Thomas Morus

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em 2015


Thomas Morus é considerado como um dos grandes escritores humanistas do Renascimento, mundialmente conhecido por sua obra literária Utopia. Além de escritor foi diplomata, advogado (era filho do juiz sir John More) e estadista que ocupou vários cargos públicos e em especial, já no final de sua vida, o cargo de “Lord Chancellor” (Chanceler do Reino) de Henrique VIII da Inglaterra. Em 1504 fez parte da Câmara dos Comuns da qual foi eleito Speaker (ou presidente), tendo ganho fama de parlamentar combativo. Em 1511 se tornou juiz membro da Commission of Peace. Por várias vezes foi embaixador da corte Henrique VIII.

Morus foi nomeado Chanceler mas logo teve que deixar o cargo no ano de 1532. Morus havia substituído Thomas Wolsey, arcebispo da corte que tentou, sem sucesso, o divórcio entre Henrique VIII e Catarina de Aragão. Era evidente que Henrique ainda não se tinha apercebido da retidão de caráter de Morus nesta matéria. Morus era profundo conhecedor de teologia e direito canônico vendo na anulação do sacramento do casamento uma matéria da jurisdição do papado, e a posição do Papa Clemente VII era claramente contra o divórcio em razão da doutrina sobre a indissolubilidade do matrimônio. Henrique VIII não teve outra saída a não ser nomear a si mesmo líder da igreja na Inglaterra consagrando-se como soberano e chefe supremo da Igreja. A recusa de Morus em 1534 de fazer o juramento reconhecendo a autoridade de Henrique VIII como líder da igreja provocou seu julgamento e condenação à morte. “Sir Thomas foi aprisionado por quinze meses antes de ser julgado e executado por não assinar um juramento que reconhecia a supremacia do Rei em assuntos espirituais” (VATICANO, 2016 – tradução livre).

A execução foi realizada na Torre de Londres, com a sua cabeça exposta na ponte de Londres. Sua morte é considerada uma das mais graves e injustas sentenças aplicadas pelo Estado contra um homem de honra, consequência de uma atitude despótica e de vingança pessoal do rei. Ele está sepultado na Capela Real de São Pedro ad Vincula. Em 1557 seu genro, William Roper, escreveu sua primeira biografia. Morus foi canonizado como mártir da Igreja Católica no mesmo ano e proclamado patrono dos governantes e dos políticos pelo Papa João Paulo II. Assim narra um trecho da Carta Apostólica de João Paulo II:

 

Constatando a firmeza irremovível com que ele recusava qualquer compromisso contra a própria consciência, o rei mandou prendê-lo, em 1534, na Torre de Londres, onde foi sujeito a várias formas de pressão psicológica. Mas Tomás Moro não se deixou vencer, recusando prestar o juramento que lhe fora pedido, porque comportaria a aceitação dum sistema político e eclesiástico que preparava o terreno para um despotismo incontrolável. Ao longo do processo que lhe moveram, pronunciou uma ardente apologia das suas convicções sobre a indissolubilidade do matrimónio, o respeito pelo património jurídico inspirado aos valores cristãos, a liberdade da Igreja face ao Estado. Condenado pelo Tribunal, foi decapitado (PAULO II, 2016).

 

E eis o que diz o Santo Papa, na mesma carta, para justificar o patronato atribuído a Morus:

 

Muitas são as razões em favor da proclamação de S. Tomás Moro como Patrono dos Governantes e dos Políticos. Entre elas, conta-se a necessidade que o mundo político e administrativo sente de modelos credíveis, que lhes mostrem o caminho da verdade num momento histórico em que se multiplicam árduos desafios e graves responsabilidades (id., 2016).


Estátua de Thomas More em frente do Chelsea Old Church, localizado na esquina de Old Church Street e Cheyne Walk, Londres.

Disponível em: Wikipedia




Morus foi amigo de um outro grande escritor humanista do Renascimento: Erasmo de Rotterdam, a quem Morus estava ligado por fortes laços de amizade como é possível perceber através de suas correspondências particulares. Erasmo tinha Morus em alta conta e na carta dirigida a Ulrich von Hutten (MORE, 2004, p. 155 e ss.) faz uma longa descrição da figura de Morus ao qual não poupa elogios.

 

tentarei fazer para V. um esboço, em lugar de um retrato de todo o homem, tanto quanto a convivência quotidiana e familiar me permitiu observar sua aparência e guardá-la na memória. Mas se alguma missão diplomática algum dia permitir que se conheçam, verá que mal artista escolheu para esse trabalho; e tenho medo de que me culpará de inveja ou de cegueira deliberada, ao registrar tão poucos dos numerosos aspectos positivos da sua personalidade (ROTTERDAM apud MORE, 2004, p. 156).


A Utopia 

A Utopia é a obra mais conhecida de Morus e lhe deu fama universal. O livro foi editado pela primeira vez em latim, em dezembro de 1516, em Basiléia (Suíça) por Erasmo de Rotterdam. Morus idealizou uma ilha imaginária que alguns autores modernos viram como uma proposta idealizada de Estado e outros como sátira da Europa do século XVI[1].

A Utopia de Thomas Morus, junto com outras obras que se lhe seguiram, inaugura um gênero literário que apresenta ao leitor uma outra sociedade, em outro lugar, sujeita à história, às ideologias, aos estilos, à cultura e à política de cada época (RIBEIRO, 2005). Um gênero literário que tem um caráter imagético, que opõe o real e o imaginário, de uma realidade descrita satiricamente ou imageticamente, como projeções em um tempo futuro ou um “sonho utópico” que se vinculam à situação social da época em que são produzidas. O mundo descrito corresponde ao inverso do mundo real, narrado em minúcias como existente no tempo, embora geograficamente afastado e deslocado no espaço em relação ao universo real (VOSSKAMP, 2009; RACAULT, 2009).

A inspiração para redigir o clássico livro Utopia ocorreu durante uma viagem diplomática a Flandres, em 1515, quando visitou seu amigo Erasmo de Roterdã, que lhe havia dedicado sua obra o Elogio da Loucura, e o holandês lhe apresentou o jovem Peter Gilles. Ocorreu-lhe então a ideia de utilizar-se de um personagem vindo de uma longa viagem, Rafael Hitlodeu, que lhe relataria o encontro com uma sociedade ideal.

Influenciado pelos relatos feitos pelo navegante Américo Vespúcio, que vieram à luz em 1504, e por sua formação platônica obtida nos seus tempos acadêmicos, resolveu então escrever a obra de uma sociedade ideal.

Utopia é uma palavra de origem grega que significa:  ou-topos ou “lugar nenhum”, “lugar que não existe”. A ilha de Utopia é cercada por uma fortaleza, protegida por um bom exército e composta por 54 magníficas cidades tendo por capital e sede do governo Amaurota. A obra fala da vida social dos utopianos, do comércio, das leis. É uma sociedade imaginária, ideal, sem propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo. Sem antagonismos entre a cidade e o campo. Sem trabalho assalariado, sem gastos supérfluos e luxos excessivos, com o Estado como órgão administrador da produção.

Do ponto de vista político e social a Utopia representa, entre outras coisas: uma análise das particularidades do feudalismo em decadência e uma crítica do regime burguês; um Estado guiado pelo Direito Natural baseado na igualdade entre todos os cidadãos e uma vida comunitária; o bem supremo. Além disso,

 

A Utopia é uma obra que pode ser interpretada sobretudo como uma crítica à Inglaterra das primeiras décadas do século XVI. E não apenas à Inglaterra, mas também a outros estados europeus, como a França, explicitamente citada. O contraste entre, de um lado, a ilha imaginária e, de outro, não apenas esta outra ilha, a Inglaterra, mas também, de forma mais ampla, a Europa, fornece as bases dessa crítica (ALMINO apud MORE, 2004, p. XI)[2].

 

A crítica ao feudalismo e ao regime burguês com suas injustiças e misérias aparece logo na primeira parte. Considerando que a nobreza e o clero possuíam a maior parte da riqueza e propriedades da época, Thomas Morus idealiza uma sociedade sem propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e das terras, sem trabalho assalariado, sendo o Estado o órgão administrador da produção. Por isso podemos dizer que, além do lado ficcional[3] a obra apresenta um quadro dos problemas sociais da Europa e mais precisamente da Inglaterra de então. Morus “apresenta um mundo livre de tais problemas, ao mesmo tempo em que discute os acontecimentos mais relevantes de sua época [...] o modo de ser e de viver dos habitantes, a organização política, as instituições sociais, a economia etc.” (MONTEIRO, 2013, p. 65).

