FILOSOFIA ÁRABE

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em: jun. 2023

O pensamento filosófico árabe representou, como no cristianismo, uma tentativa de conciliar os grandes sistemas filosóficos gregos com o pensamento religioso que, aqui no caso, está expresso no Alcorão (o livro sagrado do Islamismo). “O papel da filosofia grega na formação do pensamento teológico e filosófico árabe será imenso” (BADAWI, 1983, p. 108). Os filósofos árabes medievais mais importantes, como destaca Chauí (2000) foram: Alfarabi, Avicena, Algazáli e Averróis.

Em seus primórdios, a filosofia árabe foi principalmente uma filosofia de teólogos, que devem tudo às crenças e tradições religiosas muçulmanas. Até o século IX, as especulações filosóficas do mundo árabe restringiam-se às discussões teológicas das primeiras seitas e escolas ascéticas, cuja suprema preocupação residia no exame de questões éticas e morais. Tais seitas e escolas se dedicaram ainda a debates de questões como os atributos divinos e os conflitos entre a predestinação e o livre-arbítrio.

A constituição do pensamento filosófico árabe tornou-se possível, em grande parte, graças à transmissão ao universo muçulmano de consideráveis vertentes dos sistemas gregos, sobretudo o aristotelismo e o platonismo (este através do neoplatonismo).

As traduções das obras gregas (e de outras línguas também) para o árabe representam um fenômeno cultural muito significativo para o mundo islâmico: “os filósofos mulçumanos tiveram à sua disposição, riquíssimo legado de traduções dos textos gregos ainda estudados nas escolas durante a Antiguidade tardia” (KALAOUN, 2016, p. 51). A civilização árabe tomou contato com a cultura grega através dos textos de medicina, astronomia, matemática, filosofia, inclusive “textos que não sobreviveram no original grego: astrologia e alquimia e o restante das ciências ocultas; o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e teoria da música); o corpus aristotélico: metafísica, ética, física, zoologia, botânica e lógica, o Órganon” (KALAOUN, 2016, p. 52).

Neste contexto vale destacar a criação por Al-Ma’mun, no ano de 832 em Bagdá, da casa de sabedoria (BAYT AL-HIKMA), uma combinação de biblioteca e academia “que, segundo os registros, foi uma das primeiras instituições especializadas em traduções” (KALAOUN, 2016, p. 63). Em pouco tempo a cidade de Bagdá se tornou um centro de peregrinação de estudantes que vinham de todas as partes do Islã.

No século X, várias obras dos filósofos gregos já eram conhecidas dos árabes:

o Corpus Aristotelicum em sua totalidade, três diálogos de Platão, um grande número de comentadores das obras de Aristóteles, excertos das três última Enéadas de Plotino [...] um número muito grande de obras apócrifas atribuídas a Aristóteles, Platão e outros filósofos gregos menores – todos esses textos estão traduzidos em árabe (BADAWI, 1983, p. 108).



Manuscrito ilustrado árabe do século XIII mostra Sugrate (Sócrates) a discutir com seus pupilos

Disponível em Wikipedia. Acesso em: 24 jun. 2023.

 

A principal influência filosófica no pensamento árabe será de Aristóteles, mas de uma interpretação neoplatônica de Aristóteles, como destaca Badawi (1983, p. 109): “em razão de terem-lhe atribuído, e falsamente, textos tirados das Enéadas de Plotino. Com isso, uma espécie de mescla aristotélico-platônica constituirá o fundo da filosofia grega conhecida dos árabes”.

Alfarabi (870-950) 

De origem persa, Alfarabi nasceu no distrito de Farab no Turquestão. Produziu várias obras, dentre as quais: Conciliação de Platão e Aristóteles, Aforismos do Político, A Grande Retórica, As Leis da Poética, Ideias dos Habitantes da Cidade Virtuosa e muitas outras. Alfarabi tinha um grande conhecimento acerca dos dois grandes filósofos gregos, Platão e Aristóteles, mas a síntese que ele acreditava possível entre esses dois filósofos, de onde resultou sua obra Conciliação de Platão e Aristóteles, se baseava em “um tratado atribuído a Aristóteles, mas que é, de fato, um excerto das Enéadas IV-VI de Plotino, intitulado Teologia de Aristóteles” (BADAWI, 1983, p. 111).

