A MÍSTICA JUDAICA
A MÍSTICA JUDAICA
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em: mai. 2024
No Judaísmo, o termo utilizado para descrever a tradição mística – de modo geral uma forma de experiência religiosa –, é a Cabala. Ferreira (2018, p. 99, grifos do autor) explica que o “conjunto de temas que formam o objeto de estudo da Cabala é conhecido como Chochmá Nistará, ou seja, doutrina secreta” e também que se trata de uma doutrina secreta, seja pelo fato de tratar “dos assuntos mais profundamente ocultos e fundamentais da vida humana; mas é também secreto porque está confinado a uma pequena elite dos escolhidos que transmitem o conhecimento aos seus discípulos”. Como doutrina secreta (esotérica) apenas os iniciados poderiam ingressar no estudo da Cabala.
Antes de aprofundar o tema da Cabala, convém dizer algumas palavras sobre o misticismo.
O fenômeno místico tem sido observado nas mais diferentes culturas, nas mais diferentes religiões e em diferentes épocas, e pode ser entendido, de forma geral, como uma experiência de união do indivíduo com alguma força que ele considera divina e sagrada. Em sua análise da experiência mística, Velasco (2003) não deixa de ressaltar a dificuldade de encontrar um sentido único e universal para o conceito de mística, todavia, identifica alguns elementos que configuram uma tal experiência dentre os quais podemos destacar, precisamente, a ideia de uma união íntima com Deus como parte desta experiência.
Assim, pois, com a palavra “mística” nos referiremos, em termos todavia muito gerais e imprecisos, a experiências interiores, imediatas, fruitivas, que ocorrem em um nível de consciência que supera a que rege a experiência ordinária e objetiva, da união – qualquer que seja a forma com que se possa vivê-la – do sujeito com o todo, o universo, o absoluto, o divino, Deus ou o Espírito (Velasco, 2003, p. 23, tradução nossa).
A mesma experiência de união é observada por Leone (2008) em sua análise da mística judaica no pensamento de Joshua Heschel, que interpretou e traduziu conceitos da mística judaica: “A experiência mística tem como seu foco e concernência última a vivência direta com a fonte do Sagrado. Tal experiência tem como objetivo último, nas religiões teístas, a união com a Divindade” (Leone, 2008, p. 2).
Podemos entender assim, de forma geral, o misticismo como uma experiência religiosa de união com o divino: “O místico é um sujeito que busca uma experiência imediata com o transcendente” (Scholem, 1997, p. 12 apud Silva 2016, p. 17). Uma experiência que pode ser imediata e inesperada ou resultado de algum exercício ou disciplina espiritual.
No caso da mística judaica, Silva (2016) destaca o texto da Torá como a principal fonte dessa tradição: “conforme o misticismo judaico foi tomando forma, o texto da Torá ganhou um caráter cósmico, marcado por interpretações” (Scholem, 1997, p. 29 apud Silva, 2016, p. 18).
O primeiro documento da tradição cabalista judaica apareceu, conforme Scholem (1997, p. 109 apud Silva, 2016, p. 10), por volta de 1180 no sul da França, conhecido como o Livro de Bahir.
A Cabala, como a chamamos hoje, nasceu na Idade Média, no sul da França e na Espanha, espalhando-se para terras norte-africanas e do Oriente Médio. Estudiosos, religiosos e sábios judeus desses três continentes contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento dessa linha mística dentro do judaísmo (Silva, 2016, p. 15).
A partir de então, Silva (2016) ressalta que a Cabala pode ser dividida, sobretudo, em duas correntes: a extática e a teosófica.
A primeira fundamenta-se no êxtase ou iluminação e tem como principal representante Abraão ben-Samuel Abuláfia: “Abuláfia acreditava que, através do êxtase e das experiências mística, o homem seria liberto ou simplesmente estaria retornando para um mundo que, na verdade, sempre ansiou” (Silva, 2016, p. 27).
O caminho para o êxtase, segundo Abuláfia, estava na linguagem e, mais exatamente, no alfabeto hebraico, uma forma de contemplação mística a partir da combinação das letras que constituem o nome de Deus. Uma espécie de meditação do nome de Deus. “O nome de Deus [...] o nome através do qual todo o resto adquire seu significado” (Scholem, 1972, p. 135 apud Silva, 2016, p. 28).
A abordagem extática assume que o cabalista pode usar a linguagem e os textos canônicos com o fito de induzir uma experiência mística, mediante a manipulação de elementos de linguagem, junto com outros componentes de técnicas místicas. (IDEL, 2012, p. 31 apud Silva, 2016, p. 28).
Já na tradição da cabala teosófica destaca-se a obra o Zohar ou Livro do Esplendor, que tem como pano de fundo uma Palestina imaginária do século II, escrito em aramaico e de provável autoria do espanhol Moisés de Leon.
Embora o Zohar transpareça um cunho autobiográfico do Rabi Iohai, da Palestina do século II, inúmeras características literárias, filológicas e exegéticas apontam para o século XIII como o período de escrita, para a Espanha como local, e para Leon como autor (Silva, 2016, p. 30).
O Zohar destaca-se como um comentário místico do Pentateuco ou da Torá, especialmente do livro do Gênesis.
No campo da cabala teosófica, Isaac Luria é conhecido como um dos maiores nomes de todos os tempos: “reverenciado pelos devotos do mundo da cabala. Viveu no século XVI em Safed, na Galileia, oriundo de uma família judaica as aquenazi de origem das regiões onde hoje é a Alemanha, e viveu parte da vida no Egito, onde foi estudante” (Scholem, 1972, p. 262 apud Silva, 2016, p. 32).
