FILOSOFIA E PAIDEIA EM PROCLO
FILOSOFIA E PAIDEIA EM PROCLO
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em fev. 2025
Vimos que a busca pelo autoconhecimento implica uma paideia, ou seja, uma educação filosófica da alma. Nesta educação filosófica, pode-se falar em três estágios distintos, que seriam o pré-filosófico, o filosófico e o supra-filosófico, que Lima (2018, p. 200-201) sugere chamar de Cultura (educação da alma mortal, na sua condição de membro da ordem cósmica e submissa ao seu destino), Filosofia (religião da razão e da virtude, o retorno da alma à sua condição imortal) e Sabedoria (iniciação nos mistérios, o êxtase, a transcendência, o ingresso ao modo de vida que pertence aos deuses). “Nenhum desses níveis elimina o outro, mas constituem andares do edifício da educação neoplatônica da alma, e que, portanto, idealmente devem coexistir” (Lima, 2018, p. 201).
Em cada um destes níveis, tem-se não apenas um nível de virtude ou virtudes correspondentes, como também um modelo de educação apropriado a cada nível. Vejamos como estes diferentes aspectos estão entrelaçados entre si.
No estágio da Cultura o homem se vê como parte dos cosmos e acredita ser dominado pela natureza que liga todas as coisas umas às outras e sua existência é determinada pelo destino. Além disso, ele compreende a si mesmo como um corpo, um composto psicofísico (daí a ideia de uma “alma mortal”).
Neste nível temos as virtudes naturais e as virtudes éticas. Para falar destas virtudes, precisamos entender a divisão entre alma racional e irracional. Já em Plotino temos a divisão de uma alma racional (que é incorpórea, imortal e transcendente ao corpo físico) e a alma irracional (que é mortal e parte do composto psicofísico). Sobre a alma irracional, é preciso acrescentar que Proclo considera que há duas formas: a primeira “é mortal porém de vida mais longeva que o corpo físico, pois é ligada a um corpo pneumático que perdura enquanto perduram as transmigrações ou reencarnações da alma, e que é destruído ao fim deste ciclo” (Lima, 2018, p. 205); a segunda é a alma vegetativa, que se une ao corpo e morre ao mesmo tempo em que o corpo morre
As virtudes naturais dizem respeito ao corpo vivificado pela alma vegetativa, à constituição e excelência física (phusikê aretê), boas condições corpóreas – como saúde, força, perfeição da forma, etc. [...] Cognitivamente e vivificamente correspondem, a este nível, os sentidos e os apetites (Lima, 2018, p. 206)
Já as virtudes éticas “dizem respeito àquela alma irracional pneumática que sobrevive à morte do corpo físico, e são estabelecidas através da imitação e da habituação” (Lima, 2018, p. 206).
Neste estágio pré-filosófico, é preciso educar as faculdades naturais através da educação física, da ginástica, de certas dietas e abstinências, visando não apenas a saúde, mas a integração com a alma racional.
A educação também deve incluir a música “no sentido amplo que Platão a atribuiu na República: a música (propriamente dita) e a poesia, os mitos, a arte dramática e outras formas de arte imitativa” (Lima, 2018, p. 206), o que contribui para o educando por meio do ritmo e da harmonia, proporcionando-lhe concórdia e regularidade. Através da música os jovens podem relaxar a tensão e diminuir a ferocidade do temperamento, fazendo-o harmonioso. O treinamento musical deve ser equilibrado com o treinamento da ginástica, tal como ocorre em Platão. Deve-se, portanto, combinar intensidade (ginástica) e relaxamento (música) para educar o elemento irracional dos jovens. Finalmente, através da música, aprende-se o amor ao belo.
Aos jovens deve ser oferecida ainda a educação dos hábitos e, para isso, há um texto exortativo intitulado Os Versos de Ouro de Pitágoras. Proclo
se refere ao hábito como sendo um poder extraordinário, não só entre os homens mas em todo o cosmos. Em seu Comentário à República (XVI, 305.18 – 308.6), ele diz que o hábito é o responsável por determinar a maneira de ser dos animais, o curso dos astros (que são seres divinos), e entre os homens faz com que sejamos incapazes, justificadamente, de nos afastar das tradições ancestrais “de coração leve” (Lima, 2018, p. 207).
O cultivo do hábito é fundamental para que seja possível possuir a virtude do domínio da natureza ou, em outras palavras, “viver segundo a natureza”, como queriam os estóicos.
Finalmente, temos os mitos. Como os jovens podem não ser capazes de compreender a realidade em sua profundidade, os mitos se tornam estórias metafóricas e, assim, cumprem um papal pedagógico. Entretanto, os mitos devem ser apresentados de acordo com certos requisitos, de forma a não introduzir confusão nos jovens. Da mesma forma a poesia que, neste nível, deve ser mimética, ou seja, deve ter como efeito o ato de imitar.