De Plotino (pela pseudo Teologia de Aristóteles, ele toma emprestada a imagem geral da produção dos seres, dessa espécie de lei da evolução que vai do Uno ao Múltiplo, do Eterno ao Temporal e ao Mutante. No início, um princípio supremo, Deus, que, conhecendo sua essência, assim conhece todas as coisas [...] (BRÉHIER, 2005, p. 416, tradução nossa).

Em suas obras aborda temas como o problema de Deus e a filosofia primeira, a psicologia humana, ciências naturais, ética, economia, política e música. Em sua obra Ideias dos Habitantes da Cidade Virtuosa, o filósofo mulçumano persa distingue “várias formas de cidade: a cidade virtuosa, à qual se opõem a cidade ignorante, a cidade imoral, a cidade versátil e a cidade transviada” (BADAWI, 1983, p. 114). À maneira da República de Platão, Alfarabi enumera as qualidades exigidas do chefe da cidade ideal: uma cidade regida por grandes espíritos cujas características se opõem aos reis da cidade ignorante, da cidade imoral, da cidade versátil e da cidade transviada. Alfarabi desenvolveu uma utopia inspirado no modelo platônico no seu tratado: Epístolas sobre as opiniões do povo ou Estado modelo.

Avicena (Ibn Sina) 

Herdeiro das tradições aristotélico-platônicas de Alkindi e, principalmente, de Alfarabi, Avicena (980-1037) foi um dos mais ilustres dentre todos os muçulmanos orientais. Avicena é considerado o maior filósofo islâmico deste período. Sua principal obra é o Shifá, que trata de lógica, matemática, física e metafísica, todavia, “a quintessência de sua filosofia acha-se expressa sob uma forma mais vigorosa num terceiro livro que se chama o Livro dos Teoremas e das Advertências” (BADAWI, 1983, p. 120). Publicou obras sobre medicina e também de gramática, geometria, física, jurisprudência e teologia e devido a seu amplo conhecimento elaborou um vasto sistema filosófico, continuando a tradição aristotélico-platônica de Alkindi e Al-Farabi. “Comparado a al-Fârâbi, é bastante difícil de encontrar nele ideias verdadeiramente originais. Mas é justo que seja reconhecido como o maior organizador de ideias, não somente para o Islã mas para a história do pensamento humano” (BADAWI, 1983, p. 121).

Avicena procurou conciliar as doutrinas de Platão, Aristóteles e Plotino, utilizando, por exemplo, as ideias aristotélicas para provar a existência de Deus, alegando que, Nele, existência e essência são iguais: Deus é igual à sua essência e fonte do ser de outras coisas. “O Deus de Avicena está muito próximo do Uno de Plotino e muito distante do Deus dos teólogos mulçumanos” (BADAWI, 1983, p. 121). Embora Avicena tenha tentado harmonizar, em suas várias obras, as formas abstratas da filosofia com as tradições religiosas do islamismo ele sustenta, do mesmo modo que Alfarabi, a tese da eternidade do mundo (em uma clara influência do mestre de ambos, a saber, Aristóteles). Como Alfarabi, ele considera a divindade como pura inteligência “que, conhecendo a sua essência, conhece todas as coisas, mesmo as coisas individuais, em suas razões fundamentais e suas quididades puras” (BRÉHIER, 2005, p. 418, tradução nossa).

Sobre o conhecimento, Avicena afirma que este forma-se a partir da realidade dos objetos conhecidos, desde a consciência dos princípios primordiais até a revelação escatológica, passando pelos princípios universais ou ideais. Sua sistematização da especulação interior é de capital importância para a filosofia escolástica, que absorveu de Avicena pelo menos três noções básicas, sobretudo no campo da metafísica: a da existência enquanto acidente que se associa à essência; a que se relaciona ao conceito da unidade do intelecto agente, constituída à custa da ascensão da potência no ato do entendimento; e a da distinção entre a essência e a existência nos seres criados, equivalente à união destes em Deus.

