MATTHEW LIPMAN
por Alexsandro M. Medeiros
lattes.cnpq.br/6947356140810110
postado em jun. 2020
Matthew Lipman foi um filósofo norte americano, reconhecido como fundador do método de filosofia para crianças. Nasceu em 1923 em Nova Jersey e apenas em 1948, quando já tinha 25 anos, pôde concluir sua graduação em Filosofia, por causa da segunda grande guerra. Doutorou-se com uma tese sobre arte em 1954 também em Filosofia, na Columbia University (Universidade de Columbia) em Nova York.
Foi a partir de sua experiência como professor na Columbia University, onde passou a ministrar aulas de lógica em 1956, que ele resolveu trabalhar com a filosofia para os jovens e crianças, ao constatar a dificuldade dos seus alunos para raciocinar.
Essas dificuldades foram, mais tarde, confirmadas por testes realizados pelo MontClair College, os quais revelaram que as habilidade de raciocínio dos calouros universitários não se diferenciavam substancialmente das encontradas em alunos de 6ª série e que os dois grupos pesquisados apresentavam a mesma dificuldade (MARER, 1985 apud SILVEIRA, 1998, p. 14).
Por isso, procurou trabalhar as habilidades de raciocínio particularmente através do ensino da lógica, que ele acreditava que poderia ajudar as crianças a melhorar a habilidade de raciocinar.
Na década de 1960, Lipman estava insatisfeito com o sistema educacional norte americano denominado por ele paradigma padrão da prática educativa normal (algo semelhante ao modo de educação bancária criticada posteriormente por Paulo Freire em que ao aluno cabe apenas a absorção de um conhecimento pronto, transmitido pelo professor). “No paradigma educacional padrão, os que sabem transmitem os conhecimentos aos que não sabem [...] São os professores que possuem o conhecimento que será repassado aos alunos [...] Os alunos absorvem informações e dados sobre assuntos específicos” (MARQUES, 2009, p. 87-88). Esse paradigma é “baseado na ‘transmissão de conhecimentos’, na autoridade do professor e na noção de aprendizagem como ‘absorção de informações’” (SILVEIRA, 1998, p. 79).
Lipman acusa, inclusive, este modelo do paradigma tradicional de ser o responsável do ponto de vista social “pelas graves circunstâncias em que o mundo se encontra atualmente” (LIPMAN, 1990, p. 33 apud DIAS, 2009, p. 14). E continua:
Se lamentamos nossos líderes e nossos eleitores por serem egoístas e não esclarecidos, devemos nos lembrar que eles são produtos de nosso sistema educacional. Se protestamos, como um fator atenuante, que eles são também produtos de lares e famílias, devemos lembrar que os pais e avós dessas famílias são igualmente produtos do mesmíssimo processo de educação. Como educadores, temos uma enorme responsabilidade pela irracionalidade da população mundial” (LIPMAN, 1990, p. 33 apud DIAS, 2009, p. 14).
A partir de então Lipman procurou elaborar um programa de ensino de filosofia que se basearia no paradigma reflexivo da prática educativa crítica para superar o paradigma tradicional pois as dificuldades de aprendizagem relativas à capacidade de ler, interpretar, inferir, construir sentenças e fazer julgamentos refletiam, para o filósofo, o modelo de educação vigente. Por isso se fazia necessário um outro modelo em que o currículo contemplasse a racionalidade crítica e criativa. Este paradigma reflexivo se caracteriza pela participação dos alunos no que Lipman chama de comunidade de investigação (conceito que veremos adiante), que é orientada pelo professor, no qual os alunos devem ser estimulados a pensar e refletir, desenvolvendo cada vez mais o uso da razão, por isso a postura do professor é a de um facilitador. Neste paradigma “a preocupação é saber se os alunos estão pensando de maneira reflexiva, utilizando a razão [...] o paradigma reflexivo considera a educação como investigação” (MARQUES, 2009, p. 89). “O que se pretende, nesse modelo, é que os alunos ‘pensem’, ‘reflitam’, e ‘desenvolvam cada vez mais o uso da razão’, bem como sua ‘capacidade de serem criteriosos’” (SILVEIRA, 1998, p. 79).