Neste nível, temos as virtudes: cívica ou política, a virtude purificatória e a virtude contemplativa. A vida política era encorajada pelos neoplatônicos da época de Proclo sendo necessário, portanto, na educação prática, o cultivo das virtudes cívicas. Já na virtude purificatória, lida-se com a alma racional tomada em si mesma, incorpórea e independente do corpo, em que o educando deverá partir do caminho da moderação das paixões em direção à ausência destas paixões (apatheia). Por fim, a virtude contemplativa, é quando a alma racional se volta ao Intelecto, é por ele iluminado e passa a participar da quietude e a tranquilidade do Espírito. O filósofo contemplativo vive desapegado das coisas mundanas e se ocupa principalmente com a investigação da natureza universal de todas as coisas.
O currículo pedagógico deste nível incluía a leitura de textos filosóficos e o conhecimento das ciências. Dentre as ciências estudava-se: Medicina, Mecânica, Óptica, Harmônica, Física, Geometria, Aritmética e Dialética. Já o currículo filosófico basicamente se dividia entre as obras de Platão e Aristóteles e incluía quatro cursos: o curso de estudos da filosofia aristotélica, e o curso de estudos da filosofia platônica sendo que esta era subdivida em três partes.
O curso de filosofia aristotélica se iniciava pelo Isagogê de Porfírio (que é uma espécie de introdução às Categorias de Aristóteles) e em seguida as obras do próprio Aristóteles iniciando pelo Organon (as Categorias, seguida de Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos). Na sequência, “as obras éticas (Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo); as obras físicas (incluindo o De Anima), e a Metafísica” (Lima, 2018, p. 210).
O curso de filosofia platônica se dividia em três ciclos: no primeiro ciclo eram estudadas as obras Alcibíades I, Górgias, Fédon, Crátilo, Teeteto, Sofista, Político, Fedro, Banquete e Filebo; no segundo ciclo as obras Timeu e Parmênides; e finalmente no terceiro ciclo as obras a República e as Leis de Platão, junto à Política de Aristóteles.
No nível filosófico a educação deve ser aquela que se dá através do cultivo do logos epistêmonikos (da razão científica) em oposição à doxa (a mera opinião). A ideia aqui é que o conhecimento científico atue como uma ação purificadora (daí a virtude purificatória), à medida em que oferece a alma noções claras sobre o justo, o belo, a verdade.
A qualidade purificatória deste nível se deve, portanto, à sua capacidade de voltar a alma racional a si mesma, separando-a da objetividade do mundo e da sua corporeidade, o que a conduz à apatheia ou o estado de ser livre das afecções, que é o ideal das virtudes purificatórias que pertencem a este nível, que são virtudes que pertencem à razão (Lima, 2018, p. 224).
O homem que alcança a virtude purificadora da apatheia não é dominado por nada que lhe é inferior, nem pelas afecções (aquilo que pode afetar a alma) e se torna verdadeiramente livre.
O último estágio é o supra-filosófico, também chamado de Sabedoria. Neste nível temos as virtudes: paradigmática, hierática/entusiástica. As virtudes deste nível, bem como a própria paideia, são preparações para o acesso à verdadeira Sabedoria, mas um detalhe que precisa ser levado em consideração é que, como para Proclo, a Sabedoria definitiva só pode ser alcançada após a morte, as virtudes deste nível são apenas horizontes acessíveis em alguns momentos da vida, mas não são perfeitamente alcançadas.
Na virtude paradigmática, a alma não apenas contempla o Intelecto, mas participa no Intelecto (entendido como paradigma de todas as coisas). “Ou, ainda mais precisamente, quando a alma se despe do seu ser-alma, e se estabelece num modo de ser intelectivo que é suprapessoal, transcendente à natureza da própria alma” (Lima 2018, p. 242, grifo do autor). Trata-se aqui do Intelecto da qual a alma é uma irradiação ou iluminação, mas que ainda não é a segunda hipóstase de Plotino, a segunda substância da metafísica de Plotino (Uno, Intelecto, Alma). De acordo com Proclo, há uma distinção entre o Intelecto universal e o Intelecto particular. É do segundo que se trata aqui. É somente após passar pelo estágio de iluminação científica (no nível filosófico), que a atividade intelectiva se ilumina de fato na alma. A alma ascende para além da Cultura e da Filosofia, alcançando, em partes, a Sabedoria. “Estabelecer-se neste modo de ser é estabelecer-se na virtude paradigmática, tornar-se uno com o paradigma eterno de todas as virtudes” (Lima, 2018, p. 246). Entretanto, não chegamos ainda ao grau supremo da escala neoplatônica. É preciso alcançar ainda a virtude hierática/ entusiástica, que corresponde a ascensão e união da alma com o Uno. “Não por acaso, a virtude hierática/entusiástica é aquela na qual todas as outras virtudes existem de maneira unitária, de modo que é a fundação divina e a perfeição de todas as outras (c.f. BALTZLY, 2017, p. 264 apud Lima, 2018, p. 270)”.
Finalmente, no que diz respeito a paideia, os diálogos platônicos relevantes para este estágio “são o Banquete e o Fedro, que discutem a natureza da contemplação inspirada do inteligível, e o Parmênides, que é privilegiado como um diálogo esotérico no último nível de virtude” (Lima, 2018, p. 242).
LIMA, D. C. Conhecimento de si como caminho filosófico em Platão, Plotino e Proclo. 2018. 281f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP, 2018.