BREVE HISTÓRIA DA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS
BREVE HISTÓRIA DA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS
por Alexsandro M. Medeiros
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publicado em: mar. 2025
Experimentos com seres humanos são relatados desde os anos de 1700, quando o pesquisador Edward Jenne realizou a testagem de vacina contra varíola em seus filhos e em crianças de sua comunidade, colocando-os em risco. Vinte anos mais tarde, mais precisamente em 1721, na Inglaterra, “o cirurgião Charles Maitland, inoculou varíola em 6 prisioneiros, com a promessa de liberdade” (Araújo, 2003, p. 58).
No início do século XX, vários estudos se basearam na inoculação de doenças venéreas incuráveis em seres humanos, sem seu consentimento, além de exposição proposital à febre tifoide e numerosas pesquisas em recém-nascidos, grávidas, loucos e moribundos (Gracia, 1998).
Vários experimentos foram realizados nos Estados Unidos como o Estudo Tuskegee, no Alabama, financiado e desenvolvido pelo Serviço de Saúde Pública (equivalente ao Ministério da Saúde) dos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1970. Esta pesquisa envolveu algumas centenas de homens negros, agricultores no Alabama, portadores da sífilis. Alguns participantes da pesquisa (pertencentes ao chamado grupo experimental) foram deixados sem o tratamento adequado, ou seja, sem o uso da penicilina, que já havia surgido como o principal medicamento para a doença, com o objetivo de entender a evolução natural da doença. “Em 1950 foi descoberta a penicilina, substância utilizada até hoje no tratamento da sífilis, entretanto esses homens não foram tratados, nem informados da possibilidade de tratamento” (Araújo, 2003, p. 58). Os homens que pertenciam ao grupo experimental recebiam, ao invés no antibiótico, apenas um placebo.
Em 1972, a jornalista Jean Heller, da Associated Press, desvendou o fato. No ano seguinte, mediante investigação do Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar, constatou-se que somente 74 participantes haviam sobrevivido à pesquisa (BRANDT, 2000). Esse estudo [...] foi encerrado apenas após a denúncia publicada na primeira página do jornal The New York Times (Costa, 2008, p. 34).
No Tennessee, na Vanderbilt University, mulheres pobres grávidas foram submetidas à radiação com dose 30 vezes maior que a considerada inócua.
Na Escola Willowbrook, em Nova York, entre 1950 e 1970, foi inoculado vírus da hepatite C em deficientes mentais (Godin, Glantz, 1994); na década de 60, no Jewish Chronic Disease Hospital, foram inoculadas células cancerosas em judeus idosos internados (Gracia, 1998); em Oregon e Washington, no ano de 1963, 131 presos foram contratados, por US$ 200,00 cada um, para se rem submetidos à radiação de 600 roentgen nos genitais (a máxima radiação anual permitida é de 6 roentgen) (Kieffer19, 1983) (Araújo, 2003, p. 58-59).
O fato mais conhecido é, sem dúvida, as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Experimentos realizados com cobaias humanas por pesquisadores e médicos nazistas foram extremamente cruéis. O Dr. Sigmund Rascher realizou inúmeros experimentos com prisioneiros judeus entre agosto de 1942 a maio de 1943, em Dachau. Tais atrocidades impuseram o desenvolvimento de normas éticas para a realização de pesquisas com seres humanos em condições de vulnerabilidade.
Além disso, não podemos deixar de mencionar o caso da bomba atômica, que, embora não se trate especificamente de um experimento científico, traz em si uma questão ética fundamental do uso do conhecimento científico. Kottow (2008) lembra a este respeito o contexto da guerra fria que teve início logo após a Segunda Guerra Mundial e a possibilidade de uso não só de armar nucleares, como também biológicas ou químicas. O controle ético das pesquisas envolvendo esse tipo de armamento e seus possíveis efeitos em seres humanos “foi discutido em nível governamental e militar, em alguns casos se adotando o Código de Nurembergue, e em outros se preferindo a liberdade de flexibilizar as normas e delineá-las ad hoc para cada projeto” (Kottow, 2008, p. 10).
