No Programa FpC do filósofo norte americano Matthew Lipman a “comunidade de investigação é o núcleo da FpC” (DINIS, 2011, p. 56). É na comunidade de investigação (CI) onde são cultivadas as habilidades de investigação através do diálogo e do raciocínio. A comunidade de investigação é o local onde as experiências a serem desenvolvidas nos educandários devem ser vivenciadas em círculos de investigação filosófica. “[...] é chamada Comunidade de Investigação, justamente porque envolve o conjunto das pessoas em torno de uma mesma questão (comunidade), por meio do diálogo criterioso, criativo e cuidadoso (investigativo)” (REIS, 2019, p.19).

No método de Lipman, o professor propõe um debate em sala de aula em uma comunidade investigativa, ou seja, um espaço dialógico onde as crianças têm um lugar de descobertas, uma investigação acerca do pensar, onde os participantes são motivados a pensarem em determinadas soluções para possíveis problemas. Dessa maneira, constrói-se um lugar de possibilidades para um pensar reflexivo e autônomo, pois a ideia não é apenas fazer com que haja um simples diálogo informal, mas um debate logicamente estruturado, deve haver uma finalidade intencional, que por conseguinte, viabilizará aos infantes a oportunidade de tornarem-se cidadãos críticos.

A comunidade de investigação não é apenas um componente do Programa de FpC, mas a base do paradigma de um ensino reflexivo e crítico. Em consequência dessa ação investigativa filosófica, teríamos iniciativas de pensamentos elaborados pelas próprias crianças, viabilizando a capacidade de levantar questionamentos presentes em seu cotidiano, além de poder obter essas respostas a partir de seu próprio raciocínio. Na CI, o diálogo é o principal instrumento viabilizador da investigação filosófica dentro da sala de aula, tendo o professor como mediador das discussões filosóficas:

Essa atividade do pensar é realizada por meio da criação de um diálogo, promovendo o pensamento de investigação na sala de aula. As crianças são encorajadas a falar e a ouvir umas às outras e discutir as ideias filosóficas com a orientação de um professor, que é o mediador, sendo o ensino resultado do processo de investigação (LIMA, 2018, p. 37).

Na CI, Lipman usa Novelas Filosóficas como parte de sua metodologia: são recursos pedagógicos que compõe o currículo do Programa de FpC. As narrativas das novelas ajudam as crianças não somente no que diz respeito ao aspecto intelectual, como também na formação de valores morais. Cada narrativa é composta por diferentes histórias que ressaltam temas e valores que fazem parte do cotidiano infantil como: bem/mal; verdade/mentira, medo, moral, justiça, dentre muitos outros. O objetivo das temáticas abordadas em cada uma das novelas é o de instigar o pensamento crítico e criativo. Através dos textos narrativos, são abordados princípios como o de que todos nós estamos em processo de formação do pensar bem. Desse modo, para que seja alcançado os objetivos propostos pela CI na sala de aula, Lipman sugere primeiro criar um ambiente favorável aos debates e manter uma relação de confiança e respeito mútuo entre aluno-professor-aluno, sendo necessário também que todos estejam desejosos a obter novos conhecimentos, “faz-se necessário compreender que o diálogo é a regra básica e a participação das crianças envolve por princípios éticos e morais” (PINTO, 2021, p. 49). Com isso, as narrativas são apresentadas às crianças, e após, o professor fica responsável pelo processo de orientação dos diálogos, porém ao docente cabe apenas o papel de facilitador das discussões levantadas na comunidade, “isto é, corrigir erros de raciocínio, despertar interesses, suscitar o questionamento filosófico” (BRITO, 2021. p. 13). Os temas suscitados pelas novelas são partilhados de modo que todos possam pensar juntos as soluções para os problemas apresentados, criando assim um lugar de oportunidades, de criação, de desenvolvimento das habilidades do pensamento.

O Programa FpC de Lipman tem como objetivo abordar temas filosóficos que possam proporcionar discussões em torno de questões estéticas, ambientais, sociais, da ética e muitas outras, entretanto, aqui iremos ressaltar apenas a questão da ética e dos valores.

Lipman oferece uma conceituação do que seja Ética, indica a importância, por sua necessidade, de uma educação moral que envolva compreensão intelectual (investigação ética), que propicie uma ambiência moral e desenvolvimento da auto-estima [...] e preparação para o exercício de uma cidadania responsável [...] (LORIERI, 2009, p. 63).

Vemos assim que a ética está inseria do Programa FpC e deve ser trabalhada dentro da proposta metodológica da CI, proporcionando aos alunos uma reflexão acerca da sua conduta perante a sociedade. Se formos analisar do ponto de vista de que a preocupação de Lipman é a construção de um pensar crítico-reflexivo da humanidade desde a infância, e que para o filósofo essa construção de um pensar certo começa ainda na infância (e como Lipman sugere em sua CI, na sala de aula), a possibilidade de formar uma sociedade mais autônoma, justa e consciente de seus atos, é ainda maior se essa “tomada de consciência” se der o quanto mais cedo possível, por isso Lipman (1990, p. 95) afirma que “se a escola, a família, o professor e o currículo não cultivarem o pensamento e não tratarem devidamente, a probabilidade de a criança ser capaz de se envolver em raciocínio ético é bastante remota”.

Na CI, onde são abordadas as Novelas Filosóficas, temos um total de oito novelas escritas pelo filósofo norte-americano e das quais duas abordam diretamente a questão da ética, como é o caso de Luísa e Nous. “Luísa retoma algumas das questões lógicas que já apareceram em Ari [1] e introduz as questões éticas [...] Nela, são tratados os mais diversos temas éticos que foram discutidos por muitos filósofos, e, ainda hoje, estão presentes no nosso cotidiano” (DIAS, 2009, p. 211). Analisando brevemente esta narrativa, temos que:

[...] Luísa, para 7° e 8° séries, por exemplo, apresenta, no seu primeiro episódio, a seguinte pergunta principal “podemos amar os animais e ao mesmo tempo comê-los?”. A personagem que dá nome a novela, Luísa, sente, simultaneamente, um grande carinho pelos animais e um grande prazer em comê-los. Isto é coerente? correto? se pergunta. A partir dessas perguntas gera-se uma série de conversações entre Luísa, seus pais e seus colegas da escola, que leva, em última instância, a questão, “como se deveria viver?”, uma das principais perguntas da ética (KOHAN, 2008, p. 66).

Situações como essas, vivenciada pela protagonista na novela Luísa, contemplam questões do cotidiano da criança no mundo real, “a investigação ética, aí, ocupa um lugar central especialmente se feita no que é denominado de Comunidade de Investigação. Esta é uma ideia central e, mais que uma ideia, ela é o locus por excelência onde a proposta do Programa deve se realizar” (LORIERI, 2009, p. 61 – grifo do autor).

No programa FpC, de Matthew Lipman, o estímulo ao pensamento crítico e a reflexão sobre diferentes áreas como cidadania, lógica, moral, ética e tantas outras são as bases que compõem as ideias lipmanianas. Utilizando o recurso da CI, podemos facilmente perceber, na proposta pedagógica de Lipman, que a questão da ética e dos valores estão inseridas através das novelas filosóficas, notadamente Luísa e Nous, onde esses conceitos são tratados de maneira estratégica pensando na promoção de valores. As narrativas têm o objetivo de contribuir na formação de um pensar bem da criança, de modo a permitir que a criança desenvolva autonomia e as habilidades cognitivas do pensamento. Dessa maneira, as novelas filosóficas Nous e Luísa abordam a questão dos valores morais, da ética, para que assim a criança seja capaz de refletir sobre o seu próprio modo de agir nos diferentes contextos em que vive, construir valores, que as ajudem a formular conceitos de ordem ética como bem/mal, verdade/mentira, igualdade, liberdade, responsabilidade, e outros tantos que sãos inerentes ao cotidiano próprio da criança.

Portanto, fica evidente as muitas contribuições que as novelas filosóficas, através da CI, podem propiciar ao desenvolvimento e estímulo do pensamento crítico e reflexivo infantil, assim como é possível perceber a preocupação e o cuidado do filósofo em reconhecer a criança como sujeito dialógico capaz de refletir sobre conceitos relacionados à moralidade e a ética, discussões essas que contribuem para que criança perceba a importância desses conceitos fundamentados no respeito e na valorização do outro, favorecendo a construção de uma sociedade mais racional e participativa.

BRITO, Ada Mônica Santos. Comunidade de investigação filosófica de Matthew Lipman no ensino fundamental: estudo das produções científicas sobre o tema, no período 2005/2020. Anais do II Seminário de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, 2021. Acesso em: 28 nov. 2022

DIAS, Marinês Barbosa de Oliveira. Professores de Filosofia para Crianças – quem são eles? Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Campinas-SP, 2009.
KOHAN, W. O. Filosofia para crianças. 2. ed. Rio de Janeiro: Laparina, 2008.

LIMA, Caroliny Santos. Criança Filosofando: uma proposta metodológica de ensino à luz de Matthew Limpan. 181 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Pós- graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2018.

LIPMAN, M. A Filosofia vai à Escola. Tradução de Maria Elice de Brzezinski Prestes e Lucia Maria Silva Kremer. São Paulo: Summus editorial, 1990.

LORIERI, Marcos Antônio. A Proposta de Educação Moral no Programa de Filosofia para Crianças – Educação para o Pensar. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, n. 11, p. 58-70, abr. 2009. Acesso em: 27 nov. 2022.

PINTO, Norberto Ferreira. Contribuições Filosóficas do Programa Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. 82 f. Monografia. (Trabalho de conclusão de curso). Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2021.

REIS, Lígia de Almeida Durante Correa dos. Filosofia para Crianças. Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2019.

[1] Uma referência a primeira novela escrita por Lipman, traduzida para o português como A Descoberta de Ari dos Telles.