HINDUÍSMO

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em: out. 2023

Não existe no Hinduísmo uma obra única que seja a fonte principal de sua tradição, como acontece no Cristianismo ou no Islamismo que têm como base, respectivamente, a Bíblia e o Alcorão.

Uma das fontes principais de conhecimento do Hinduísmo está nos Vedas: uma coleção de quatro escrituras antigas redigidas pelos vedic (videntes) ou sábios anônimos como o Rig Veda, Sama Veda, Yajur Veda e o Atharva Veda (sendo que desses quatro, há indícios de que o Atharva Veda possa ter sido incorporado posteriormente ao conjunto dos Vedas).


O Rig Veda é a exposição primária da verdadeira religião (satya dharma), distribuída em 10 livros com um total de 1.028 hinos [...] Deles se extraíram os hinos do cantochão (saman), que formaram o Sama Veda. Outra adaptação da revelação básica, feita para o “sacrífico” (yajur), é o que se denomina Yajur Veda (ARCHER, 1956, p. 70).

 

Outro conjunto de escritos são os Upanishads (उपनिषद्) que surgiram como comentários sobre os Vedas, e por isso são conhecidos como Vedānta (o fim do Veda). São compostos de vários livros que são extensões ou explicações de cada um dos quatro Vedas. Os mais antigos e mais longos dos Upanishads são o Brhadaranyaka e Chhandogya. O termo Upanishads deriva do sânscrito: upa (“perto”), ni (“embaixo”) e chad (“sentar”), representando o ato de sentar-se no chão, próximo a um mestre espiritual, para receber instrução.

Há também os grandes épicos, como o Mahabharata (que contém o Bhagavad Gita) e o Ramayana.

 

Divindade e Deuses

 

Apesar da veneração de inúmeros deuses e deusas, nem todos consideram o Hinduísmo como uma religião politeísta, como é o caso da filosofia Vedanta de Shankara, autor de comentários sobre as Upanishads e formulador doutrinal do Advaita Vedanta (uma das três escolas de Vedanta do pensamento monista hindu) ou Vedanta não dualista. Shankara que pode ser considerado como “o último e maior dos comentadores escolásticos” (ARCHER, 1956, p. 93). Advaita literalmente significa não dual (“não dois”), por isso essa tradição é considerada monista. Assim, a unidade de existência é um dos grandes temas da tradição Vedanta e um pilar essencial da sua filosofia. Tudo o que vemos e experimentamos é uma manifestação da unidade. A Vedanta afirma que o nosso sentimento de separatividade em relação ao resto da criação (ou seja, a dualidade), é um equívoco, porque implica na existência de algo além de Brahman. Mas não pode haver nada além de Brahman.

A partir da tradição védica, Shankara fala de um deus absoluto e uno. “Sua unidade essencial é real, enquanto que a dualidade e pluralidade são ilusões fenomenais (maya)” (ARCHER, 1956, p. 91). Shankara desafiou “os pensadores hindus a procurarem imediatamente o deus uno, não um deus entre muitos deuses, mas o único sem outro, autoritário Absoluto que exige a devoção dos homens” (ARCHER, 1956, p. 91). O Vedanta caracteriza Brahman como realidade (sat), consciência (cit) e beatitude (ananda).

Brahman é a única realidade, existente em si e para si mesmo, ao qual não se pode atribuir características, limites ou determinações. Seu conhecimento está para além da capacidade dos sentidos, da mente ou do intelecto. Para poder ter contato direto com o absoluto precisamos nos libertar da ilusão do mundo, de como o mundo nos aparece.

Desta forma, o Hinduísmo teria um aspecto monístico representado pela suprema divindade: Brahman (que em sânscrito é uma palavra de gênero neutro, ou seja, nem masculino nem feminino). Podemos pensar então na distinção entre Deus e a Divindade. Brahman é a Divindade e não é Deus ou deuses. Os diferentes deuses que encontramos no Hinduísmo são manifestações individuais da Divindade universal. Brahman não é uma individuação. A individuação é Deus, mas a universalidade é Brahman. Brahman é a realidade última, a essência interior de todas as coisas. “Brahman é Realidade absoluta, eterna, infinita, universal, o UNO e o TODO, o Ser como tal, sem forma, sem nome, sem atributo, para além de tempo e espaço” (ROHDEN, 1982, p. 23).

De acordo com a tradição que considera Brahman como a divindade universal, esta se manifesta na figura de três deuses em particular: como Brahma, Vishnu e Shiva. São as três manifestações da Divindade Universal. Uma espécie de trindade, a Trimúrti Sagrada. E todos os demais deuses mais não são do que reflexos da realidade última de Brahman. 


Fundo Templo Hindukuala Lumpur Malásia


disponível em: PNGTREE. Acesso em out. 2023

A Trimúrti Sagrada 

Na Trimúrti Sagrada, os três deuses representam um ciclo dando-nos uma visão cíclica do universo.