João Almino, na introdução da obra, editada pela Universidade de Brasília, fala de uma certa ambiguidade e, por isso, uma certa dificuldade para entender a visão política de Morus na Utopia, pois ao mesmo tempo em que Morus se distancia do seu relato declarando que sua intenção era a de fazer um caráter meramente expositivo da vida dos utopienses, cuja capital era Amaurota, em outras passagens deixa claro que não se trata de mero relato neutro considerando a República dos utopienses como a melhor, mais duradoura e feliz: “Diz ainda alegrar-se com que os utopienses tenham encontrado a forma de Estado que deseja para toda a humanidade” (apud MORE, 2004, p. XXX). Por outro lado, o caráter utópico da narrativa também é ressaltado quando More afirma, após o relato de Rafael, que ele:

 

recordou muitos detalhes que lhe haviam parecido absurdos nas leis e costumes daquele povo, não somente na sua maneira de guerrear e nas demais instituições, mas também e especialmente no fundamento principal de todas elas: a vida e o sustento em comum, sem nenhuma circulação de moeda, o que, conforme afirma, destrói toda a nobreza, magnificência, esplendor e majestade que, segundo a opinião pública, constituiriam o ornamento e a honra das Repúblicas. Claro, podemos pressupor que se trata de ironia e crítica velada aos que assim pensam. Esta opinião não seria a do escritor inglês Thomas More, mas a do personagem Thomas More que ele criou para introduzir a dialética e a ambiguidade em sua narrativa. Essa ambiguidade serve-lhe também como defesa contra possíveis acusações (ALMINO apud MORE, 2004, p. XXX).

    

Por fim Morus ressalta que, embora nem tudo o que Rafael lhe disse pode parecer verdade ele acredita haver, na Utopia, muitas coisas que desejaria ver na sociedade. O que Morus e sua obra nos permite é refletir sobre a ação do Estado, seus governantes e governados, embora não se trate de um tratado prescritivo ou normativo das relações políticas e sociais.

 

Hoje há quem diga que a utopia morreu. No entanto, são ainda da ordem da utopia os ideais vigentes de aperfeiçoamento das sociedades contemporâneas, de construção de novas formas de sociabilidade, inclusive através do desenvolvimento das tecnologias da informação, e de instituição de uma governança global dentro de uma ordem justa e democrática (ALMINO apud MORE, 2004, p. XXXII).

    

A Utopia é um ideal de sociedade que deseja praticar e difundir o bem, defende as nações amigas, procura reformar os maus governos, é ordenadora da realidade social, ao mesmo tempo em que empreende guerras preventivas e “humanitárias”. Ressalta a ideia de soberania, relações internacionais, auto-suficiência, independência. Morus é um grande pensador e escritor humanista, um genuíno representante do humanismo renascentista, embora sua obra dificilmente possa servir de fundamento nos tempos atuais para lançar as bases de uma verdadeira democracia em escala global.


Referências 

MONTEIRO, Regina Maria Carpentieri. A Filosofia do Direito em A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella. Dissertação (Mestrado). Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 2013.

 

MORUS, Thomas. Utopia. Prefácio de João Almino. Tradução de Anah de Melo Franco. Brasília: UnB: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2004. (versão disponível online)

 

PAULO II, Papa João. Carta Apostólica e Sancti Tomae Mori. Para a proclamação de S. Tomás Moro patrono dos governantes e dos políticos [on line]. Vaticano, 2016. Acessado em 23/09/2016.

RACAULT, Jean-Michel. Da ideia de perfeição como elemento definidor da utopia: as utopias clássicas e a natureza humana. Revista Morus – Utopia e Renascimento. Campinas: Gráfica Central da Unicamp, n° 6, 2009. Acessado em 05/11/2015.

RIBEIRO, Ana Claudia Romano. A ilha dos hermafroditas: viagem à França especular de Henrique III. Dissertação (Mestrado). Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 2005.

VATICANO. Jubilee of Parliament and Government Members. Proclamation of Saint Thomas More as patron of statesmen. Biography [on line]. Acessado em 24/09/2016.

VOSSKAMP, Wilhelm. A organização da narrativa da imagem e da contra-imagem. Da poética das utopias literárias. Revista Morus - Utopia e Renascimento. Campinas: Gráfica Central da Unicamp, nº 6, 2009. Acessado em 05/11/2015.