O paradigma reflexivo da prática crítica apoia-se na ideia de educação como “investigação problematizadora” sobre os conteúdos de cada disciplina, sendo o conhecimento sobre o mundo entendido como “complexo”, “problemático” e “controverso”, o que estimula educadores e educandos a pensarem sobre o próprio conhecimento e, consequentemente, sobre suas compreensões de mundo (DIAS, 2009, p. 17).
No modelo do paradigma padrão a escola não incentiva o desenvolvimento do pensamento dos alunos, alienando suas capacidades intelectuais e até mesmo a maneira como as disciplinas são organizadas e o material didático elaborado favorecem essa alienação, ao invés de contribuir para o desenvolvimento da autonomia dos estudantes. Esse paradigma deve ser substituído por outro, capaz de oferecer atividades que possam desenvolver as potencialidades cognitivas das crianças, em outras palavras, uma educação que seja, de fato, “para o pensar”. Na ideia de uma educação para o pensar “reside a crença de que o pensamento representa uma faculdade passível de aperfeiçoamento e, então, a tarefa a ser cumprida pela escola será a de ajudar crianças e jovens, que pensam, a se transformarem em crianças e jovens que ‘pensam bem’” (DIAS, 2009, p. 22). Um pensar bem que tem como característica a autonomia (ser capaz de pensar si mesmo independente do pensamento de outra pessoa) e o senso crítico (não aceita qualquer ideia somente porque disseram que é assim ou que tem que ser assim).
Em 1974 Lipman fundou, junto com sua principal colaboradora Ann Margareth Sharp, o Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC), onde começou a introduzir a filosofia na educação primária e secundária: “com o objetivo principal de organizar e coordenar a difusão e a implementação do Programa de Filosofia para Crianças, não apenas nos Estados Unidos, mas também em outros países onde houvesse pessoas ou instituições interessadas” (SILVEIRA, 1998, p. 18).
O IAPC foi fundado na Universidade de Montclair. Além de Ann Margaret Sharp, “outro colaborador que se agrega ao grupo é Frederick S. Oscanyan, especialista em lógica e que ajudará Lipman na elaboração dos textos das novelas” (BROCANELLI, 2010, p. 22). O Instituto tem hoje em dia uma ampla atuação em âmbito internacional para promover a filosofia para crianças e é reconhecido e aplicado em vários países. Além da referência do IAPC, Dinis (2011, p. 3) cita ainda: o Internacional Council of Philosophical Inquiry with Children (ICPIC), na Dinamarca, fundado em 1985; o Comenius MENON Developing Dialogue through Philosophical Inquiry; a fundação SOPHIA (European Foundation fot the Advancement of Doing Philosophy whith Children); o North Atlantic Association for Communities of Inquiry (NAACI); a Federation of Australasian Philosophy in schools Associations (FAPSA); todas estas instituições adotam o Programa FpC.
Sanchez (2005, p. 30) ressalta como a proposta é “aplicada em mais de 30 países do mundo, tendo inspirado críticas e alternativas” e chegou no Brasil na década de 1980. Aqui no Brasil merece destaque o professor Walter Omar Kohan, nascido em 1961 em Buenos Aires, Argentina e, atualmente, professor titular do Universidade do Estado do Rio de Janeiro (sobre a Filosofia com crianças em Walter Kohan, ver: RENDÓN, 2015, p. 60-78); Ana Míriam Wuensch que coordenou, junto com o professor Kohan, o projeto de Filosofia na Escola; e Angélica Sátiro, diretora de projetos e responsável pela área de Filosofia para Crianças nas escolas do Grupo Pitágoras.