Após os relatos de grave violação dos direitos humanos ocorridos na Segunda Guerra, uma corte internacional composta por juízes e promotores dos quatro países vencedores da guerra (Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética) promoveram o julgamento de Nuremberg, que resultou na condenação de médicos e cientistas nazistas por crimes de guerra e contra a humanidade. A partir das barbaridades reveladas nesse julgamento nasceu o Código de Nuremberg, considerado o primeiro marco internacional no campo da ética em pesquisa. “Esse foi o primeiro documento contendo diretrizes éticas para nortear a realização de estudos com seres humanos, valorizando o consentimento informado de toda pessoa que participará de uma pesquisa” (Costa, 2008, p. 27-28). O documento trata da importância da validade científica e social da pesquisa envolvendo seres humanos. “É de se notar que os dez pontos do código tomem o especial cuidado de proteger os participantes, de justificar a relevância social dos estudos e de realizá-los com idoneidade” (Kottow, 2008, p. 10). Dentre os experimentos relatados, podemos destacar:
a) experimentos em grandes altitudes – no campo de concentração de Dachau, os presos eram submetidos a situações que simulavam diferentes condições atmosféricas, com o propósito de avaliar o limite de variações pressóricas que os pilotos alemães poderiam suportar;
b) experimentos sobre congelamento – os prisioneiros eram colocados em tanques congelados para, em seguida, passarem por um processo de reaquecimento. Esse processo simulava as condições nas quais as tropas alemãs enfrentavam o rigoroso inverno, sofrendo significativas baixas ao tentarem invadir a União Soviética;
c) experimentos com sulfanilamida – no campo de concentração de Ravensbrueck, ferimentos em diferentes segmentos corporais eram causados e infectados com várias substâncias. Os participantes eram então divididos em dois grupos: os que recebiam sulfa para cuidar dos ferimentos e aqueles que ficavam à mercê de uma cicatrização, sem receber qualquer modalidade de tratamento. Em razão da escassez de sulfa naquela época, o experimento tentava reproduzir uma situação que poderia ocorrer com os soldados feridos no campo de batalha (Annas; Grodin, 1992 apud Costa, 2008, p. 28-29).
Mas não foram apenas os nazistas que fizeram experimentos durante a II Guerra. Com o objetivo de testar a resistência humana, prisioneiros chineses foram submetidos a experimentos no Japão. Para isso, os prisioneiros foram expostos ao botulismo, antrax, cólera, sífilis, raios X e até congelamento, tudo isso com a cumplicidade do exército americano. 3.000 prisioneiros morreram com tais experimentos (Reich, 1995).
Na década de 1960 o psicólogo Stanley Milgram realizou experimentos, na Universidade de Yale, para estudar a obediência, revelando que as ciências humanas também não podem se eximir das exigências éticas que passaram a ser consideradas sobretudo na área biomédica. O experimento consistiu em “levar sujeitos experimentais a aplicar (falsos) choques elétricos gradativos até o limite de 450 volts em supostos aprendizes inocentes, sob a falsa alegação de se verificar o efeito da punição sobre a aprendizagem” (Dahia, 2015, p. 227). Os sujeitos experimentais tinham diante de si um aparato com 30 botões, sendo que o primeiro botão descarregaria, quando acionado, supostamente um choque de 15v (o mais fraco) na pessoa ligada ao aparelho através de eletrodos. Cada botão acionado na sequência aumentava a carga do choque até atingir 450v (o mais forte). Os sujeitos experimentais deveriam, a cada erro realizado pelos participantes, aplicar a carga de 15v acionando o primeiro botão e aumentar de 15 em 15v a carga de choque em cada erro subsequente. Havia, no entanto, um aliado dos sujeitos experimentais, chamados de aliado do experimentador. Ele deveria se submeter ao processo e fora instruído a simular sinais de desconforto a partir do quinto botão, que acionaria uma carga de 75v.
Ao chegar a 150v ele deveria solicitar insistentemente que o permitissem abandonar o experimento. Na intensidade de 180v ele deveria gritar e dizer que não aguentava mais a dor. Ao atingir a intensidade de 300v ele deveria recusar-se a responder (Rodrigues, 1977, p. 7).
A ausência de resposta também era considerada como erro e o sujeito experimentador aumentava sucessivamente a intensidade dos choques até atingir o máximo de 450v. Os resultados revelaram “um alto índice de submissão à autoridade do pesquisador ao obedecerem à ordem de provocar choques elétricos, com a voltagem máxima, em indivíduos inocentes” (Dahia, 2015, p. 227).
Com base neste e em outros experimentos apontados por Rodrigues (1977) em seu artigo, na área de psicologia social, o autor questiona se é ético submeter um sujeito aos incômodos e apreensões frequentemente verificadas em tais experimentos, considerando que tais experimentos envolvem uma ilusão ou mentira, por parte do experimentador em relação aos sujeitos: “O primeiro problema ético que se nos apresenta é, portanto, o seguinte: é lícito mentir a fim de obter-se maior conhecimento do comportamento social humano?” (Rodrigues, 1977, p. 10, grifo do autor). E questiona ainda: “é licito submeter pessoas a situações incômodas, constrangedoras e aflitivas?” (Rodrigues, 1977, p. 10, grifo do autor). Finalmente, não se deve desconsiderar a possibilidade de que tais experimentos possam desencadear ou reforçar sentimentos reprimidos (no caso do experimento de Milgram, a submissão aos outros), o que nos leva a mais um questionamento: “é licito correr-se o risco de concorrer para o desencadeamento ou o agravamento de um problema de personalidade de um sujeito?” (Rodrigues, 1977, p. 10, grifo do autor).
Desde Nuremberg (1947), diversos códigos e resoluções passaram a reger as práticas da pesquisa científica em todo o mundo.
Com o considerável aumento da atividade científica na área biomédica, tornou-se necessário elaborar uma regulamentação ética mais completa e em 1964 surge a Declaração de Helsinque, elaborada pela Associação Médica Mundial (AMM), em Helsinque, na Finlândia: um documento norteador para a execução de pesquisas biomédicas, inicialmente direcionado para a classe médica, sendo um desdobramento de alguns dos preceitos éticos do Código de Nuremberg. A Declaração de Helsinque foi “revista em oito ocasiões desde a sua primeira versão (1975, 1983, 1989, 1996, 2000, 2008 e as notas de esclarecimento sobre os parágrafos 29 e 30, em 2002 e 2004, respectivamente)” (Costa, 2008, p. 30). Vale destacar a primeira revisão da Declaração de Helsinque em 1975 que instituiu a necessidade de criar comitês de ética em pesquisa.
Entretanto, nem o Código de Nuremberg ou a Declaração de Helsinque foram suficientes para evitar deslizes éticos com o passar do tempo. Apesar da criação de tais documentos, a comunidade científica não adotou de imediato os seus postulados e este período de elaboração de tais documentos foi marcado por graves infrações à ética na pesquisa científica.
Em seguida surge uma nova diretriz: o Relatório Belmont. Publicado em 1978 nos EUA, é outro documento importante no campo da ética na pesquisa científica que teve a participação na sua elaboração de pessoas ligadas ao campo da ética, da filosofia e da teologia. O Relatório Belmont consolidou a bioética (mais precisamente a bioética principalista) e a ética em pesquisa como campos indispensáveis para a prática científica e introduziu “a linguagem dos princípios éticos ao exigir que toda pesquisa seja respeitosa com as pessoas, benéfica para a sociedade e equânime em seu balanço entre riscos e benefícios” (Kottow, 2008, p. 13), estabelecendo assim como princípios éticos relevantes em pesquisa envolvendo seres humanos o respeito, a beneficência e a justiça, sendo acrescentado posteriormente um quarto princípio, o da não-maleficência (garantia de que os danos previsíveis serão evitados).
A bioética nasceu nos Estados Unidos entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1970. O termo foi usado pela primeira vez pelo oncologista Dr. Van Rensselaer Potter, em 1971, através de seu livro Bioethics: bridge to the future. Segundo o Dr. Potter em seu livro (trata-se de uma coletânea de artigos), deve haver um compromisso global de equilíbrio e preservação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta. Em 1979 Tom Beauchamp e James Childress escrevem o livro The Principles of Bioethics onde elaboram a primeira teoria do novo campo disciplinar e analítico denominada Bioética Teoria Principialista. Mas foi a obra Encyclopedia of Bioethics que estabeleceu a conceituação de bioética: sendo então finalmente definida como “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão e normas morais – das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas, num contexto multidisciplinar” (Araújo, 2003, p. 62).
O marco mais recente na ética em pesquisa foi a promulgação em 2005 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Referências
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