, então deve existir igualmente um método para ensinar de forma mais rápida e mais segura, é o que pensava o educador tcheco (nasceu na Morávia em 1592 e faleceu em 1670, antigo Reino da Boemia, que hoje corresponde à parte oriental da República Checa) e pastor protestante (da Igreja dos Morávios) João Amós Comênio (é comum encontrarmos também a grafia de seu nome Comenius, que é a forma latina do nome checo Komenský, que significa habitante de Komna, localidade de origem da sua família).


Retrato de Coménio da autoria de Jurriaen Ovens_Museu de Amsterdan

 

Comênio é conhecido como o Pai da Didática Moderna autor da obra Didática Magna (do qual há uma espécie de resumo, intitulado Breves disposições para a reorganização das escolas no reino da Boêmia). O título de alguns dos seus capítulos nos ajudam a entender a preocupação de Comênio com a questão do método, como por exemplo: “Como se deve ensinar e aprender com segurança, para que seja impossível não obter bons resultados”; “Bases para rapidez do ensino, com economia de tempo e de fadiga”.

Eis como o próprio Comenius define o objetivo da sua obra:

A proa e a popa da nossa Didática será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atrativo e mais sólido progresso (COMÉNIO, 2015, p. 44).

 

Mas o método não é a única preocupação de Comenius com a sua obra. A questão do método se insere em uma questão mais ampla, antropológica, de formação do ser humano. Antes de tratar do método, temos na obra de Comenius uma vasta e profunda reflexão em torno do homem que podemos facilmente incluir dentro da tradição do humanismo cristão. Mais do que isso, a perspectiva educacional de Comenius aponta “para a formação do homem integral, abrangendo completamente todo o potencial humano, isto é, tanto o físico e racional quanto o emocional e o espiritual, possibilitando, assim, uma completa formação no aspecto religioso, moral e ético” (CARDOSO, 2007, p. 34).

Como humanista cristão, a proposta de Comenius se refere a uma formação tanto intelectual e moral, como espiritual. Eis porque podemos dizer que a sua proposta se baseia no tripé: Instrução, Virtude e Religião (que é tema do cap. V da Didática Magna). A instrução se refere ao conhecimento pleno das coisas, a virtude se refere à moral e a religião a formação espiritual dos seres humanos.

Acompanhando o movimento de reforma religiosa “e os pedidos de reforma do sistema pedagógico medieval, preconizadas por Erasmo, Rabelais e Montaigne” (CARDOSO, 2007, p. 45) e conhecedor das doutrinas sobre educação que “haviam professado Lutero, Melanchton e Calvino” (CARDOSO, 2007, p. 45), Comenius critica o método escolástico que, nesse caso, é uma expressão utilizada para criticar o currículo universitário vigente na Europa do século XV e propõe, igualmente, uma reforma.

A reforma da Igreja (Reforma Protestante) trouxe consigo a reforma da educação. Lembremo-nos de que Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, o que implica na necessidade de ler e interpretar as Escrituras Sagradas, fazendo com que Lutero criasse “um sistema de educação elementar ‘para que o povo pudesse aprender a ler a Bíblia em alemão’” (CARDOSO, 2007, p. 53). Além disso, a Reforma Protestante visava, através da instrução, “capacitar homens e mulheres para o desempenho do trabalho útil e à prosperidade material do Estado” (CARDOSO, 2007, p. 52). Diante de tal necessidade, Lutero não desconsiderou a necessidade de uma reforma educacional que contemplasse, entre outros fatores: uma educação pública para ambos os sexos, além de um plano de estudos que incluísse o ensino das línguas, da história, do canto, da música, da matemática e de exercícios físicos (cf. CARDOSO, 2007, p. 54).

Contribuiu para as ideias de reforma do sistema educacional de Comênio o fato de que, aos 16 anos (em 1608), matriculou-se na escola de latim de Prerov, que

havia passado por uma reforma sob a influência do educador Carlos Zerotín, tendo como parâmetro o modelo da educação escolar calvinista, oriundo de Genebra, na Suíça. A ideia de Carlos Zerotín era substituir o modelo educacional jesuíta por um modelo que se adaptasse mais ao espírito dos alunos, sendo menos literária e mais prática, não se limitando à memorização de textos ininteligíveis atribuído ao sistema jesuítico (MEIRA; XAVIER, 2020, p. 3).