Além de filósofo, Avicena também era médico e sua principal obra nessa área é o cânon: “que desempenhou um papel muito grande no ensino da medicina na Europa, do século XIII ao século XVI” (BADAWI, 1983, p. 120).

A influência de Avicena no Oriente não foi duradoura devido à oposição dos teólogos ortodoxos. No Ocidente, contudo, Avicena foi decisivo para a difusão do pensamento de Aristóteles nos séculos XII e XIII, tendo influenciado filósofos posteriores, como Duns Escoto, Alberto Magno e Tomás de Aquino, que nutriam grande admiração por ele. Paralelamente às doutrinas desenvolvidas por Avicena, destacam-se aquelas que, a partir do século XI, foram disseminadas pelos pensadores muçulmanos na Espanha, onde se sobressai o nome de Averroés.

Algazali (1058-1111) 

Considerado um dos mais célebres estudiosos da história do pensamento islâmico sunita, Algazali mudou o curso da filosofia islâmica clássica com sua obra A Incoerência dos Filósofos (ou Destruição dos FilósofosTahâfut al-falasifah). Nesta obra, escrita em 1095, Algazali “combate os filósofos tanto gregos quanto mulçumanos” (BADAWI, 1983, p. 126) e procura demonstrar que “um homem pode conseguir toda a sabedoria e, ainda assim, perder a alma” (JURJI, 1956, p. 230). Neste livro, Algazali rejeita Platão, Aristóteles, rotulando aqueles que empregavam seus métodos (como Alfarabi e Avicena) de corruptores da fé islâmica. Algazali discute a posição dos filósofos em vinte questões, divididas em duas partes: “a primeira compreende as teses que se opõem ao Islã e em razão das quais os filósofos devem ser considerados incréus; a segunda abrange as opiniões que não estão em relação com os princípios da religião, mas se ligam a questões secundárias” (BADAWI, 1983, p. 126).

À tese da eternidade do mundo, responde que ela fere a vontade de indiferença que devemos atribuir a Deus, impondo-lhe eternamente a escolha de uma determinada ordem; a infinidade do tempo passado implica a regressão infinita das causas, o que é impossível, pois o número infinito, não sendo nem par nem ímpar, é contraditório. Os filósofos não puderam demonstrar nem a unidade de Deus, nem a espiritualidade da alma, nem a necessidade do nexo causal (BRÉHIER, 2005, p. 419, tradução nossa).

Por suas críticas aos filósofos gregos e mulçumanos, encontramos em Algazali uma espécie de crítica cética do conhecimento. Apesar de ser dotado de um profundo conhecimento intelectual, Algazali se notabilizou mais no campo da mística do que da filosofia intelectualista (tendo rejeitado, inclusive, a metafísica). “Homem de sinceridade notável e de conhecimentos ilimitados, mergulhou numa prolongada experiência mística [...] reconheceu o valor da emoção na adoração, e encontrou no ‘sufi’ (misticismo islâmico) um veículo adequado” (JURJI, 1956, p. 230).

Algazali escreveu dezenas de livros sobre temas como as ciências, a antiga filosofia islâmica, psicologia islâmica, o estudo da doutrina islâmica (conhecido como calam) e o sufismo. Sua obra mais importante foi o Iḥyāʾ ʿulūm al-dīn (A Revivificação das Ciências da Religião). Esta obra é considerada como uma das mais importantes da espiritualidade muçulmana.

No século seguinte, Averróis esboçou uma longa refutação da Incoerência de Algazali, no seu livro intitulado Destruição da Destruição (ou A Incoerência da Incoerência).

Averróis (Ibn Roshd) 

A obra de Averróis, como a de seus predecessores, procurou conciliar filosofia e dogma.

basta dizer que, segundo ele, essa filosofia em nada se opõe à religião; religião e filosofia representam duas etapas do pensamento; a religião esconde sob um véu, para torná-los acessíveis aos profanos, as verdades que o filósofo descobre e cujo conhecimento é o próprio culto que ele presta a Deus (BRÉHIER, 2005, p. 421, tradução nossa).

