MÍSTICA E CATARSE
MÍSTICA E CATARSE
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em out. 2025
O fenômeno da experiência mística está intimamente ligado a ideia de purificação (catarse). A palavra catarse vem do grego (καˊϑαρσις, kátharsis) e significa purificação ou limpeza. No contexto religioso da experiência mística, a catarse é interpretada como uma purificação espiritual ou processo de libertação dos pecados, permitindo um estado de pureza da alma e consequente aproximação com o divino. O objetivo final da mística, que é a união direta e íntima com o divino (a realidade última, Deus, o Absoluto ou o transcendente), pressupõe esse processo catártico, de purificação interior para que essa união seja possível, seja através do ascetismo, da meditação ou do êxtase.
A catarse é uma ideia que está enraizada em diversas culturas, religiões e filosofias ao redor do mundo, sempre no sentido de purificação, de liberação emocional e pode ser vista como um componente essencial da experiência mística. O processo místico exige essa purificação (catarse) e, ao ser alcançado, proporciona uma experiência frequentemente descrita como um estado de êxtase ou um arrebatamento que geralmente envolve uma intensa descarga emocional, um sentimento de renovação e uma transformação radical da percepção.
A Catarse na História
O filósofo grego Aristóteles se dedicou ao tema da catarse, sobretudo na sua obra Poética, ao tratar do tema da tragédia. Para Aristóteles, a catarse era a purificação das emoções (piedade e terror) que o espectador sentia. Para Aristóteles, o poeta trágico deve procurar fazer despertar no seu público as duas emoções: o terror e a piedade, que por sua vez irão produzir a catarse (saiba mais em: A Tragédia na Poética de Aristóteles).
Já Orígenes de Alexandria, influenciado pelo platonismo, se destacou por ter delineado as etapas de purificação (via purgativa), contemplação ou iluminação e união (Epoptiká). O caminho místico é dividido nestas três etapas sequenciais (ou os Três Caminhos), sendo a primeira o momento catártico.
No Cristianismo, São João da Cruz e Santa Teresa D’ávila, no século XVI, trataram do tema da purificação. O processo catártico da alma em São João da Cruz é descrito a partir daquilo que ele chama de a noite escura da alma (La Noche Oscura del Alma). A Noite Escura é um processo de purificação realizado por Deus, onde a alma é despojada de seus apegos e imperfeições. Ele distingue duas fases de purificação que são a própria catarse mística: a Noite Passiva dos Sentidos, que é a purificação das faculdades sensíveis e dos prazeres terrenos; e a Noite Passiva do Espírito, que é a purificação das faculdades espirituais, do intelecto e da vontade, que é a catarse mais profunda e dolorosa, mas essencial para a união final. Teresa d’Ávila, por sua vez, fala da jornada da alma através de metáforas, como a metáfora das primeiras moradas (ou via purgativa). Em sua obra Castelo Interior, as primeiras moradas representam o estágio inicial onde a alma precisa se purificar dos pecados e iniciar uma vida de oração. Esse caminho inicial de ascetismo e luta contra os vícios é a Via Purgativa, que corresponde à catarse e prepara a alma para as purificações mais profundas e passivas (as Noites Escuras de São João da Cruz).
O conceito de catarse também está presente na vasta e complexa obra do filósofo e místico italiano Pietro Ubaldi. Catarse que deve ser entendida como princípio de purificação e transformação moral, física, psíquica e espiritual. Para Ubaldi, a vida é um processo contínuo de evolução e nesse caminho, o sofrimento e a dor não são meros castigos, mas instrumentos de purificação e aprendizado essenciais, análogos a um processo catártico. A catarse, no sentido ubaldiano, é uma etapa necessária para que ocorra a ascensão espiritual. Ubaldi fala de transformação e transmutação biológica, de evolução espiritual, psíquica e orgânica. A purificação moral se completa pela purificação orgânica. Ocorre uma transformação substancial na existência do ser. Ao falar da sua história de vida pessoal, Ubaldi relata como ele travou dentro de si uma intensa luta entre o bem e o mal, e dessa luta resultou o seu processo catártico de sublimação do espírito (ver por exemplo, as obras: As Noúres, Ascese Mística, História de Um Homem).
A Simbologia do Fogo Purificador
A ideia de purificação e catarse está, frequentemente, associada ao símbolo do fogo.
