A ALMA EM PLOTINO
A ALMA EM PLOTINO
Na filosofia de Plotino há um lógos universal (razão universal): “há uma Ideia que, mais que todas as outras, é a representação do conjunto, como um lógos universal: é o nous” (Bergson, 2005, p. 19), e há também os lógoi particulares, que são as almas individuais ou as razões individuais. A alma humana deriva da alma do mundo (a terceira hipóstase). “Plotino falou de três hipóstases: Uno, Inteligência e alma universal. Parece natural, uma vez que não há nada além disso, fazer as almas individuais saírem, como a natureza, da alma universal” (Bergson, 2005, p. 59).
Comparando o lógos universal e o particular, uma das principais distinções que existe entre eles é a inquietude do corpo.
Nós, que somos almas conjugadas a corpos parciais, estamos expostos a perigos. O corpo humano sofre a influência dos outros corpos, está exposto à decomposição. A inquietude é a lei mesma da vida. Mas o corpo da alma universal é a totalidade da matéria. Nada pode ameaçá-lo. Escoa-se, mas interiormente a si mesmo (Bergson, 2005, p. 50-51).
Como consequência de sua visão platônica dualista (mundo sensível e inteligível), Plotino defendia a necessidade do afastamento da alma do mundo sensível, para buscar a união com o divino, o que traz a lume o aspecto místico da filosofia de Plotino. Segundo Porfírio (apud Bergson, 2005, p. 11), suas últimas palavras teriam sido: “Esforço-me por reunir o que há de divino em mim e o que é divino no universo”.
A nossa alma tem um aspecto que a coloca em contato direto com o inteligível, ao mesmo tempo em que está ligada ao sensível através da corporeidade. “O indivíduo é, segundo Plotino, composto de corpo e de alma. A parte inferior da alma é, como se viu, solidária com as instâncias da corporeidade” (Donini; Ferrari, 2012, p. 452).
Mesmo estando ligada ao corpo, a alma permanece indivisa, presente em sua totalidade em cada parte e não é dividida pelas partes do corpo.
Quando atribuímos a certas partes do corpo o local onde tal ou tal potência da alma se manifesta – como a visão nos olhos, a audição nas orelhas, o paladar na língua, o olfato no nariz, a sensação em todo o corpo, e a raiz de toda a sensação e impulsão no cérebro –, se trata de fato da constatação de que partes distintas do corpo participam de maneiras distintas na iluminação da alma, de forma que certas partes do corpo são pontos de partida da atualização ou manifestação de certas potências da alma. Mesmo a cabeça, muitas vezes dita como o centro da alma pelos antigos filósofos, não é mais que um ponto de partida da atualização da potência da alma, que em si mesma não depende de parte corpórea alguma. Todas estas são, na verdade, potências pertencentes à alma, e que, junto com ela, estão presentes em toda e cada parte do corpo em sua totalidade, indivisamente. (tr. 27 [IV.3], 23, 1-26) (Lima, 2018, p. 156).
Como a alma está ligada ao sensível através da corporeidade sendo, assim, “solidária com as instâncias da corporeidade”, ela precisa, se quiser regressar à fonte do todo, suprimir as pulsões ligadas ao corpo: “o primeiro passo para o regresso da alma à fonte do todo só pode consistir na disposição a moderar e depois a suprimir as pulsões ligadas ao corpo” (Donini; Ferrari, 2012, p. 452).
A Queda das Almas
Como consequência da ideia de que a alma humana deriva da alma do mundo, temos a teoria da queda das almas nos corpos. Plotino explica a razão dessa queda por razões morais, “‘por que e como puderam esquecer Deus seu pai, elas divinas, e desconhecer-se a si mesmas? O princípio de todos os males é a audácia, isto é, o desejo de só pertencer a si mesma’. Daí um desejo de existência por si, origem da separação” (Bergson, 2005, p. 61).
A alma caiu no corpo por um equívoco seu, fruto da audácia, mas também por sua livre escolha (consequência desse equívoco). Essa queda teve para ela consequências: antes ela morava no seio da alma universal e participava da administração do mundo, estando livre de toda preocupação. Com a queda, tem início a inquietude do corpo.
[...] é por um efeito de sua audácia que as almas individuais saltaram do seio da alma universal para os corpos. E em decorrência, experimentaram uma diminuição de si mesmas, uma vez que se concentraram no corpo e já não possuem senão uma parte do mundo inteligível que, de direito, lhes pertenceria por inteiro (Bergson, 2005, p. 63).
Como a alma deve realizar o seu caminho de regresso à fonte do todo? A resposta de Plotino para esta questão é através do êxtase. Através de um método, metafísico e psicológico, de introspecção profunda, a alma alcançaria esse retorno (através de uma espécie de simpatia) com a totalidade do real: “Seu método metafísico é a introspecção profunda, que consiste em ir além das ideias por um apelo profundo a uma simpatia entre nossa alma e a totalidade do real” (Bergson, 2005, p. 23). Esse processo, que pode ser entendido como a busca pelo conhecimento de si mesmo (a tão famosa frase de Delfos que inspirou ninguém menos do que Sócrates), faz com que a alma não apenas conheça a si mesma, mas conheça também a essência das coisas.
Aqui temos também a educação filosófica pretendida pelo neoplatonismo que consiste na conquista de si mesmo e de libertação da nossa alma. Um processo que só é possível através de uma exigente purificação moral e intelectual: um “vasto processo de transformação de si que é também, para a alma, um ato de conhecimento de si” (Flamand, 2008, p. 10, tradução nossa).
Uma educação filosófica que é um convite para uma viagem (uma verdadeira odisseia da alma). A viagem para a qual ele nos convida não é outra, senão a própria filosofia.
– Qual é, portanto, esta viagem e qual é esta fuga?
– Não é a pé que você deve caminhar, porque os pés sempre transportam de uma região da terra para outra. Não vá preparar uma tripulação ou qualquer navio, mas deixe tudo isso, e uma vez fechados os olhos, troque esta forma de ver por outra e desperte esta visão que todos têm, mas da qual poucos aproveitam (Plotin, traité 1 (I, 6 : Sur le beau), 8, 21-27 apud Flamand, 2008, p. 13, tradução nossa).
Referências
BERGSON, H. Curso sobre Plotino. In: BERGSON, H. Cursos sobre a Filosofia Grega. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 1-82.
DONINI, P.; FERRARI, F. O exercício da razão no mundo clássico: perfil de filosofia antiga. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. São Paulo: Annablume Clássica, 2012. (Coleção Archai: as origens do pensamento ocidental).
FLAMAND, Jean-Marie. Plotin: le sommeil de l’âme et l’éveil à soi-même. Paris, Camenae, nº 5, 2008.
LIMA, D. C. Conhecimento de si como caminho filosófico em Platão, Plotino e Proclo. 2018. 281f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP, 2018.