René Descartes

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em nov. 2023


O século XVI foi uma época de profundas transformações na visão do homem ocidental, marcada por verdadeiras revoluções, descobertas e questionamentos. Todas as verdades tidas até então como indubitáveis e absolutas passaram a ser questionadas acarretando então um certo clima de ceticismo. Parte desses questionamentos se deviam as descobertas da nova física, que colocou em dúvida a velha visão de mundo medieval geocêntrica da Terra como centro do universo (geocentrismo). Por outro lado, a filosofia também passou a questionar e duvidar das verdades dogmaticamente estabelecidas.

Uma das grandes questões que irão nortear a reflexão filosófica nesse cenário de incertezas e dúvidas é se seria possível encontrar uma via segura para se atingir o conhecimento verdadeiro. Essa preocupação se generalizou a partir do final do século XVI e caracteriza a investigação filosófica do século XVII e XVIII a partir de duas grandes orientações metodológicas: o empirismo e o racionalismo. Um dos principais representantes desta última foi o filósofo francês René Descartes (1596-1650), também conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius.

O racionalismo e o empirismo surgiram como uma resposta na tentativa de se chegar a um conhecimento verdadeiro mas, para isso, era preciso antes pensar a questão do método e, por isso, se pode dizer que no início da modernidade boa parte das especulações filosóficas serão marcadas pela questão do método. Um método que melhor pudesse conduzir ao conhecimento da verdade pois o ser humano sempre teve essa pretensão de buscar a verdade das coisas. Qual a melhor forma ou método de se chegar ao conhecimento verdadeiro? Como afastar-se das ilusões que conduzem ao erro? Como evitar cair na ilusão que por tantos séculos serviu de base para o conhecimento humano de que a Terra era o centro do universo e os demais astros e até mesmo o sol giravam ao redor da Terra? Como se afastar do falso conhecimento e encontrar o conhecimento verdadeiro?

O esforço filosófico de Descartes se dá tanto no campo do conhecimento científico quanto no campo do conhecimento filosófico. O primeiro será tratado de forma mais específica na sua obra Discurso sobre o Método, obra considerada o marco inicial da filosofia moderna. Já a parte relativa ao conhecimento filosófico encontramos sobretudo na obra Meditações Metafísicas.

O conhecimento e a ciência exigem trabalho, questionamento, método. E o que Descartes procurou foi o caminho de uma ciência universal, feita a partir de novos fundamentos. Por tais motivos, Descartes é considerado como o fundador da filosofia moderna, como sugere Chauí (2013, p. 140, grifo da autora): “Com Descartes, tem início propriamente a filosofia moderna, pois é ele o primeiro a propor a figura do sujeito do conhecimento como fundamento do conhecimento verdadeiro”, ou até mesmo o “pai da filosofia moderna(REALE; ANTISERI, 2004, p. 283, grifo dos autores).

Mas as contribuições de Descartes também foram bastante significativas no campo da matemática por sugerir a fusão da álgebra com a geometria dando origem ao que conhecemos como geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome (sistema de Coordenadas no plano cartesiano ou espaço cartesiano).

O interesse de Descartes pela matemática surgiu cedo, aos oito anos de idade, quando ingressou no College de la Flèche. A geometria analítica de Descartes apareceu em 1637 no pequeno texto chamado Geometria, como um dos três apêndices do Discurso sobre o Método. A ideia para o sistema de coordenadas aparece na segunda parte do Discurso sobre o Método, onde Descartes apresenta a ideia de especificar a posição de um ponto ou objeto numa superfície, usando dois eixos que se intersectam e na obra Geometria ele desenvolve o conceito que apenas tinha sido referido na obra anterior. A este respeito, vale a pena considerar que a ideia de representação de elementos por meio de coordenadas,

 

que por vezes se atribui ao Filósofo, era já conhecida - e, em certos domínios, aplicada - bem antes dele; Fermat, seu contemporâneo, a expõe, de resto, de maneira bem mais sistemática, em seu Isagoge, do que o faz Descartes no Livro Primeiro da Geometria. Mas é Descartes que abre caminho ·para uma identificação das estruturas da Álgebra e das da Geometria (GRANGER, 1973, p. 18).

O Racionalismo de Descartes 

O racionalismo (de ratio, razão) enxerga no pensamento e na razão a principal fonte de conhecimento. O conhecimento verdadeiro é aquele que tem uma validade universal e para alcançar esse nível ele precisa de uma base racional. “Se minha razão julga que deve ser assim, que não pode ser de outro modo e que, por isso, deve ser assim sempre e em toda parte, então (e só então), segundo o modo de ver do racionalismo, estamos lidando com um conhecimento autêntico” (HESSEN, 2000, p. 36). Exemplo disso temos na expressão: o todo é maior do que as partes. É fácil perceber que afirmar o contrário desta assertiva parece algo contraditório. Este seria um tipo de juízo que possui uma necessidade lógica e universal. Os principais filósofos racionalistas são: René Descartes (1596-1650), Nicolas Malebranche (1638-1715) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).

Uma das preocupações centrais do pensamento do filósofo francês René Descartes é com o problema do conhecimento. O objetivo é a busca de uma verdade primeira que possa ser tomada como certa e indubitável.  Mas o conhecimento que recebemos pelos sentidos já demonstrou que pode nos induzir ao erro e a ilusões, por isso, Descartes inicialmente opta por fazer uma espécie de desconstrução, ou seja, antes de poder chegar a algum conhecimento verdadeiro, ele propõe que se possa colocar em dúvida tudo o que já conhecemos, desde as afirmações do senso comum, o testemunho dos sentidos, os argumentos de autoridade, e até mesmo as verdades deduzidas pelo próprio raciocínio e a realidade do mundo exterior, convertendo assim, a dúvida em método. Destes, os “conhecimentos provenientes dos sentidos são os mais facilmente postos em dúvida” (GRANGER, 1973, p. 14).