O Programa de Lipman chegou ao Brasil em 1984 e merece destaque ainda a criação do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC), em São Paulo, em 1985: “o Centro brasileiro obteve do IAPC o reconhecimento como seu legítimo representante no Brasil e a autorização para traduzir, adaptar e publicar materiais e ministrar cursos de formação de monitores e de treinamento de professores” (SILVERIA, 1998, p. 24). Os responsáveis pela criação do CBFC foram: Catherine Young Silva que, ainda em 1984 “iniciou trabalhos de divulgação e implantação da proposta junto a escolas das redes privada e pública de São Paulo” (DIAS, 2009, p. 1), e contou com o apoio dos professores Marcos Antônio Lorieri (PUC/SP), Ana Luiza Falcone e Sílvia Hamburger Mandel. Em 1985 e 1988 Lipman esteve no Brasil para um série de palestras e conferências. Dinis (2011, p. 4) destaca como “o centro formou, milhares de professores firmados pelo programa de Lipman antes de proceder a expansão dessa experiência em todo o país”. O CBFC encerrou suas atividades em 2010 e o IFEP (Instituto de Filosofia e Educação para o Pensar) assumiu a responsabilidade de dar “continuidade com o programa de Lipman, além de oferecer outros tipos de formação, de produzir materiais alternativos aos concebidos e desenvolvidos por Lipman e ter parceria com a Fundação Sidônio Muralha, de Portugal” (REIS, 2019, p. 49-50).
Henning (2005) ressalta, por sua vez, a aceitação da proposta de Lipman pelos latino americanos com a realização de vários congressos no século XXI e de como professores e pesquisadores latino americanos vão à Universidade de Montclair, em Nova Jersey, para estudar no IAPC. Destaca os Centros de Filosofia para Crianças espalhados pelo México desde 1979 (como em Merida e Yucatán), o programa de filosofia para crianças adotado na Nicarágua, o Centro de Filosofia para Crianças da Costa Rica criado em 1989. Como o Chile foi o primeiro país latino-americano a adotar o programa de ensino de filosofia para crianças e ainda o Projeto de Filosofia Aplicada Buho Rojo, criado no Peru em 1998, no qual “os profissionais peruanos decidiram implementar o programa lipmaniano como um plano piloto em muitas das suas escolas elementares e secundárias” (HENNING, 2005, p. 462-463). O programa de Lipman ganhou visibilidade internacional rapidamente. “Em 1976, outras localidades do mundo traduziram seus materiais e iniciaram o trabalho com Filosofia para Crianças, tais como Alemanha, Austrália, Áustria, Canadá, Chile, Colômbia, Espanha, França, Havaí, Islândia, México, Portugal e Taiwan” (REIS, 2019, p. 49).
O Programa FpC de Lipman teve a influência do trabalho de vários filósofos, psicólogos e educadores, dentre os quais podemos destacar: Sócrates, Charles Sander Peirce, John Dewey, Vygotsky, Jean Piaget ou as ideias de Jerome Bruner (saiba mais em: Influências no Programa de Lipman).
Lipman é autor de obras como: Philosophy Goes to School; Thinking in Education; Thinking Children and Education; Natasha – Vygotskian dialogues; além de ser autor de vários livros para crianças (as novelas filosóficas). O livro A Filosofia na Sala de Aula, foi escrito em 1980, em parceria com Ann Margaret Sharp e Frederick S. Oscanyan, onde é observado a realidade educacional norte americana que persistia nas escolas. Assim, se faz “uma crítica à educação e aponta sugestões e caminhos para que a escola se torne mais atrativa e corresponda aos anseios das crianças e jovens, os quais vivem em busca de significados” (BROCANELLI, 2010, p. 23-24). Além disso, é abordado as características do Programa de FpC. Em co-autoria com Ann Sharp, Lipman é autor de seis manuais para o professor do currículo de Filosofia para Crianças.
Filosofia para Crianças
A filosofia, como pondera Souza (2015, p. 68) “é educadora do nosso pensamento, da nossa razão, principalmente se nos pusermos a filosofar junto com os outros, realizando aquilo que se chama o diálogo filosófico”. E isto não diz respeito ao filosofar nesta ou naquela idade pois o pensamento é inerente a natureza humana embora a razão se desenvolva de acordo com os estágios de amadurecimento cognitivo infantil. Isto significa que a filosofia deve servir também para as crianças, apenas adaptando a forma de utilização da razão e do pensamento de acordo com a sua capacidade de assimilar ideias. E a escola, claro, sendo um espaço físico de convivência e troca de experiências pode ser pensada no sentido de como trabalhar o desenvolvimento deste aspecto cognitivo da criança. A escola deve criar uma sala de aula com um ambiente “favorável para o desenvolvimento da filosofia para o bem pensar, onde cada aluno necessita desenvolver o seu ponto de vista, seu estilo de pensamento” (SOUZA, 2015, p. 69).
Assim, restabelecendo a principal característica da filosofia que é o saber perguntar diante daquilo que provoca o espanto, Lipman enfatiza o seu papel como uma disciplina que desenvolve o diálogo para ajudar as pessoas a investigarem de modo sério e inteligente, buscando as soluções aos seus problemas, como também, pensando criativamente através de uma riqueza de alternativas acerca dos mundos possíveis (HENNING, 2005, p. 457).
Há que se considerar que a criança é uma espécie de “filósofa natural”. Sobretudo quando inicia a fase dos “por quês”. Ela tem uma curiosidade natural para querer conhecer as coisas. É a mesma curiosidade que anima o filósofo pois, como diz Aristóteles: “todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer”. Como os homens na fase adulta a que se refere Aristóteles, as crianças possuem uma sede insaciável, como pondera Dinis (2011, p. 19), para fazer perguntas, o que as leva “diretamente ao mundo da filosofia”. Desde que começam a possuir um certo domínio da linguagem e se dão conta de que podem colocar questões sobre o mundo que as rodeiam, as crianças “manifestam uma enorme curiosidade por saber, e não se cansam de interrogar infinitamente os pais ou conhecidos para colmatarem a sua desenfreada demanda pelo desconhecido. Essa atitude faz, queremos nós, deles uns pequenos filósofos” (DINIS, 2011, p. 2). Daí a importância de se pensar um Programa de Filosofia para Crianças.
Se durante milênios a filosofia negligenciou a infância, salvo com raras exceções, o Programa FpC desenvolvido por Matthew Lipman e sua colaboradora Ann Margareth Sharp na década de 1970 propõe uma guinada neste aspecto ao apresentar como objetivo cultivar e desenvolver as habilidades de pensamento das crianças, fazendo com que elas possam pensar por si mesmas, através da investigação e discussão de temas filosóficos.
A Filosofia para Crianças é um programa que procura essencialmente, estimular as crianças e jovens a pensar bem, a ter um pensamento bem estruturado, isto é, aprender procedimentos que os ajudem a pensar, cada vez mais, de maneira crítica, reflexiva, criativa e autônoma. Este aperfeiçoamento cognitivo deve, na ótica de Lipman, começar desde a mais tenra idade, passando pelas várias etapas do ensino e prosseguir até ao fim da vida (DINIS, 2011, p. 14).
O Programa FpC visa a iniciação filosófica e o cultivo das habilidades de pensamento (ou habilidades cognitivas) das crianças. Não se trata, naturalmente, do ensino de filosofia propriamente dito, com sua linguagem apurada, densa e inacessível às pessoas não iniciadas no universo conceitual próprio da filosofia, “mas sim o de criar uma predisposição e uma atitude favorável ao exercício filosófico, exercitando o pensamento crítico e dialógico das crianças” (SOUZA, 2013, p. 17-18).
Podemos pensar na distinção entre filosofia (a filosofia como um sistema) e o ato de filosofar (a filosofia como uma atividade do pensamento). No Programa FpC ressalta-se a atividade do pensamento, incitando as crianças a praticarem o ato de filosofar embora, é claro, não se possa filosofar sem filosofia ou sem o contato com aquilo que a filosofia tem produzido ao longo de mais de vinte séculos.
Quando falamos em habilidade de pensamento podemos pensar: na habilidade de raciocínio (que corresponde a competência de formular questões, estabelecer conclusões ou inferências, dar exemplo e contra exemplos, além de identificar similaridades e diferenças); na habilidade de investigação (que corresponde a competência de formulação de problemas, questões, hipóteses); na habilidade de formação de conceitos (que corresponde a competência de identificar conceitos e, por isso, possibilita a análise de conceitos identificando seus componentes); e na habilidade de tradução (que corresponde a competência de traduzir o que está sendo dito sem comprometer o significado original do discurso). Tais habilidades “são entendidas como pré-requisitos para o ‘pensar bem’ ou ‘pensar de ordem superior’ [...] constituem ‘instrumentos necessários para que elas desenvolvam sua racionalidade’” (SILVEIRA, 1998, p. 83).
O Programa utiliza como recurso didático as chamadas novelas filosóficas, escritas de maneira mais simples e onde são contempladas discussões em torno de vários temas filosóficos, sobretudo de valores estéticos, sociais e morais como: o belo, a verdade e a mentira, o justo e o injusto, o bem e o mal (saiba mais em: As Novelas Filosóficas).
Instrumentos centrais dessa metodologia, as “novelas filosóficas” escritas pelo próprio autor e seus colaboradores, apresentam diálogos entre crianças, pais, vizinhos, professores, tentando simular situações com as quais as crianças-leitoras possam se identificar. As crianças personagens representam modelos de “investigadores” que debatem questões significativas do seu cotidiano (SANCHEZ, 2005, p. 35).
Comunidade de Investigação
A ideia de comunidade de investigação expressa um espaço onde as crianças tenham condições de aprender ao discutir e investigar temas de interesse mútuo, que envolva uma questão aberta que possibilite o debate: “a comunidade é o lugar do diálogo filosófico, que é o caminho autêntico para se fazer filosofia” (SANCHEZ, 2005, p. 32). “A comunidade de investigação é o núcleo da FpC” (DINIS, 2011, p. 56) onde são cultivadas as habilidades de investigação através do diálogo e do raciocínio.
Através da comunidade de investigação o Programa FpC procura fazer com que os estudantes fiquem dispostos em formato de círculo e “participem de discussões expondo suas ideias, ouvindo atentamente e comentando, o que amplia a capacidade de apresentarem razões para o que dizem e pensam” (QUEIROZ; CAMPOS, 2000, p. 129). Os temas discutidos são oriundos da leitura das novelas filosóficas. O professor serve de orientador da discussão.
É importante ressaltar que neste método o “erro” ou aquilo que é dito aparentemente sem importância durante as discussões “longe de serem tolices, constituem, na verdade, uma etapa importantíssima para o desenvolvimento do raciocínio hipotético-dedutivo, uma vez que representam seus pontos de vista pessoal” (SOUZA, 2015, p. 64). Na verdade, melhor do que falar em “erro”, talvez seja mais exato falar em opiniões divergentes ou tentativas de acertos para que “a verdade daí inferida possa ser de fato percebida como a alternativa mais plausível e coerente ao que se pretende sustentar por meio do raciocínio lógico” (SOUZA, 2015, p. 64).