Brahma (ब्रह्मा) é a força criadora, responsável pelo princípio da criação, é a força criadora ativa do universo. Brahma é uma das personificações de Brahman, sendo aquele que através de uma inspiração criou o nosso mundo. Brahma é o criador do nosso mundo, a Terra, e de tudo o que nele há. A respiração de Brahma é dividida em duas fases: inspiração-expiração ou dia-noite. O processo de expansão, que é justamente quando Deus cria e depois dissolve o Universo exterior, é conhecido por Manvantara que significa um período de atividade e não de repouso.

Dizem os hindus que uma respiração de Brahma costuma durar 4,3 bilhões de anos (mais exatamente 4.320.000.000 anos terrestres), ou seja, uma inspiração e expiração de Brahma possui toda essa duração. Essa respiração de Brahma é dividida em duas fases de 2.160.000.000 anos: inspiração-expiração ou dia-noite. Quando Brahma expira (dia de Brahma) se processa a descida angélica até atingir a fase derradeira da matéria, passando pela fase da energia condensada. Quando Brahma inspira (noite de Brahma) ele dissolve o Cosmo exterior constituído pelas formas.

Depois que Brahma cumpre o seu papel de criador surge então Vishnu e Shiva, que representam respectivamente a conservação e a destruição.

Como atributo de conservação, Vishnu é responsável por vir ao mundo na forma de um avatar (que pode ser na forma humana, animal, ou uma combinação dos dois). Essa vinda se dá quando um grande mal ameaça e Terra. Nove desses avatares já se manifestaram no mundo, sendo três deles os mais conhecidos: Rama, Krishna e Buda.

Shiva é o destruidor, que destrói para construir algo novo, motivo pelo qual muitos o chamam de renovador ou transformador. No século VIII a. C., era sacerdotal bramânica, Shiva tornou-se o deus mais popular. O centro irradiador do seu culto foi estabelecido em Benares, junto do Rio Ganges onde “é conhecido como Vishveshara, ‘senhor de tudo’” (ARCHER apud JURJI, 1956, p. 99).

Entre as diferentes representações de Shiva, uma delas ficou bastante conhecida e popularizada no ocidente através da obra O Tao da Física, de Fritjof Capra (2011), que ressalta a representação de Shiva como um dançarino cósmico. É a representação de Nataraja, onde Shiva aparece como o rei (raja) da dança (nata). Ele dança dentro de um círculo de fogo (símbolo da destruição, transformação e da renovação). Através de sua dança, Nataraja cria, conserva e destrói o universo. Essa dança representa o eterno movimento do universo que foi impulsionado pelo ritmo do Damaru, (um tambor em forma de ampulheta com o qual marca o ritmo cósmico e o fluir do tempo). 

O Manvantara 

De acordo com Ferreira (1999, p. 23), a referência mais antiga no que diz respeito as eras cósmicas “encontra-se no Atharvavedasamhitâ (ed. de Roth et Whitney [1966: X, 8, 39-40]), em que se afirma que a criação e a destruição do universo são eventos periódicos, regulados pela sucessão infinita das eras”.

Essa ideia consta, igualmente, no Mânavadharmaçâstra, ou “código de Manu” (como é conhecido no Ocidente), que aborda o tema da criação do mundo além de muitos outros.

 

“Tratado sobre a ordem (tal como ensinada por) Manu”, constitui o texto mais antigo e de maior autoridade da tradição smrti – quer dizer, dos textos que, transmitidos por memória, fazem a exegese das obras reveladas, obtidas por audição (çruti), enfeixadas na literatura védica, a qual abrange as coletâneas (samhitâs) dos quatro Vedas (Rg, Sâma, Yajur, Atharva) e os textos analíticos em prosa dos Brâhmanas, dos Âranyakas e das Upanisadas (FERREIRA, 1999, p. 23).

 

O Manvantara (मन्वन्तर) ou Manuvantara constitui o ciclo de Manu: é um período astronômico de medição do tempo adotado no hinduísmo. Manuantara, manu-antara ou manvantara (combinações das palavras manu – progenitor da humanidade, मनु - e antara – período ou termo, अन्तर) significa, literalmente, a duração de Manu, ou a duração de sua vida, em que Manu é uma criação de Brahma e simboliza o progenitor da humanidade segundo os Hindus. Cada Manvantara é criado e governado por um Manu específico, que, por sua vez, é criado por Brahma. Cada Manvantara dura a vida de um Manu (criador do mundo e todas as suas espécies durante esse período de tempo). Após sua morte, Brahma cria outro Manu para continuar o ciclo de criação.

Sobre as eras cósmicas vemos o seguinte:

 

“Aprende agora, de modo ordenado e sucinto, qual é a duração de uma noite e de um dia de Brahman, e de cada uma das quatro eras (yugas).