Podemos duvidar de tudo quanto conhecemos. De que as coisas são realmente como imaginamos que elas sejam, propõe Descartes. Mas em algum momento, o filósofo terá que interromper essa cadeia de dúvidas. O que faz com que Descartes não possa mais supervalorizar a dúvida do conhecimento? Eis a resposta: o próprio ser que pensa, o eu penso. E por quê? Porque mesmo que eu duvide que sou um ser que pensa, eu só posso fazê-lo pensando. Chegamos então a famosa frase de Descartes: Se duvido, penso; se penso, existo: Penso, logo, existo. “Minha existência como coisa que pensa está doravante garantida e vejo claramente que esta coisa pensante é mais fácil, enquanto tal, de conhecer do que o corpo, a cujo respeito até agora nada me certifica” (GRANGER, 1973, p. 14).

A existência do ser pensante se torna o fundamento e o ponto de partida de onde Descartes constrói todo o seu pensamento. Mesmo que não tenha certeza de nada do que conheço, posso pelo menos admitir, como algo certo e indubitável, que existo como um ser que pensa, sou uma coisa pensante (res cogitans).

A partir desta verdade primeira, Descartes passa a analisar se não existe nenhuma ideia em mim (no ser que pensa) que possa ser tomada também como verdade indubitável. E a segunda certeza, nesta cadeia de razões, é a existência de Deus. Com efeito, diz Descartes, o homem possui em si a ideia de perfeição e de infinito, mas estas duas ideias não podem ter-nos sido dadas pela experiência, pois não existe nada no mundo que possa representar seja a ideia de perfeição, seja a ideia de infinito, de onde Descartes conclui que esta ideia só pode ter-nos sido dada por um ser perfeito e infinito, que no caso, é Deus. “É preciso, pois, que esta ideia de perfeição que reconheço em mim provenha, não de mim, mas de um ser bastante poderoso e real para dar conta da riqueza mesma de sua ideia. Tal é a primeira prova da existência de Deus pelos efeitos” (GRANGER, 1973, p. 14).

Além disso, a existência de Deus será a garantia de que os objetos do mundo exterior (res extensa) pensado por ideias claras e distintas são reais, pois se Deus é infinitamente perfeito ele não pode nos enganar. Portanto, o mundo tem realidade e uma delas a que percebo primeiramente é o meu próprio corpo. Assim, Descartes distingue o mundo a partir de três substâncias: a res cogitans (a natureza do ser pensante), a res extensa (a natureza material do mundo) e a res infinita (o ser infinito, que é Deus).

Podemos perceber, neste rápido relato, a valorização da razão e do intelecto como critério de validade para se atingir o conhecimento verdadeiro. Até o conhecimento de Deus é uma consequência desta sequência lógica de raciocínios. A questão de Deus e da alma são questões essenciais que devem ser demonstradas antes pela razão natural e pela filosofia que pela teologia, segundo o filósofo francês. A existência de Deus não apenas se infere das Sagradas Escrituras, como também pode ser provada pela razão natural. Tudo o que se pode saber de Deus pode ser mostrado por razões que não precisam ser buscadas em outro lugar que não em nós mesmos e o nosso espírito é capaz de o fornecer, de modo que Descartes pretende dispor por quais meios isto se pode fazer e qual via é preciso tomar para chegar ao conhecimento de Deus. Vale ressaltar, inclusive, que a primeira versão da obra Meditações Metafísicas, publicada em 1641, tinha como título: “Meditationes de prima philosophia in qua Dei existentia et animae immortalitas demonstrantur (Meditações Metafisicas onde se demonstra a existência de Deus e a imortalidade da alma)”. (REALE; ANTISERI, 2004, p. 285).

Descartes admite ainda a existência de ideias inatas, que não dependem da realidade exterior nem da ação dos sentidos ou da imaginação (como é o caso da ideia de infinito e perfeição). Não é todo o conhecimento que é inato, para Descartes, mas na nossa mente, temos algumas noções primitivas, como se fosse uma ideia originária, sob cujo padrão se formam os nossos outros conhecimentos.

Discurso sobre o Método 

A obra Discurso sobre o método é considerada por Reale e Antiseri (2004, p. 285, grifo dos autores) como a “‘magna carta’ da nova filosofia”. A cultura europeia da época estava passando por uma série de transformações e as novas descobertas que darão origem a revolução científica exigiam também uma nova forma de abordar a questão do conhecimento. A perspicácia de Descartes foi perceber a falta de um método que pudesse dar conta das novas descobertas não apenas no campo científico mas também no campo filosófico.

No Discurso sobre o Método sua preocupação central reside em como é possível conhecer, como podemos ter acesso a ideias verdadeiras, livre de erros, que resista a toda dúvida graças ao questionamento de seus próprios princípios. Para isso, Descartes formulou quatro regras ou princípios que são consideradas essenciais para se chegar ao conhecimento verdadeiro nas ciências.

 

Referências 

REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia 3: do Humanismo a Descartes. São Paulo: Paulus, 2004.

CHAUÍ, Marilena. Iniciação à Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 2013.

DESCARTES, René. Discurso do método; As paixões da alma; Meditações metafísicas; Objeções e Respostas. Introdução de Gilles-Gaston Granger; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

GRANGER, Gilles-Gaston. Introdução. In: DESCARTES, René. Discurso do método; As paixões da alma; Meditações metafísicas; Objeções e Respostas. Introdução de Gilles-Gaston Granger; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.