A discussão filosófica, desde Sócrates e Platão, se baseia no diálogo e é estimulada através da comunidade de investigação. Tal como em uma discussão filosófica, o diálogo deve ser igualmente utilizado no ensino das crianças. Um diálogo que seja reflexivo, disciplinado pela lógica, e não meramente uma conversa sem conteúdo. Instigador, investigativo, crítico, criativo. Que não seja doutrinário e nem autoritário. Como Sócrates, um diálogo que possa esclarecer significados, que analise conceitos, que investigue as implicações e consequências de uma determinada ideia.
É o próprio Lipman quem destaca as influências de Sócrates e Platão em seu programa (tanto na parte da escrita das novelas quanto no modo de fornecer um modelo para a comunidade de investigação):
Certamente eu digo cautelosamente, eu utilizei os trabalhos iniciais de Platão como um modelo. Algumas vezes eu tentei parafrasear partes, o modo como Mickey, [em Suki], parafraseia o último grande discurso de Trasímaco na República. Ou algumas vezes eu tentei entrelaçar a construção de habilidades e a formação de conceitos, do modo como Sócrates faz, digamos, no Eutífron (LIPMAN,1997: 115 apud DIAS, 2009, p. 44).
É através do diálogo que “as crianças são encorajadas a falar e a ouvir umas às outras e assim discutir ideias filosóficas na presença de um facilitador” (SOUZA, 2013, p. 16). Uma espécie de diálogo investigativo onde a criança aprende a se posicionar, a ouvir os colegas, a questionar, a refletir sobre as respostas dadas e que “deve acontecer com base no respeito mútuo, no reconhecimento dos participantes, na consideração das razões que sustentam as ideias propostas” (SOUZA, 2013, p. 17). O diálogo é um dos pilares do Programa de FpC. Um diálogo que não seja meramente uma conversa, mas que seja questionador, onde um argumento possa suscitar um contra argumento e assim estimular o debate entre as crianças. “Em suma, para Lipman, a Comunidade de Investigação é o lugar do diálogo filosófico, que é o caminho autêntico para se fazer Filosofia e é na prática dos procedimentos da Comunidade de Investigação que a criança concretiza sua educação para o pensar” (DIAS, 2009, p. 57).
A característica da comunidade de investigação é o diálogo cooperativo, transformando “as práticas pedagógicas tradicionais em diálogos originados da possibilidade de compartilhar as experiências próprias e ampliar as ideias ou conceitos, gerando reflexões e/ou análises críticas de diferentes pontos de vista” (RENDÓN, 2015, p. 52).
As aulas de FpC devem ser estruturadas tendo como base a comunidade de investigação e seguem alguns aspectos básicos. O primeiro deles é a leitura de um parágrafo ou uma frase em voz alta pelos alunos de algum episódio da novela: “esse aspecto é essencial para fazer participar todos os alunos dentro do processo, porque muitas vezes as crianças mais tímidas e retraídas só se expressam praticamente durante a leitura” (DINIS, 2011, p. 22). A leitura é importante também porque crianças que possuem problema de leitura provavelmente terão dificuldades de expor suas ideias e pensamentos.
Em seguida temos a indicação de passagens que possam ser consideradas interessantes e que possibilitem algum tipo de discussão, sendo que esta escolha deve ser feita pelas crianças, mas nada impede a participação do professor nesta etapa. Na sequência temos (SANCHEZ, 2005, p. 44):
Discussão a respeito de um tema escolhido pelos alunos (pode ser por votação).
Para fortalecer tal discussão, o professor pode, se considerar necessário, aplicar os exercícios sugeridos no manual (Note-se que há uma quantidade de temas sugeridos nos planos de discussão dos manuais para cada episódio).
Não é necessário que a turma chegue a uma conclusão ou uma resposta única sobre a discussão, mas sim que faça uma avaliação sobre ela ao final de cada aula.
Em Rendón (2015, p. 54) temos as seguintes etapas:
1) Inicialmente, as crianças sentam-se em círculos, procurando que todos possam se olhar e que a lousa fique à vista.
2) Principia-se a aula com a leitura de um capítulo de uma das novelas.