Bibliografia

 

MORUS, Thomas. Obras Completas. Yale University Press (The Complete Works of St. Thomas More). New Haven: Connecticut.

 

ACKROYD, Peter. The Life of Thomas More. Doubleday. Reino Unido, 1998.

 

BARTSCHMID-KLAPPROTH, Marguerete. A Consciência do rei, Tomás Moro e o seu tempo. Tradução de Tarcísio Nascimento Teixeira. São Paulo: Paulinas, 1968.

 

BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro. Madrid: Palabra, 1993.

 

GIBSON, R. W., J. M. Patrick. St. Thomas More: A Preliminary Bibliography. New Haven: Connecticut, 1961.

 

LEMONNIER, Léon. Tomás More, Chanceler de Henrique VIII. Tradução de Nuno Santos. Lisboa: Editorial Aster, s/d.

 

MARTINEZ, Paloma Castillo. Tommaso Moro il primato della coscienza. Paoline: Milano, 2010.

 

NIETO, José Lino C. Thomas More. São Paulo: Quadrante, 1987.

 

PRADA, Andres Vasquez de. Sir Tomas Moro, Lord Canciller de Inglaterra. Madrid: RIALP, 1989.

 

ROPER, William. La vida de Sir Tomás Moro. Tradução e edição de Álvaro de Silva. Pamplona: EUNSA, 2000.

 

SARDARO, Anna. La correspondencia de Tomás Moro. Pamplona: EUNSA, 2007.

 

SILVA, Álvaro de. Un hombre para todas las horas. La correspondencia de Tomás Moro (1499-1534). Rialp. Madrid, 1998.

 

STAPLETON, Thomas. Tres Thomae. Vita Tomae Mori. Londres, 1588. The Life and Illustrious Martyrdom of Sir Thomas More. E. E. Reynolds Edit. London, 1966.

Notas 

[1] A palavra “utopia” geralmente é associada a algo irrealizável ou que não existe em lugar nenhum. Entretanto, de acordo com Claude-Gilbert Dubois (apud MONTEIRO, 2013), a palavra utopia pode estar tanto associada a “nenhum lugar” (considerando a união do advérbio grego “ou” – que significa “nenhum” – ao substantivo “topos” – que significa “lugar” – “outopia”) ou um lugar feliz, um lugar onde se vive bem (considerando a união do advérbio “eu” – feliz – ao mesmo substantivo – “eutopia”). Utopia como “lugar nenhum” é, de fato, um lugar irreal. Mas como “lugar feliz”, tem uma exigência ética e política que preside a elaboração deste sonho “utópico” e, ainda de acordo com Claude-Gilbert Dubois “os dois sentidos são inseparáveis, e uma definição da utopia como construção mental deve levar em conta ao mesmo tempo estes dois aspectos, fictício e projetivo” (apud MONTEIRO, 2013, p. 65).

[2] Introdução de João Almino à obra Utopia.

[3] Utopia, como já vimos, significa “lugar nenhum”; Amaurota, a capital de Utopia, significa cidade inexistente; e Ademos, o rei, exprime a ideia de chefe sem povo)

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Curiosidades


Em 1966, Fred Zinnemann dirigiu o filme A Man for All Seasons que conta a história de Thomas Morus, desde o divórcio de Henrique VIII até a perseguição feita pelo rei a Thomas Morus. No Brasil recebeu o título de O Homem que Não Vendeu sua Alma e está disponível para compra ou locação no youtube. Veja o link: FILME. Veja mais informações sobre o filme na Wikipedia enciclopédia.

 

A figura de Thomas Morus também aparece na série The Tudors. Na série, Morus tem um papel de relativo destaque até a segunda temporada, quando é morto (decapitado) por não aceitar a autoridade do Rei Henrique VIII que pretendia se sobrepor a autoridade eclesiástica do Papa. A principal motivação, segundo a série, que levou o Rei Henrique a romper com a Igreja Católica, foi a sua paixão arrebatadora por Ana Bolena. Acontece que o Rei era casado com Catarina de Aragão e a Igreja Católica não permitiu o divórcio do Rei para consolidar um novo casamento com Ana Bolena. Thomas Morus também não aceitou o divórcio do Rei e as atitudes tomadas pelo mesmo daí decorrentes sendo condenado a morte.