A POESIA TAOÍSTA DE SILVA MENDES
A POESIA TAOÍSTA DE SILVA MENDES
Manuel da Silva Mendes (1867-1931) foi um ilustre intelectual e escritor português. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, Professor do Liceu de Macau, de Português e Latim, é autor de uma obra sobre o Taoísmo intitulada Excerptos de Filosofia Taoista.
A obra tem como subtítulo segundo o Tao-Te-King de Lao Tze e o Nan Hua King de Chuang Tze e está dividida em duas partes. A primeira constituída de nove poemas longos, todos baseados nos dois livros clássicos chineses, o Dào Dé Jīng (道德經) de Lǎozǐ (老子), e o Nán Huá Jīng (南華經) de Zhuāngzǐ (莊子). A segunda parte contém trinta pequenos excertos que o autor intitula de Máximas, pensamentos e provérbios, os quais também são baseados no pensamento taoísta (CRUZ, 2017a e 2017b).
Abaixo apresentamos dois poemas de Silva Mendes. Uma cópia digitalizada da obra pode ser encontrada nos anexos da Dissertação de Cruz (2017b, p. 217-264).
Tao era, no princípio, o Inominado!
Tao a Virtualidade, a Via, a Norma
De todo o vir-a-ser. Forma sem forma,
Imagem sem imagem, Tao, incriado,
Era das formas e era das imagens
A Possibilidade. – Quem olhasse
Não o veria; alguém que o escutasse
Não o ouviria. Ele é, nas paragens,
Ignotas do mistério, a Confusão!
Era o não-Ser, o Nada-Positivo,
A Origem, a Razão - ponto incoativo
Do porvir; da existência a Condição.
Fora dos tempos, Tao-virtualidade,
Com os seres, nos tempos, foi Virtude.
Mistério dos mistérios! Plenitude
Em coeterna e absoluta vacuidade!...
É Tao-virtualidade qual essência
De um espectro; qual fórmula do Nada;
Qual sombra de fantasma; qual sonhada
Concepção; é do Nada e a Existência.
Tao-virtude é vivido sonho vão
No seio da Ilusão, sensível forma
De Yin-Yang modelada pela norma
Eterna, universal: - é a ilusão
Palpável, viva; é a ilusão sentida
De incoercível, completa vacuidade;
É de Tudo e de Nada a realidade;
É o não-Ser em ser, o Nada em vida.
“Ab eterno” Tem Tao vácuo, omnipresente,
Forma e vida tomaram Céu e Terra,
E tudo quanto este binómio encerra:
Fugaz forma, ilusória, impermanente;
Vida de sonho, transitória e irreal:
Aspectos vãos de Yin-Yang alternativos,
Dando aos seres reflexos fugitivos,
Da existência efetiva, nominal.
Assim como do mar a longes terras
Prenhes nuvens se elevam subtilmente
E em curso regular ou divergente
Se derramam por campos e por serras:
Assim de Tao, inumeráveis, quais
Gotas de águas das nuvens desparzidas,
Em fluxo permanente surgem vidas,
Que, seguindo por vias desiguais,
Por fim voltam ao ponto de partida.
Tudo é mar; tudo é Tao e tudo é Um
Na evolução universal. - Nenhum
Ente senão em Tao sustém a vida.
Vede os astros, a terra, o sol, a lua,
O raio, a luz, a tempestade, a aurora,
Tudo o que vai pela existência fora,
Como numa alma só se continua!...
Esta alma é Tao; é a alma universal;
Da vida a eterna fonte, una na essência
Múltipla, repartida na aparência
Das formas vãs em que se gera o Mal.
Tao bom, liberal, beneficente.
Tao, como a água, humilde se conforma
A toda a posição e toda a forma.
Dos seres gram senhor omnipresente,
Os seres deixa à sua actividade.
A leis, nem mandamentos, nem preceitos,
No decurso da vida os tem sujeitos.
Ele é a eterna norma, a luz que há de
Ter em si toda a vida consumada.
E, assim, Tao é o mar e o navegante;
Tao, a via, é também o viandante,
Tao é Tudo e expressão também do Nada.
Porque à vida tão forte apego, e horror
À morte tanto!? Se não há ninguém
Que da vida passada mal ou bem
Diga ou sinta (e existência anterior,
Por certo, já tivemos, pois de nada
Nada vem) - igualmente ninguém diz,
Com provas, da futura, que infeliz
Será lá o existir. Ninguém. Selada
Urna é essa em que a luz da inteligência
Directamente não penetra. Agrura,
Na vida decorrente, mais que pura
Quietação, dia a dia a experiência
Nos mostra bem patente; e que o portal
Da morte, cedo ou tarde passaremos,
É coisa que por certa todos temos.
A morte é, na existência, essencial.
O que fomos, passou inteiramente;
Lembra só desta vida o decorrer.
Com a morte vem junto outro esquecer,
Outro oblívio total. Depois, na frente,
Quem sabe!? outro nascer, mais outro lanço
Na estrada da existência; ou imediata
Entrada no Não-Ser. Sciência exacta
Do porvir não possuímos. Ao descanso,
Porém, à perfeição, há lei que diz
Que tudo avança. Logo, a morte leva,
Não ao horrível nada, não à treva,
Mas à luz, a destino mais feliz.
Quem é sábio, ama a vida sem apego
E ama a morte igualmente, quando vem,
Sereno e indiferente, nunca tem
Horror ao que Tao dá, nem amor cego.
Outrora a bela Ki de Li chorou,
Quando foi a seus pais arrebatada:
Na corte, pelo duque desposada,
Seu choro em doce riso já mudou.
Na morte não será também assim?
Ficam cinzas de lenha consumida;
Mas o espírito, o lume que era a vida,
Esse, como a existência, não tem fim”
CRUZ, Erasto Santos. “Chuang Tze e o rei de Chu”: Silva Mendes e sua adaptação dos clássicos taoístas. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 18, p. 11-25, 2017. Acesso em: 16 mai. 2020.
CRUZ, Erasto Santos. Em Busca do Inominado: Silva Mendes e sua Reescrita de Alguns Trechos do Dao De Jing e do Nan Hua Jing. Dissertação (Mestrado em Letras). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.