3) Encerrada a leitura, o professor começa a anotar na lousa as questões que os alunos elaboram.
4) A partir dessas questões, é iniciada a discussão.
Pensamento de Ordem Superior
Há um pensar mecânico e acrítico, considerado como o pensar cotidiano. E há um pensar que “combinaria as três características máximas da reflexão: criticidade, criatividade e cuidado” (SANCHEZ, 2005, p. 36) e a este pensar Lipman propõe que seja chamado de pensamento de ordem superior ou complexo. “Para Lipman o ensinar a pensar bem comporta desenvolver essas três dimensões cognitivas, podemos referir que o ápice de todo o processo do programa é dotar os alunos de um pensamento de excelência [...] a união dos três tipos de pensamento” (DINIS, 2011, p. 39), ou seja, da criticidade, da criatividade e do cuidado.
A criticidade do pensamento de ordem superior diz respeito a capacidade questionadora que autoavalia e examina o próprio pensamento, além de problematizar e avaliar as razões de uma ideia: “o pensamento crítico funciona como auto agente de autoavaliação do próprio pensamento [...] ajuda a ir além, um agente de auto-avaliação do seu pensamento [da criança], ajuda-as, a descobrir profundamente os possíveis erros, enganos e falácias” (DINIS, 2011, p. 41). O pensamento crítico diz respeito a capacidade de produzir juízos de forma correta, ou seja, toda criança e todo adulto está, a todo momento, julgando várias situações do dia a dia e para que possamos reavaliar nossas opiniões de modo a que possam ser aplicadas é preciso reavaliar o próprio pensamento: quando fazemos isto, estamos utilizando a criticidade.
Além de crítico, o pensamento de ordem superior é também criativo, ou seja, ele ultrapassa as fronteiras do convencional e se torna capaz de inovar, sendo este aspecto criativo “que impulsiona para o novo e, portanto, para as possibilidades de transformação” (MARQUES, 2009, p. 87). A criatividade, além de inovadora, tem a capacidade “de ser pluralista e independente, aplicando determinados critérios na busca de juízos que transcendem a si mesmos e enfatizando a variedade e a diferença” (SANCHEZ, 2005, p. 36). Dentre as características do pensamento criativos Dinis (2011, p. 44) destaca: a originalidade, a imaginação, a independência, a experimentação, o holismo (relacionado ao todo), a expressividade, a maiêutica (arte de “partejar” ideias), a produtividade e a auto superação.
Já o cuidado diz respeito “a aplicação de valores no próprio pensar, considerando a dimensão da emoção daquilo que se aprecia, que se considera importante, valoroso, tal como o exemplo de uma obra de arte ou a atenção dada às relações humanas” (SANCHEZ, 2005, p. 36). Esta categoria do cuidado foi incluída posteriormente na obra de Lipman e indica a necessidade que o filósofo norte americano sentiu de ligar os aspectos intelectuais ao aspecto afetivo.
O pensamento de ordem superior surge da combinação destas três características, conforme podemos perceber nas imagens abaixo:
Three dimensions of excellent thinking
LIPMAN, 2003, p. 200 apud SHANINI; NOURI, 2018, p. 105
Disponível em: Burrabooks. Acesso em: 28 jun. 2020
Referências Bibliográficas
BROCANELLI, Cláudio Roberto. Matthew Lipman: educação para o pensar filosófico na infância. Petrópolis-RJ: Vozes, 2010.
DIAS, Marinês Barbosa de Oliveira. Professores de Filosofia para Crianças – quem são eles? Uma análise critico diagnostica da construção da identidade profissional dos professores que trabalham com o Programa Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Campinas-SP, 2009.
DINIS, Carlos Manuel dos S. J. O que é a Filosofia para Crianças: Programa de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Faculdade de Artes e Letras, Universidade da Beira Interior, Covilhã-Portugal, 2011.