Averróis procurou demonstrar “que a religião e a filosofia se harmonizam e seu objetivo é a defesa da filosofia que é uma disciplina que não está alheia a um autêntico espírito religioso” (KALAOUN, 2016, p. 46).

Sua obra representa a maturidade e a culminância da tradição aristotélica no pensamento muçulmano e seu trabalho teve grande influência sobre a escolástica. Averróis nasceu em Córdoba, no coração da Espanha mulçumana, em 1126 e faleceu em 1198.

Averróis foi um dos maiores conhecedores e comentaristas de Aristóteles. Aliás, Aristóteles foi redescoberto na Europa graças aos árabes e os comentários de Averróis muito contribuíram para a recepção do pensamento aristotélico. Averróis também se ocupou com astronomia, medicina e direito canônico muçulmano.

A influência aristotélica na obra de Averróis se revela em sua idéia da existência do mundo de modo independente de Deus (ambos são co-eternos) e de que também não existe providência divina. No âmbito religioso, sua interpretação do Alcorão propõe que há verdades óbvias para o povo, místicas para o teólogo e científicas para o filósofo e estas podem estar em desacordo umas com as outras. Havendo o conflito, os textos devem ser interpretados alegoricamente. É daí que decorre a ideia que lhe é atribuída de que existem duas verdades, onde uma proposição pode ser teologicamente falsa e filosoficamente verdadeira e vice-versa. Recorrendo à lógica de Aristóteles, Averróis propõe inclusive um tipo de silogismo para justificar o estudo da filosofia que seria mais ou menos da seguinte forma: “1. A filosofia é o exame da ordem divina; 2. O exame da ordem divina é ordenada pela lei; 3. Logo, a filosofia é ordenada pela lei” (KALAOUN, 2016, p. 46). Ou ainda:

se o ato de filosofar consiste no exame racional dos seres existentes (Al-mawjudat) e refletir sobre eles constitui a prova da existência de um Artesão [...] e conhecer o Artesão é tão perfeito quanto conhecer os seus artefatos, a revelação recomenda a reflexão sobre os seres existentes fazendo uso da razão (PEREIRA, 2012, p. 51 apud KALAOUN, 2016, p. 46).

Dentre suas várias obras, uma das mais célebres é a intitulada Destruição da destruição (em árabe Tahafut al-tahafut), também conhecida como Incoerência da incoêrencia, onde defende o neoplatonismo e o aristotelismo dos ataques de outro filósofo árabe: Algazali. Dentre seus escritos filosóficos destacam-se os comentários sobre as obras de Aristóteles, como os comentários da Metafísica, De Anima, De Caelo e a Retórica. Tais comentários podem ser divididos em três espécies:

1º) os grandes comentários (em árabe: Sharh), onde o texto de Aristóteles é reproduzido por inteiro e comentando parágrafo por parágrafo; 2º) comentários médios [...], livres paráfrases do texto, sem seguir rigorosamente o original e fazendo, às vezes, omissões; 3º) enfim, epítomes [...] que são simples resumos sem relação com o texto do Estagirita (BADAWI, 1983, p. 127).


Referências 

BADAWI, Abdurraman. Filosofia e Teologia do Islã na Época Clássica. In: François Châtelet (org.). História da Filosofia – Ideias e Doutrinas: A Filosofia Medieval. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

BRÉHIER, Émile. Histoire de la philosophie: Tome premier – L’Antiquité et le Moyen Âge. Les Classiques des Sciences Sociales. Édition Électronique, 2005. (Édition Électronique réalisée à partir de la édition: Librarie Félix Alcan, Paris, 1928).

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

JURJI, Edward J. Islamismo. In: JURJI, Edward J. (org.). História das grandes religiões. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1956, p. 201-248.

KALAOUN, Tarek Chaher. Os Pilares da Fé: O Pensamento Racional Científico como Sustentação Simbólica do Islamismo. 83 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia-GO, 2016.

PEREIRA, Rosalie Helena de Souza. Averróis: a arte de governar. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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