QUE FAZER: TEORIA E PRÁTICA EM EDUCAÇÃO POPULAR

Resenha da obra Que fazer: teoria e prática em educação popular

FREIRE, Paulo; NOGUERIA, Adriano. Que fazer: teoria e prática em educação popular. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

por Alexsandro M. Medeiros

lattes.cnpq.br/6947356140810110

postado em abr. 2017


O livro contém uma apresentação de Clodovis Boff (p. 3-8) que ressalta, entre outras coisas, que falar em Paulo Freire traz imediatamente à mente uma postura sobre a realidade popular que tem na pedagogia do oprimido uma postura de humildade, diálogo de crítica e transformação social; uma postura pedagógica que é sempre libertação e ativamente política em luta contra o status quo dominante. Paulo Freire “se fez o intérprete e revelador de um amplo processo de educação que já corria no seio do povo oprimido mas que procurava se dizer e tomar corpo num discurso” (p. 5). Trata-se nesta obra de um pensar dialogante, visto que elaborada em conjunto com Adriano Nogueira. O livro traz ainda um prefácio à terceira edição, elaborado por Carlos Rodrigues Brandão (p. 9-14) e que corresponde, na realidade, a uma “conversa” com um Antropólogo-Educador sobre problemas da vida social.

A Introdução começa com uma pergunta que Nogueira dirige a Paulo Freire sobre como “brotou tudo isso”, como se desenvolveu a ideia de uma educação popular. E Freire responde que uma das razões pelas quais ganhou força a ideia de uma Educação Popular tem a ver com o estilo de fazer política do populismo:

Nesse estilo de fazer política as massas e os movimentos populares “aparecem”; coloquei entre aspas esses “aparecem”, e nós sabemos por que: os grupos e movimentos populares entravam em cena de forma tutelada e vigiada. No entanto, havia muita gente que trabalhava muito a sério essa participação de movimentos e grupos populares; houve quem levasse a sério um país onde fosse possível e importante a participação de movimentos populares organizados (p. 16).


Um outro motivo é que é era necessário defender a participação das massas populares na transformação do país e isso através da educação: “haveria um tipo de educação não apenas para transformar as pessoas... mas haveria a educação que refletisse com as pessoas a transformação do país inteiro” (p. 17).

Em seguida Nogueira pede a Paulo uma definição sobre educação popular e nos remete ao primeiro capítulo da obra: “Definição” primeira: o que é educação popular? Eis a definição oferecida por Paulo Freire: “Entendo a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica [...] Em uma primeira ‘definição’ eu a aprendo desse jeito. Há estreita relação entre escola e vida política” (p. 19). Nesse sentido a educação é uma prática política: política e educação se mesclam e se misturam em um processo contínuo de aprendizado e transformação social.

Ainda neste capítulo Nogueira interroga Freire acerca da constituição e organização de um saber popular em um programa de ação popular e que nos remete ao segundo capítulo intitulado: Organizar o saber, planejar a luta. A luta popular não prescinde de um conhecimento mais organizado. “O conhecimento mais sistematizado é indispensável à luta popular [...] mas esse conhecimento deve percorrer os caminhos da prática” (p. 25), quer dizer, a luta popular não pode ser algo ao acaso, sem uma orientação e de forma desorganizada, mas também o conhecimento utilizado para organizar a luta popular não pode ser algo rígido, pronto, acabado e imposto, sob pena de “roubar a autonomia” dos indivíduos receitando conteúdos que serão depositados neles. “Quando isto ocorrer estamos reproduzindo a dominação sobre eles. Estaremos impondo nosso método de conhecimento por cima da inteligência deles. E fazemos pacotes. Transposição de ideologias...” (p. 26).

Há que considerar ainda que a cultura popular, o saber popular, é de tradição oral, bem diferente do saber sistematizado do “procedimento científico”. O intelectual pensa e reflete sob um viés científico, utilizando métodos para tal, mas “o povo não procede assim... Nossa tradição na cultura popular é mais oral do que escrita. As pessoas fazem narrações orais. E o que é narrado exige troca de olhares e gestos” (p. 28). O intelectual rodeia-se de livros e textos, é uma cultura livresca que muitas vezes acredita poder se sobrepor sobre a oralidade de grupos populares, nem sempre levando em consideração que há saberes diferentes: “é nesse momento que nós, intelectuais de formação acadêmica, corremos o risco de superposição. Nós impomos demais e entendemos de menos” (p. 29). Naturalmente essa questão leva a refletir sobre o propósito do livro em questão, já que se pretende elaborar um “manual”, um texto que pretende auxiliar grupos populares em suas práticas. E Nogueira pergunta a Freire sobre essa pretensão, de escrever um texto para a cultura popular:

Vejo-o como um texto humilde, com seus limites. Não tem a pretensão de, ele texto, mudar o contexto daquelas pessoas que o lêem. Que é que esse texto poderá permitir? [...] Ele poderá se apresentar ao nosso(a) leitor(a) como algo que perpassa um momento em um processo maior. Portanto: esse texto se apresenta como trabalho não acabado. Ou seja, é um livro (ou texto) que pede que o(a) leitor(a) entre e faça parte dele (p. 31).


Por isso o leitor(a) não deve apenas ler o texto, mas procurar ir além do texto, confrontar a leitura do texto com a própria experiência, e até “se opor” ao texto se achar necessário e, ao confrontar o texto com sua própria experiência, que o leitor também proponha questões ao texto.

Nesse sentido o(a) leitor(a) supera o texto. Assimila-o através de propor questões e, tendo assimilado, o(a) leitor(a) se volta à própria oralidade, se volta à sua própria maneira de acercamento da realidade. Nesse caso nosso manual terá sido intermediador de uma “nova” aproximação da realidade (p. 32).


Chegamos então ao terceiro capítulo que tem como título: O texto escrito reaproxima o leitor de sua própria vida. A ideia de um manual de Educação Popular é fazer com que as pessoas e grupos populares aprendam no cotidiano a necessidade da esperança e de mudar a ordem das coisas. Este manual pretende ser um facilitador, “uma ponte entre o cansaço e o futuro mais humano” (p. 34).

O quarto capítulo intitula-se: O conhecimento gerado da reflexão da favela e o conhecimento gerado nessa nossa reflexão. É preciso aprender a interagir com o conhecimento e o saber popular. É preciso fazer com que as duas formas de conhecimento interajam entre si. O intelectual não deve se aproximar da “favela” com uma lista de problemas e críticas prontas, sem interagir, sem discutir com ele. E o saber popular não pode se fechar ao conhecimento que pode aprender com o saber científico.

O quinto capítulo, Conversando com outro tipo de leitor(a): o(a) profissional educador(a), como o próprio nome sugere, se dirige ao educador(a) que se dedica ao ensino formal, sobretudo profissionais que se interrogam em sua atividade diária sobre o como fazer educação com crianças populares, com crianças originadas da periferia e com a Cultura Popular. Esse educador(a) é um profissional que compreende “que além de ser um(a) profissional da educação, ele(a) é um(a) cidadão(ã) da vida política” (p. 47 – grifo no original).

Por fim temos um último capítulo, ao qual se segue ainda dois anexos: Nossa postura crítica e a instituição onde atuamos, onde se discute o papel das instituições, onde são elaboradas normas, pautas e regras, a partir do qual é preciso compreender igualmente a realidade de forma coletiva e como e para quem são elaboradas tais regras e tais normas.

ANEXO 1: Educação popular: pequena parte de uma grande história. A educação popular nasceu da cultura e dos movimentos populares, de suas lutas e exclusões, de grupos que tinham seus movimentos, suas “pelejas” e faziam suas experiências de educação, grupos se educavam na medida em que participavam das discussões e das lutas sociais, buscando acesso ao conhecimento, à ciência, aos direitos, acesso ao mundo do trabalho. “Houve um ponto de partida ‘sagrado’: era o compromisso com os Movimentos Populares, buscávamos re-ver e redimensionar a EDUCAÇÃO” (p. 63). Uma visão que amplia o entendimento sobre cultura e prepara o leitor para a última parte do livro, o ANEXO 2: Uma visão pedagógica da cultura: o movimento popular como escola de educação popular. Dentro do Movimento Popular as pessoas se educam: “ele é um modo educativo pelo qual as pessoas aprendem e (ao mesmo tempo) exercitam o conhecimento que vai sendo aprendido” (p. 65) e dessa forma o MP vai inovando a educação, seja no bairro ou na favela, nos movimentos sindicais e o MP “é a escola viva onde isso ocorre” (p. 66), e a educação se transforma em educação popular, educação do povo, dos oprimidos, de luta por uma sociedade melhor e mais justa.