HENNING, Leoni Maria P. O Pragmatismo em Lipman e a sua influência na América Latina. childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.2, p. 445-471, jul./dez., 2005. Acesso em: 27 jun. 2020.
LIMA, Caroliny Santos. Crianças Filosofando: uma proposta metodológica de ensino à luz de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2018.
MARQUES, Oswaldo. Implicações educacionais da proposta de “Educação para o pensar” de Matthew Lipman. Cadernos de Pós-Graduação – Educação, v.8, p. 85-94, 2009. Acesso em: 25 jun. 2020.
QUEIROZ, Renata Peixoto; CAMPOS, Maria Teresa C. de. O Conceito de Discussão Filosófica de Matthew Lipman. Primeiros Escritos, n. 3, p. 129-131, 2000. Acesso em: 24 jun. 2020.
REIS, Lígia de Almeida Durante Correa dos. Filosofia para Crianças. Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2019.
RENDÓN, Martha Lucía A. Filosofia para crianças: do desenvolvimento das habilidades do pensar bem à formação de atitudes. Tese (Doutorado em Educação), Programa de Pós- Graduação em Educação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília, Marília-SP, 2015.
SANCHEZ, Liliane Barreira. Lipman e o Ensino de uma Filosofia Ideal. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, ano III, n. 4, p. 29-48, 2005. Acesso em: 24 jun. 2020.
SEUS, Beatris da Silva. O pensamento de Matthew Lipman no contexto pelotense: por uma ótica pessoal. Enciclopédia, v. 7, p. 12-26, 2020. Acesso em: 27 jun. 2020.
SILVEIRA, Renê José Trentin. A Filosofia vai à Escola? Estudo do “Programa de Filosofia para Crianças” de Matthew Lipman. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinhas – UNICAMP, Campinas-SP, 1998.
SHANINI, Gholamhossein; NOURI, Zahra. Excellent Thinking and its Position among EFL Learners. International Journal of Applied Linguistics & English Literature, v. 7, n. 2, p. 104-109, 2018. Acesso em: 29 jun. 2020.
SOUZA, Tania Silva. O ensino de Filosofia para crianças na perspectiva de Matthew Lipman. Filogenese, v. 6, n. 2, p. 13-26, 2013. Acesso em: 25 jun. 2020.
SOUZA, Tania Silva. O ensino de Filosofia para crianças: uma nova perspectiva a partir de Matthew Lipman. Polymatheia, v. 8, n. 13, p. 58-75, 2015. Acesso em: 25 jun. 2020.
Sugestões Bibliográficas
LIPMAN, Matthew; SHARP, Ann Margaret; OSCANYAN, Frederick S. A Filosofia na Sala de Aula. 3. ed. São Paulo: Nova Alexandria, 2006. 256 p. Tradução de Ana Luiza Fernandes Marcondes.
LIPMAN, Matthew; SHARP, Ann. A comunidade de investigação e o raciocínio crítico. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia Para Crianças, 1995. Tradução de Ana Luiza F. Falcone e Sylvia J. H. Mandel.
LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à escola. São Paulo: Summus, 1990.
LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 402 p. Tradução de Ann Mary Fighiera Perpétuo.
O Programa Filosofia para crianças pelo Mundo
Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC)
IAPC no College of Education and Human Services (da Montclair State University)
Internacional Council of Philosophical Inquiry with Children (ICPIC)
Comenius MENON Developing Dialogue through Philosophical Inquiry
European Foundation fot the Advancement of Doing Philosophy whith Children (fundação SOPHIA)
North Atlantic Association for Communities of Inquiry (NAACI)
Federation of Australasian Philosophy in schools Associations (FAPSA)
Filosofia para niños en el Perú
Centro de investigaciones en filosofia para niñas y niños en Argentina
Philosophy for Children, na Stanford Encyclopedia of Philosophy
Sobre a morte de Lipman no New York Times
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