Uma das histórias mais fascinantes a este respeito é o mito de fênix. A Fênix é uma das criaturas mitológicas mais conhecidas e poderosas, descrita como uma ave magnífica, muitas vezes comparada a uma águia gigante, com plumagem em cores vibrantes, simbolizando a imortalidade, o renascimento e os ciclos da vida. O mito da Fênix tem suas raízes no Antigo Egito, onde era associada ao deus-sol Rá e ao conceito de renovação. Mais tarde, foi incorporado e popularizado pela mitologia grega e outras culturas. Acredita-se que a Fênix vive por um longo período (algumas lendas falam em 500 anos). Quando sente que seu fim está próximo, ela constrói um ninho, que é consumido pelo fogo e, das próprias cinzas, uma nova Fênix surge, reiniciando o ciclo.
Tão antiga quanto o mito da fênix é a tradição da Alquimia, que vê no fogo o elemento principal de transformação e purificação. E aqui não se trata apenas de transformação das substâncias químicas, como transformar o mercúrio em ouro, mas também em sentido espiritual, de purificação do indivíduo. Na antiguidade, o fogo era considerado um dos quatro elementos clássicos, juntamente com a água, a terra e o ar. Do ponto de vista físico, havia a compreensão de que através do fogo seria possível transformar uma substância (como no caso do ferro fundido) e até uma substância em outro: a lendária busca pela pedra filosofia e a transformação do mercúrio em ouro. Na prática laboratorial da alquimia, o fogo estava intrinsecamente ligado à operação de calcinatio (calcinação). Esta é a primeira das sete operações alquímicas, onde a matéria-prima é aquecida a altas temperaturas, reduzindo-a a cinzas (pó seco). Através do fogo e da manipulação de substâncias como o enxofre, o mercúrio e o sal, buscava-se a transmutação dos elementos. Simbolicamente, entretanto, o fogo também representava a energia psíquica sendo o motor da transmutação não só dos metais, mas também da alma, por isso, de acordo com essa tradição, o fogo interior do alquimista é essencial para o sucesso da Grande Obra.
Na tradição oriental do Hinduísmo, o fogo (Agni) é uma divindade importante e é central em rituais de purificação, sacrifícios e cremações, representando a transformação e a conexão com o divino. No ritual védico do fogo (Yajña ou Homa), Agni recebe as oferendas (oblata) e as transporta para as outras divindades no céu. O Rigveda (o mais antigo dos textos sagrados hindus) começa com um hino a Agni. Agni, em sânscrito, significa literalmente “fogo” e é a personificação divina desse elemento. Agni manifesta-se em três níveis cósmicos: como fogo na Terra (o fogo sacrificial); como relâmpago na atmosfera; como o Sol no céu.
Também faz parte da tradição hindu o ritual de cremação e dispersão das cinzas no Rio Ganges, sendo que sua origem está ligada a conceitos religiosos e mitológicos. Acredita-se que através da cremação no Ganges se alcança a libertação (moksha), que é a quebra do ciclo de nascimento, morte e renascimento (Samsara). O Rio Ganges é reverenciado como a Deusa Ganga e possui um poder purificador. O ato de cremar o corpo (o elemento fogo, Agni) e dispersar as cinzas no Rio Ganges (o elemento água, Ganga) é visto como a purificação final e a transição da alma. Agni consome o corpo físico, e Ganga transporta a alma para o mundo espiritual.
No Cristianismo, por sua vez, o simbolismo do fogo aparece em vários momentos, como no caso do batismo com fogo, ligado à ação do Espírito Santo, que é mencionado por João Batista (Mateus 3:11 e Lucas 3:16) e refere-se tanto à purificação e poder do Espírito Santo quanto à condenação dos ímpios. Jesus viria batizar com o Espírito Santo e com fogo, onde o fogo pode representar tanto a purificação para os crentes quanto a destruição para os não crentes. João Batista batizava com água para arrependimento, enquanto Jesus batizaria com o Espírito Santo e fogo, simbolizando tanto a salvação quanto o julgamento divino. A simbologia do fogo também aparece em Atos dos Apóstolo (capítulo 2), com o fogo de pentecostes, onde o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos de Jesus em forma de línguas de fogo, cinquenta dias após a Páscoa. Desde o Antigo Testamento, entretanto, que o fogo aparece como símbolo de espiritualidade (da presença divina), como por exemplo, quando no Monte Sinai, Moisés viu uma sarça (um arbusto) que estava ardendo em chamas, mas não se consumia. O Salmo 104 menciona o fogo logo no início. No versículo 4 lê-se: “Faz dos Seus anjos espíritos; dos Seus ministros, um fogo abrasador”, revelando a ideia do fogo como espiritualidade divina.
Uma visão distorcida do fogo como símbolo de purificação aconteceu durante a Inquisição, também conhecida como Santo Ofício: um conjunto de tribunais religiosos dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, que surgiram a partir do século XIII, cujo principal objetivo era combater a heresia (crenças ou práticas consideradas contrárias à doutrina oficial da Igreja) e manter a uniformidade da fé. O fogo, especialmente nas fogueiras dos Autos de Fé, era o elemento central e de maior carga simbólica da Inquisição. Seu uso não era acidental e carregava múltiplos significados, como a ideia de purificação da heresia (o fogo era visto como um agente de limpeza, capaz de purificar o corpo do herege, ou das “bruxas”, para que sua alma, teoricamente, pudesse ser salva) e limpeza da sociedade (a eliminação do herege pela fogueira simbolizava a purificação da comunidade da “infecção” ou “contaminação” da heresia). Há também a ideia de que o fogo da fogueira servia como uma aterrorizante representação terrena do inferno: a fogueira mostrava à multidão o que aguardava aqueles que desobedecessem a Deus e à Igreja.
Em 1595, o soneto 81, do poeta português Luís Vaz de Camões, foi publicado e imortalizou a simbologia do fogo purificador: O amor é fogo que arde sem se ver é um soneto que consta na coletânea de poesia lírica intitulada Rimas (obra foi publicada postumamente).
Na psicologia contemporânea, Carl Gustav Jung via o fogo como um arquétipo do inconsciente coletivo, representando a transformação, a energia psíquica e a purificação interna. Para Jung, o fogo não é apenas um elemento físico, mas uma imagem universal do Inconsciente Coletivo que simboliza a dinâmica da alma humana, uma força primitiva de energia psíquica com potencial tanto para a criação e iluminação quanto para a destruição e dor (o aspecto sombrio do fogo e sua capacidade de aniquilar sem controle). O fogo representa o núcleo da energia da psique, a força vital (o élan vital) que impulsiona o indivíduo. Em seus estudos sobre a Alquimia, Jung entende o fogo como um processo de transformação. Haveria duas fases: a fase da calcinatio (calcinação) em que o material é submetido a um fogo intenso e que psicologicamente representa o momento de queima e dissolução de tudo o que é falso, rígido ou supérfluo na personalidade, como padrões emocionais obsessivos, vícios, ou um ego inflado; em seguida temos o renascimento das cinzas, em que o fogo destrói o velho para que o novo possa surgir. É um processo doloroso, mas necessário, que transforma o material bruto (a matéria psíquica não trabalhada) em algo mais puro e transparente. Aqui temos o que podemos chamar de uma alquimia mental. Não se trata tanto de uma transformação de uma substância química em outra (como no caso das histórias dos antigos alquimistas que buscavam transformar o mercúrio em ouro), mas de transformação da mente, da psyché, da alma.
No Espiritismo, também encontramos a ideia de um fogo purificador. No livro Obreiros da Vida Eterna, do autor espiritual André Luiz, no cap. 10, há um episódio intitulado precisamente como “Fogo Purificador”. O capítulo descreve uma operação de grande impacto assistencial realizada na região do Umbral, de limpeza de energias densas, desintegradoras das forças psíquicas e negativas. O ponto central do capítulo é a passagem de um poderoso fluxo energético (o “fogo purificador”), que atua como uma força depuradora, dissipando as energias deletérias acumuladas pelos Espíritos sofredores e persistentes no mal, criando um ambiente conturbado e denso.
A simbologia do fogo também aparece em produções literárias e cinematográficas, como no caso do filme O Senhor dos Anéis, baseado na obra de J.R.R. Tolkien. A simbologia do Um Anel representa principalmente o conceito de poder incontrolável, a corrupção e a ganância, como podemos perceber na inscrição que conta no anel: “Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los, Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los”. Acontece que o anel foi forjado em segredo por Sauron nas profundezas da Montanha da Perdição: um vulcão ativo localizado no centro da terra de Mordor. O Anel foi forjado nas Fendas da Perdição (Sammath Naur), um abismo de lava dentro da própria montanha, onde o fogo da terra era o mais potente e essencial para o encantamento. Sauron usou o fogo primordial do vulcão em seus feitiços e forjas, infundindo grande parte de seu próprio poder e malícia no Anel durante sua criação. Essa é a razão pela qual somente o fogo em que ele foi forjado possui o calor e o poder destrutivo necessários para desfazê-lo, ou seja, o mesmo fogo que o criou, deve também destruí-lo (saiba mais em: Espiritualidade e Poder: Uma Análise Semiótica da Trilogia O Senhor Dos Anéis).