 

À Comênio foi confiada mais tarde a direção da escola de Prerov, de que havia sido aluno. É nesse período que ele irá compor os Grammaticae facilioris praecepta e escreve o pequeno tratado De Angelis que se perdeu. “Em 1618, é nomeado pastor de Funek, na Alorávia, e reitor das escolas dos Irmãos, ao mesmo tempo que se casa com Madalena Vizovska” (GOMES apud COMÉNIO, 2015, p. 7 – Joaquim Ferreira Gomes é o autor da introdução da tradução desta obra de Coménio). Quando já era pastor, escreve Cartas ao Céu onde, baseado nos princípios cristão, preconiza a solução dos problemas sociais.

A partir de 1627, Comênio se dedica à obra de reforma pedagógica “pela qual se tinha interessado já quando era estudante em Herborn e durante o seu reitorado em Prerov e em Fulnek” (GOMES apud COMÉNIO, 2015, p. 9-10).

Comênio inovou ao se empenhar na elaboração de manuais onde procurava detalhar o procedimento das atividades de ensino, segundo gradações de dificuldades e de acordo com a capacidade de assimilação dos alunos.

A proposta de Comênio é ousada: “um método universal de ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 2015, p. 45). Ensinar a arte das artes, que é a de formar o homem, para crianças e jovens, de ambos os sexos, sem excluir ninguém, de modo que “possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a piedade e, assim, nos anos da primeira juventude, receba a instrução sobre tudo o que é da vida presente e futura, de maneira sintética, agradável e sólida” (MEIRA; XAVIER, 2020, p. 6-7). Nas palavras do próprio Comênio:

ensinar com tal certeza, que seja impossível não conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado e sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com sumo prazer para uns e outros. E de ensinar solidamente, não superficialmente e apenas com palavras, mas encaminhando os alunos para uma verdadeira instrução, para os bons costumes e para a piedade sincera (COMENIUS, 2015, p. 45-46).

 

A ousada proposta de Comênio de elaborar um método universal de ensinar tudo a todos, estava em conformidade com a sua ideia de elaborar uma enciclopédia cujo título seria Filosofia cristã ou Pansofia (pan = tudo; sophia = sabedoria; ou seja, toda sabedoria): “Esta obra, que tomará diversas formas à medida que a sua doutrina pansófica se vai explicitando, será o grande sonho da sua vida, mas Comênio nunca conseguirá realizá-lo completamente” (GOMES apud COMÉNIO, 2015, p. 13-14).

A proposta de Comênio de uma reforma pedagógica era parte de uma visão reformista ainda mais ampla, de reforma da própria sociedade, que se daria através dos seguintes meios:

1. unificação do saber e sua propagação, graças a um sistema escolar aperfeiçoado, sob a direção de uma academia internacional; 2. coordenação política, sob a direção de instituições internacionais tendentes a assegurar a manutenção da paz; 3. reconciliação das Igrejas, sob a égide de um cristianismo tolerante (GOMES apud COMÉNIO, 2015, p. 27).

 

Para que a sociedade pudesse dispor de Igrejas e Estados bem ordenados, com boas administrações, era preciso, antes de mais, preparar as escolas e fazê-las “florescer, a fim de que sejam verdadeiras e vivas oficinas de homens e viveiros eclesiásticos, políticos e econômicos. Assim facilmente atingiremos o nosso objetivo; doutro modo, nunca o atingiremos” (COMENIUS, 2015, p. 71). Esse é o presente mais belo que podemos oferecer à Pátria: “o de instruir e educar a juventude” (COMENIUS, 2015, p. 46).

Comênio tinha um projeto de tolerância e paz mundial que seria possível através de instituições internacionais “pelo que é justamente considerado precursor do actual movimento ecuménico, da Sociedade das Nações, da ONU, da UNESCO e do ‘Bureau lnternational d'Education’” (GOMES apud COMÉNIO, 2015, p. 27).

Didática Magna 

A obra Didática Magna, pela qual Comenius é conhecido como o pai da didática moderna, foi escrita na Boêmia, entre 1628 a 1632, porém, “publicada pela primeira vez em Amsterdam, Holanda, em 1657”. (MEIRA; XAVIER, 2020, p. 5).

A obra começa falando sobre o homem como sendo a mais alta a mais absoluta e a mais excelente das criaturas (cap. I), sua relação religiosa com a vida do espírito – a partir do que podemos chamar de uma cosmovisão cristã – pela qual seu fim último está fora desta vida (cap. II), e de como “Esta vida não é senão uma preparação para a vida eterna” (título do cap. III). Dos capítulos I ao VI, Gomes (apud COMÉNIO 2015, p. 33 – Joaquim Ferreira Gomes é o autor da introdução da tradução desta obra de Coménio) destaca que consiste em uma “autêntica apoteose do homem, apresenta os fundamentos teológicos e filosóficos da educação. Baseado sobretudo nas Sagradas Escrituras [...]”. Essa preparação para a vida eterna se faz em três graus: conhecer-se a si mesmo (e consigo todas as coisas), governar-se e dirigir-se para Deus (cap. IV). Para sua formação, é preciso levar em consideração que as semente da instrução, da moral e da religião são infundidas no homem pela natureza (cap. V).

A obra trata da importância da formação do homem (cap. VI), começando pela infância (cap. VII), em seguida a juventude (cap. VIII e IX), de como a educação deve ser universal e da importância de se criar escolas com esse propósito (cap. VIII e X).

Comênio critica as escolas pelo de fato de não terem ainda correspondido ao seu fim (cap. XI) e por isso podem ser reformadas (cap. XII), sendo que o fundamento para tais reformas é a ordem em tudo (cap. XIII) e que tal ordem deve buscar-se na natureza (cap. XIV).

A partir do capítulo décimo sétimo, Comenius passa a tratar da escola e dos fundamentos do ensino e da aprendizagem: de como se deve ensinar e aprender para que seja impossível não obter bons resultados (cap. XVI); como ensinar e aprender com facilidade (cap. XVII); ensinar e aprender solidamente (cap. XVIII); ensinar e aprender com rapidez (cap. XIX). É preciso considerar que dos capítulos VII ao XIX temos, no dizer de Gomes (apud COMÉNIO 2015, p. 34), os princípios da didática geral.

No capítulo vigésimo temos a didática especial (GOMES apud COMÉNIO 2015, p. 36) que se inicia com a questão do método para ensinar: as Ciências em geral (cap. XX); as Artes (cap. XXI); as Línguas (cap. XXII); a Moral (cap. XXIII); a Devoção ou Piedade (cap. XXIV).

Dos capítulos XXVII ao XXXI temos um esboço de um plano orgânico dos estudos (GOMES apud COMÉNIO 2015, p. 38), no qual Comênio aborda como os conteúdos de conhecimento devem ser trabalhados nos diferentes níveis de acordo com as necessidades dos estudantes: como as crianças devem ser educadas utilizando recursos áudio visuais (cap. XXVIII), o ensino da língua materna (cap. XXIX), o latim na adolescência e o ensino das demais áreas do conhecimento (cap. XXX) e o ensino universitário após os dezoito anos (cap. XXXI).

Cosmovisão Cristã 

Os primeiros capítulos da Didática Magna demonstram claramente como as convicções cristãs de Comenius influenciaram a sua proposta. Quem é o homem? Qual o sentido da vida? Como esse sentido se relaciona com a ideia de vida eterna? Questões como estas são respondidas por Comenius de acordo com a cosmovisão cristã e, consequentemente, demonstram que a sua visão de educação também se fundamenta em uma perspectiva antropológica cristã. “O autor, em harmonia com o pensamento protestante, considera os objetivos da vida humana e suas potencialidades, para a glória de Deus neste mundo, preparando-se para a eternidade” (MEIRA; XAVIER, 2020, p. 9).

Comenius acredita no poder da educação como instrumento de Deus para renovar a humanidade, pois se trata de uma humanidade decaída, como consequência do pecado original devendo, portanto, ser redimida: “não há nenhum outro caminho mais eficaz para corrigir as corrupções humanas que a recta educação da juventude” (COMENIUS, 2015, p. 62).

O objetivo da educação é tornar os homens sábios, prudentes, piedosos e, ao fazer isto, ele estará se reaproximando da sua natureza divina.

Essa educação deve ser para todos: ricos e pobres, meninos e meninas, crianças e jovens, de todas as idades, pois não há privilégios na criação de Deus, todos pertencem igualmente à criação e são aptos a gozar de sua bem-aventurança. Excluir quem quer que seja de receber uma educação adequada, proibindo alguns de aprimorarem seus talentos, seria uma ofensa ao próprio Deus “que quer ser conhecido, amado e louvado por todos aqueles em quem imprimiu a sua imagem” (COMENIUS, 2015, p. 139).

A educação, que se inicia na família, com os pais, deve ter prosseguimento nas escolas, direcionando homens e mulheres para a prática das virtudes e da sabedoria: “a formação das virtudes deve começar desde a mais tenra idade, antes que os espíritos tenham contraído vícios” (COMENIUS, 2015, p. 348).

Referências 

CARDOSO, Rogério da Silva. Didática Magna de Comenius: uma proposta pedagógica confessional cristã sob a influência do pensamento humanista protestante. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2007.

COMÉNIO. Didáctica Magna. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.

MEIRA, José Normando Gonçalves; XAVIER, Wendell Lessa Vilela. Cosmovisão Cristã na Didática Magna de Comenius. Educação, Escola & Sociedade, v. 13, p. 1-20, 2020. Acesso em: 24 mar. 2022.