A cabala lurânica tem bases no Zohar e apresenta uma proposta teosófica que procura compreender o funcionamento do universo, desenvolvendo uma teoria que procurasse explicar todos os fenômenos do universo e, a partir de então, buscar uma união com Deus.
Luria trata de temas como a criação que é uma das principais preocupações da Cabala e propõe “uma teoria inovadora acerca da origem ou criação de tudo. Ela baseia sua explicação na teoria do Tzimtzum, uma palavra hebraica para contração, ao afirmar que o Deus se contraiu-se para que o universo se originasse” (Silva, 2016, p. 33). Outros temas abordados por Luria são as Sefirot (série dos dez poderes divinos), a origem do mal e o Tikun (restauração ou concerto).
Na contemporaneidade, mais exatamente na década de 1920, teve início um movimento chamado Kabbalah Centre iniciado em Jerusalém pelo Rav. Ashlag. Esse movimento teve continuidade na Califórnia, nos Estados Unidos, por uma família judaica americana, a família Berg, em especial o Rav. Berg e Karen Berg, ajudando a difundir o ensino da cabala pelo mundo: “A homens e mulheres, judeus e não judeus foram abertas as portas do misticismo judaico, de modo a angariar seguidores em numerosos países, das mais diversas origens e classes sociais” (Silva, 2016, p. 57). A família Berg é seguidora da cabala luriânica, foi responsável pela tradução do Zohar para o inglês e também por tornar a cabala acessível também às mulheres: “Em seu livro Deus usa batom, Karen Berg expõe os princípios da cabala para mulheres de todas as classes e origens” (Silva, 2016, p. 58). Durante séculos a cabala era acessível apenas para homens judeus e até proibida para as mulheres. Karen Berg foi pioneira no sentido de apresentar a sabedoria da cabala também para as mulheres.
Mas na minha vida inteira, eu fui obstinada, então, insisti na ideia de abrir a sabedoria da Kabbalah para todos, independentemente de raça, sexo ou crença religiosa. Quando se está em um caminho espiritual, buscamos nos reconectar com o Espírito – a Luz do Criador. Esse espírito não tem nome – ele não é cristão, judeu ou budista; não é homem nem mulher; não tem nenhum tipo de limitação. É apenas Espírito, e existe muito além dos confinamentos de qualquer crença em particular. E não tem sexo. Se eu podia fazê-lo, outras mulheres deveriam ter a oportunidade de se conectar com esta sabedoria (Berg, 2012, p. 15-16 apud Silva, 2016, p. 61).
Shloyme Zanvil Rapoport
(AnSki – 1863-1920)
In: Heller, 2011, p. 67-68.
O universo de D’us é grande e sagrado. O país mais sagrado do Universo é Eretz Israel. A cidade mais santa de Eretz Israel é Jerusalém. O lugar mais sacro de Jerusalém é o Santíssimo Templo (beit hamikdash) e, nele, encontrava-se o Sancta Santorum (Kodesh haKodashim).
Existem no mundo setenta povos. Deles, o mais sagrado é o povo de Israel. Dentro do povo de Israel, a tribo de Levi é a mais santa. Da tribo de Levi, os mais santificados são os sacerdotes (cohanim), e, entre os sacerdotes, o mais santo é o Grão Sacerdote (Cohen HaGadol).
O ano tem 354 dias. Dentre estes, os mais sagrados sãos os dias de festa. Ainda mais sagrados, porém, são os sábados. E, dos sábados, o mais santo é o Dia do Perdão (Iom Kipur).
Há setenta idiomas no mundo. O mais santo é o hebraico. A coisa mais sagrada deste idioma é a Torá. Na Torá, a mais santa coisa são os Dez Mandamentos. E, nos Dez Mandamentos, a palavra mais sacra é o nome de D´us.
Uma vez no ano, a uma hora determinada, costumavam reunir-se as quatro grandes santidades. Era no Dia do Perdão (Iom Kipur), quando o Grão Sacerdote (Cohen haGadol) penetrava no Sancta Santorum (Kodesh haKodashim) e pronunciava o nome de D´us. Como este instante era extraordinariamente sagrado e terrível, era, também, o de maior risco, tanto para o Cohen haGadol como para todo o povo de Israel. Se, nesse momento, a ele, o Cohen haGadol – D´us livre e guarde! – lhe ocorresse um pensamento pecaminoso ou estranho, o mundo seria aniquilado.
Qualquer lugar do qual um homem eleve o olhar ao céu é igual, para o Todo Poderoso, ao Templo (beit hamikdash). Todo homem, que D´us criou à sua imagem, é um Cohen haGadol. Qualquer dia da vida humana é um Dia de Perdão (Iom Kipur), e toda palavra proferida com sinceridade equivale ao nome de D´us. É por isso que qualquer pecado ou delito de um ser humano acarreta o aniquilamento do universo.
IDEL, Moshe... [et. al.] (Org.). Cabala, Cabalismo e Cabalistas. São Paulo: Perspectiva, 2012.
FERREIRA, C. R. B. Cabala: Misticismo, Religião ou Filosofia. Scintilla, Curitiba, v. 15, n. 2, p. 89-106, jul./dez. 2018. Acesso em: 26 mai. 2024.
HELLER, R. Cabala: transgressão ou heresia? WebMosaica – Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v. 3 n. 2, p. 58-70, jul-dez, 2011. Acesso em: 29 mai. 2024.
LEONE, A. Torá, mística e razão em Heschel. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 1-12, mar. 2008. Acesso em: 29 mai. 2024.
SCHOLEM, G. A Cabala e seu simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1997.
SCHOLEM, G. A mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SILVA, L. L. de. A Cabala no Contexto da Pós-Modernidade. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia-GO, 2016.
VELASCO, J. M. El Fenómeno Místico – Estudio Comparado. 2. ed. Madri: Trotta, 2003.
Veja também: