DA MACUMBA À RESISTÊNCIA: INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E COLONIALIDADE NO DISCURSO BRASILEIRO
DA MACUMBA À RESISTÊNCIA: INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E COLONIALIDADE NO DISCURSO BRASILEIRO
por Luana Pantoja Medeiros
postado em: mai. 2025
O termo “macumba” tem origens diversas e polêmicas. Originalmente, em algumas línguas bantas africanas, “macumba” designava um tipo de instrumento musical de percussão. Com o processo de escravização e colonização das Américas, especialmente do Brasil, o termo foi ressignificado de maneira pejorativa. No imaginário social brasileiro, “macumba” passou a ser usado de forma generalizada e depreciativo para se referir às religiões de matriz Africana, como a Umbanda, o Candomblé e outras práticas espirituais afro-brasileiras, carregando um peso de estigmatização associado ao racismo religioso e à colonialidade do saber.
Em termos de análise do discurso, macumba funciona como um significante esvaziado e ressignificado pela colonialidade, servindo para demonizar práticas que expressam resistência cultural, epistemológica, e religiosa dos povos africanos e afrodescendentes no Brasil.
A Umbanda, enquanto expressão religiosa nascida do encontro entre saberes e práticas afro-brasileiras, indígenas e espíritas, constitui um campo de disputa epistêmica e simbólica desde sua emergência. Muito além da narrativa institucionalizada que a situa como fundada por Zélio Fernandino de Moraes em 1908, a Umbanda já se manifestava como prática ancestral nos quilombos, nos terreiros e nos aldeamentos. A narrativa fundacional centrada em Zélio encobre, portanto, os traços de uma religiosidade negra e indígena, marcada pela oralidade, corporeidade e conexão com os saberes da floresta.
A desqualificação da Umbanda como “macumba” expressa uma violência discursiva que ultrapassa o campo semântico: nomear é enquadrar, e enquadrar é dominar. O termo “macumba”, usado de forma pejorativa para marcar os cultos afro-brasileiros, opera como dispositivo de exclusão e de manutenção da hegemonia cristã ocidental, eurocentrada. Nesse sentido, é fundamental recorrer à Análise do Discurso Crítica (ADC), que permite compreender a linguagem como prática social, profundamente entrelaçada às relações de poder.
Para Orlandi (1996), “o discurso é o lugar do simbólico onde se inscreve o sujeito”, ou seja, ao se referir à Umbanda com termos pejorativos, o sujeito moderno-colonial também afirma sua posição hegemônica diante do Outro epistemológico.
Análise crítica do discurso e da colonialidade religiosa
A colonialidade do saber, como define Aníbal Quijano (2005), não se limita ao domínio político ou econômico, mas se estende à estruturação do conhecimento e à organização da subjetividade. A produção de discursos que inferiorizam ou criminalizam saberes e práticas religiosas não ocidentais, como a Umbanda, é uma expressão dessa colonialidade. O termo “macumba”, quando usado de forma depreciativa, é uma ferramenta discursiva de dominação simbólica, inserida na lógica do epistemicídio. “A colonialidade do poder está fundada sobre a ideia de raça como modo de classificação social, e estende-se à produção e controle do conhecimento” (Quijano, 2005, p. 122).
A utilização do termo “macumba” como pecha “falta de adequação as conveniências”, aliada a processos de censura simbólica e institucional, reforça o racismo religioso e epistemológico. O próprio Zélio de Moraes, como vimos no texto “Umbanda”, ao fundar a Umbanda institucionalizada, busca legitimar a prática por meio do espiritismo kardecista, estratégia de inserção num espaço mais aceitável aos olhos do cristianismo branco. Havia um movimento de “espiritualização branca da Umbanda”, o que muitos já chamam de “Umbanda branca”. Vale ressaltar que neste texto, a intenção não é condenar a Umbanda advinda do espiritismo, mas abrirmos as possibilidades de dialogar com a realidade da religião no Brasil, como fenômeno sócio histórico e cultural, e mostrar como esse processo esvazia conceitos, e acaba reproduzindo preconceitos.
A branquitude espiritualizada se apropria dos arquétipos da Umbanda e os reorganiza de forma a torná-los palatáveis ao gosto burguês e cristão, esvaziando sua potência ancestral afro-indígena. A crítica à intolerância religiosa se faz urgente. A ADC nos permite perceber que o discurso religioso dominante não é neutro, ele é constitutivo de uma política da verdade (Foucault, 1979). Ou seja, o que se considera religião legítima é resultado de um jogo de forças em que saberes eurocentrados definem os contornos da normatividade religiosa.
O discurso, o sujeito e a resistência epistêmica
Michel Pechêux (1990) afirma que o discurso é atravessado por ideologias e que o sujeito é efeito desse atravessamento. O praticante da Umbanda, portanto, é marcado por um discurso que constantemente tenta negá-lo, mas também o tenciona e o reescreve. É nesse ponto que Mikhail Bakhtin se insere de forma potente.
Bakhtin (1997) afirma que todo discurso é polifônico e dialógico. Assim, mesmo quando a Umbanda é chamada de “macumba” como insulto, esse discurso é reapropriado, ressignificado e, muitas vezes, afirmado como resistência. “A palavra vive, ela se encontra num ambiente de palavras do outro, se enche desse ambiente, e também se transforma” (Bakhtin, 1997, p. 113).
É por meio dessa reelaboração contínua, nos terreiros, nas práticas, nas canções e nos corpos, que a Umbanda resiste. Fiorin (2005), em diálogo com Benveniste, também aponta que os sujeitos constroem sentidos a partir das posições de enunciação. Assim, os praticantes da Umbanda subvertem o discurso dominante e fazem do insulto uma afirmação de identidade.
A Umbanda é resistência. É território discursivo e espiritual onde saberes afro-indígenas insurgem contra a colonialidade do saber e do poder. A nomeação pejorativa como “macumba” não é apenas ofensa, é estratégia de silenciamento. A análise do discurso crítico permite revelar essa estrutura de opressão simbólica e, ao mesmo tempo, iluminar as frestas por onde escapa a potência ancestral dos povos de terreiro.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1996.
PECHÊUX, Michel. Análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. CLACSO, 2005.