“Quatro mil anos divinos compõem, segundo dizem os sábios, o krtayuga; o crepúsculo que o precede tem outras tantas centenas de anos; o crepúsculo que se lhe segue é semelhante.

“Nas três outras eras [a saber, tretâyuga, dvâparayuga e kaliyuga], precedidas e sucedidas igualmente de um crepúsculo, os milhares e as centenas de anos são diminuídos sucessivamente de uma unidade.

“Computando-se em conjunto as quatro eras referidas, a soma de seus anos, que é de doze mil, chama-se a idade dos deuses.

“Sabe que a reunião de mil idades divinas compõem no todo um dia de Brahman, e que a noite (de Brahman) tem igual duração (...)

“Esta idade dos deuses, referida antes, que abarca doze mil anos divinos, repetida setenta e uma vezes, é o que se chama aqui o período de um Manu (manvantara)” (ed. de A. L. Deslongchamps [1930, vol. I: I, 68-79] apud FERREIRA, 1999, p. 24).

 

Ao realizar a tabulação dos dados, Ferreira (1999, p. 25) obtém os seguintes dados: A Era de krtayuga dura 4.800 anos; A Era de tretâyuga dura 3.600 anos; A Era de dvâparayuga dura 2.400 anos; A Era de kaliyuga dura 1.200 anos; totalizando 12.000 anos X 71 = 852.000 anos (= manvantara).

É preciso ressaltar que

 

As obras posteriores ao Mânavadharmaçâstra ocupam-se, sobretudo, com recalcular, expandindo-a consideravelmente, a duração do ano divino, o qual o texto parece homologar ao ano terrestre (ou seja, à soma de 360 dias), e com multiplicar os cômputos da soma dos ciclos básicos. No Mârkandeya-Purâna (ed. de Pargiter [1904: 46, 21 e segs.]), por exemplo, para citar apenas uma obra dentre dezenas, as cifras, relativamente modestas do Código, passam a integralizar números de configuração espantosa. Assim, atribui-se ao ano dos deuses a soma de 360 anos terrestres (FERREIRA, 1999, p. 25).


Neste caso teríamos: A Era de satyayuga dura 1.728.000 anos; A Era de tretâyuga dura 1.296.000 anos; A Era de dvâparayuga dura 834.000 anos; A Era de kaliyuga dura 432.000 anos; totalizando 4.290.000 anos (= manvantara).


Um ciclo de yugas soma, portanto, 4.290.000 anos terrestres. Um dia de Brahman corresponde a 1.000 ciclos de quatro yugas, ou seja 4.290.000.000 anos terrestres. Um ano divino corresponde a 360 dias de Brahman, equivalentes a 1.544.400.000.000 anos terrestres. E a vida de Brahman (correspondente à duração integral de toda a manifestação cósmica) perfaz 100 anos divinos, correspondentes a 154.440.000.000.000 anos terrestres (FERREIRA, 1999, p. 26). 

Atman

Atman é a palavra sânscrita que designa o Eu. É a manifestação de Brahman na alma humana. Atman é Brahman na essência, mas não é Brahman na existência. É a onipresença de Brahman na alma. Brahman é a divindade transcendente. Atman a divindade imanente. “A razão última dessa imanência divina no universo é a seguinte: é intrinsecamente impossível e contraditório que exista um efeito fora da Causa Universal (Brahman, Deus)” (ROHDEN, 1982, p. 24). Em outras palavras, é intrinsecamente impossível que, sendo Brahman onipresente, ele tenha criado algo fora de sua substância. Uma divindade onipresente deve, ser necessariamente, ser imanente. O que não significa dizer que o efeito se confunda com a causa. “Há distinção entre Causa e efeito, mas não há separação (como também não há identidade)” (ROHDEN, 1982, p. 24). O efeito (atman) não pode estar fora da causa (Brahman). Deve existir, portanto, uma interpenetração entre Causa e efeito: “uma permanente imanência da Causa no efeito e do efeito na Causa. A essência única está em todas as existências” (ROHDEN, 1982, p. 24).

O Atman concebe Brahman segundo a capacidade do Atman. E essa capacidade varia de um Atman para outro Atman, porque o nosso Eu humano tem muitas medidas diferentes. 

Referências

ARCHER, John Clark. Hinduísmo. In: JURJI, Edward I. (org.). História das Grandes Religiões. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1956, p. 59-106.

 

CAPRA, Fritjof. O Tao da física: uma análise dos paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

 

FERREIRA, Mário. A condição da mulher na Índia antiga na perspectiva das eras cósmicas - o ser feminino segundo o tantrismo. Língua e Literatura, n. 25, p. 21-40, 1999. Acesso em: 28 out. 2023.

 

ROHDEN, Huberto. O Espírito da Filosofia Oriental. 4. ed. São Paulo: Editora Alvorada, 1982. (Filosofia Universal, v. III)


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