NEM TE LEMBRAS DE VOLTAR, BELCHIOR

por Luana Pantoja Medeiros

postado em ago. 2019


No dia 30 de abril de 2017, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, morre repentinamente no município de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, vítima de problemas cardíacos. Mas este texto não se trata de uma biografia auto declarada, e sim uma breve análise sobre a temática abordada em algumas letras de suas músicas, aspectos peculiares de sua vida, com todo respeito e admiração pelo grande artista que foi em vida Belchior.

Após dois anos de seu falecimento e décadas de alguns de seus discos lançados, suas músicas ainda soam bastante atuais, refletindo o cotidiano “a cara do presente”, despertando o olhar investigativo de estudiosos da literatura assim como a curiosidade daqueles que procuram um sentido para a vida do artista, marcada por interrogações como o caso do seu desaparecimento e escândalos com a justiça brasileira. Para analisar a rica e vasta obra de Belchior é preciso fazer uma retrospectiva no tempo e situar o artista, localizá-lo.

Belchior foi um grande artista, cantor, compositor e artista plástico. Nascido em Sobral, sertão cearense. Atinge o ápice de sua carreira tendo algumas canções gravadas por grandes personalidades como Elis Regina que imortalizou em sua voz a música “Como nossos pais”. É notório que Belchior aparece no cenário artístico cheio de compilações e com nomes da MPB já consagrados como no caso de Caetano Veloso, e ele faz questão de mencioná-lo em algumas de suas canções, ele usa isto como recurso artístico e literário, o seu contra discurso.

O artista cearense fez o que pretendera, o deslocamento, por exemplo: o lugar de fala, é um tema atual na filosofia, foi isso que Belchior fez, desmitificou o nordeste como lugar de povo passivo de sofrimento e mostrou-nos que ali havia sim lugar para felicidade apesar de todos os estereótipos, preconceito e exclusão social, o nordeste é lugar de um povo que resiste.

Para ele, a MPB não retratava a cara do povo brasileiro no momento em que surgiu, porque se tratava ainda de um grupo de artistas da elite intelectual que estavam longe de mostrar a realidade do Brasil e principalmente por não saber nada sobre o norte e o nordeste, e isto silenciava a violência sofrida pelos imigrantes nordestinos que iam tentar a sorte nas grades capitais.  Belchior não estava interessado em nenhuma “tiuria” marcando fortemente seu dialeto regional e fazendo claras alusões aos Tropicálias. Neste sentido, toda a obra do compositor cearense, este fenômeno é abordado crítica e ironicamente revelando a canção como um espaço de tomada de consciência e de denúncia das desigualdades sociais e preconceitos.

Percebendo a obra densa de um artista complexo, extremamente crítico, entendemos que Belchior foi um grande intelectual, sendo influenciado por grandes nomes da literatura, como Carlos Drummond de Andrade (veja o texto: Carlos Drummond de Andrade: jamais poeta do mundo caduco), Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos (veja o texto: A realidade social e a linguagem no romance Vidas Secas), João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa, Charles Baudelaire, Dante Alighieri, este último representado na música “Divina Comédia Humana”.

Em uma época em que o país sofria mudanças, influências culturais e linguísticas, era mesmo preciso um olhar deslocado para explorar as singularidades das pluralidades, suas canções sempre tramitando entre a cidade grande e o sertão, o homem do campo e o homem moderno, a linguagem dialetal marcada propositadamente assim como os estrangeirismos.

As letras das composições de Belchior, para além do forte conteúdo social, buscavam incessantemente o diálogo com outros nomes da MPB ao ponto de fincar posições que contrariavam a direção estabelecida por outros músicos para os rumos da canção brasileira.

Vejamos a canção Apenas um rapaz latino-americano, quando Belchior critica Caetano Veloso;

    Mas trago de cabeça uma canção do rádio

em que o antigo compositor baiano me dizia:

 “Tudo é divino. Tudo é maravilhoso”

(...)

Mas sei que nada é divino

Nada é maravilhoso

Nada é secreto

Nada é misterioso

Não

 

Ele se refere à canção “Tudo é divino, tudo é maravilhoso” que tanto sucesso fez nos anos 70, mas que parecia soar como algo alienado diante de tantos problemas da realidade social. Caetano ainda é alvo de crítica em outra música de Belchior “Fotografia 3x4”, agora se referindo a ele textualmente em sua canção festivalesca “Alegria Alegria”:

Veloso, “o sol (não) é tão bonito” pra quem vem

Do Norte e vai viver na rua

 

E como quem não quer perder o costume, há uma referência à canção “Baby” de Caetano Veloso, gravada por Gal Costa na música “Coração Selvagem”, polemizando e afirmando o elemento nacional num período de intensa circulação de músicas estrangeiras nas rádios:

Meu bem,

vem viver comigo, vem correr perigo,

vem morrer comigo, meu bem, meu bem, meu bem.

Oh! Oh! Meu bem

que outros cantores chamam baby!

 

A “intriga” entre Belchior e os tropicalistas não para por aí. Em “Velha Roupa Colorida”, cujo título já contém uma forte ironia, o autor critica as ideais hippies e aos valores tropicalistas vigentes e tenta anunciar um novo rumo à música popular brasileira, mas compromissado com a realidade social do país.

Vejamos o trecho:

Você não sente nem vê

Mas eu não posso deixar dizer, meu amigo

Que uma nova mudança em breve vai acontecer

E o que algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo

E precisamos todos rejuvenescer

(...)                                                                                     

O presente, a mente o corpo é diferente

E passado é uma roupa que não nos serve mais

 

Analisaremos agora trechos da letra da música Alucinação

 Eu não estou interessado em nenhuma teoria

Em nenhuma fantasia nem no algo mais

Nem em tinta pro meu rosto

Ou oba oba , ou melodia

Para acompanhar bocejos

Sonhos matinais

(...)

  

Aqui mais referências aos coloridos Tropicálias, o autor diz não estar interessado em nenhuma teoria, com uma pronuncia marcada, notadamente com seu dialeto regional “tiuria”, viver para ele, o eu lírico, era mais difícil do que ficar a sonhar com novos horizontes, rabiscando em papéis ideais não comprometidos com todos, era alvo fácil de se esvair ou ser contestado para Belchior.

Em Alucinação, o dilema dos imigrantes sertanejos, o drama entre o homem do campo e da cidade, uma dualidade que faz o eu lírico pertencer a duas realidades distintas, e em agonia angustiante não pertencer a nenhuma, sendo algo “des-norteado” assim pertencendo a um todo, a América do Sul, algo que ele revela nas canções A palo seco e em Apenas um rapaz latino americano.

Vejamos mais um trecho:

Um preto, um pobre

Um estudante

Uma mulher sozinha

Blue jeans e motocicletas

Pessoas cinzas normais (...)

Os humilhados do parque com os seus jornais

 

Carneiros, mesa, trabalho

Meu corpo que cai do oitavo andar

E a solidão das pessoas dessas capitais

A violência da noite

O movimento do tráfego (...)

 

Pessoas que estão às margens do sistema, a condição das mulheres, dos jovens e negros: “os humilhados do parque com os seus jornais”, lembrando aqui A flor e a náusea de Carlos Drummond de Andrade, uma paráfrase, “estão menos livres, mas levam jornais e soletram o  mundo sabendo que o perdem”.

Na segunda estrofe temos elementos que fazem alusão a lugares distintos, carneiros pode ser representado como rebanho no pasto, pessoas que trabalham em grandes empresas nas grandes capitais a serviço de um mercado capitalistas, os grandes prédios, repetindo o “oitavo andar” também na música Paralelas.

Finalmente, em Paralelas, letra lindíssima, Belchior marca a trajetória de sua vida assim como os pneus marcavam na água da chuva o que “foges do que é teu”. Em 2005 o Rapaz latino americano resolveu sumir. Acompanhado de uma mulher que o acompanhou até o último dia de sua vida, Edna Prometheu. São tantas interrogações a respeito de seu sumiço que não caberia elencar aqui. Alguns jornalistas e amigos próximos especularam o forte poder de persuasão da mulher, uma “ativista social de extrema esquerda”, “ela o domina”, não posso entender dessa maneira que um homem tão culto tenha sido induzido a fazer o que fez, e talvez as lacunas jamais se completarão.

Conheci Belchior após alguns anos de sua morte, através da internet, estou fascinada com sua obra. A profundidade das letras, a facilidade com que ele dialogava com outros artistas, ele foi um dos grandes nomes da música brasileira.

Em uma entrevista concedida à Rede Globo (2009) quando estava no Uruguai, Belchior disse estar trabalhando em uma tradução, seria a tradução da obra “A divina comédia” de Dante Alighieri, e compondo novas músicas, se preparava para retornar, dizia a um amigo que o acolhia em sua residência no sul do Brasil.

Belchior não voltou, nem para os palcos, nem para Sobral, a morte  sorrateiramente o levou. Um grande astro da música brasileira, deixou um grande legado, cuja sua obra é sem dúvida um vasto campo a ser explorado por estudiosos da literatura. A vida e a obra desse artista se misturam, a sua utopia fragmentada, nada o prendia nem mesmo a vida.  

Mas “enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não”,

Belchior cantará.

Sobre a Autora

Luana Pantoja Medeiros

é Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA. Pesquisadora nas áreas de Sociolinguística, Linguagem, Gênero e Relações de Poder, Poesia e Poética Feminista.

https://lattes.cnpq.br/7355733518783146


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