A ARTE EM TERRA DE CEGOS

O texto traz uma reflexão a partir da censura da exposição do Santander Cultural denominada: Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileila. Após protestos nas redes sociais, o banco encerrou a mostra que abordava questões de gênero e de diversidade sexual.


por Liziê Moz Correia

postado em set. 2017

Em seu genial “Ensaio Sobre a Cegueira”, o brilhante escritor José Saramago nos transporta para um hospício que, como um microcosmo da vida em sociedade, apresenta uma infinidade de atores sociais, todos muito distintos, tendo em comum apenas a sua incapacidade de enxergar. Há, porém, dentre os cegos, uma mulher que vê. Ela percebe, desde o início de sua estadia, que a condição para se poder sobreviver entre os cegos é ser um deles, é fingir que não vê. E, assim, enxergando toda a sorte de misérias humanas que permeavam aquele recinto, a mulher de visão perfeita passa a adquirir a sua cegueira particular, apropriando-se da insensibilidade típica de quem não vê: ela engana, fere e mata, como quem não enxerga o sofrimento alheio, na certeza de que a visão, em terra  de cegos, não é mais que uma maldição que a tornaria escrava.

Esboçada na refinada analogia de Saramago, a realidade que nos cerca, em tempos de boicote a uma exposição considerada imoral, se revela muito mais perturbadora do que a ficção. As nossas mazelas sociais, a precariedade dos serviços públicos, o desemprego e a fome, são problemas reais. Eles carecem de soluções, as quais uma sociedade que procura distração parece não estar disposta a oferecer. A pedofilia e as violências sexuais, como parte desta realidade velada, também se inserem nesse contexto.

A arte, assim como os meios de comunicação de massa, possui, a despeito do que se possa ter como aprazível, uma função que vai além do entretenimento. Ao delinearem os fatos em sua crueza, as manifestações artísticas retiram o véu de uma realidade que teima em se ocultar, a fim de que, longe do nosso campo de visão, não nos importune, na nossa indiferença de cegos a ela - e, assim, a velha roda que move o mundo segue a girar, com as sujidades varridas para as margens, onde não se constituam tropeço no caminho dos cegos, onde serão relegadas ao esquecimento de quem ainda possui o dom de enxergar.

A histeria coletiva gerada pela exposição do Santander Cultural nada mais é do que a reação perturbada de uma sociedade a quem a luz da realidade fere, como aos olhos  de quem esteve na escuridão por demasiado tempo. Destarte, a alegoria do mencionado autor português mostra-se, por mais cruel que seja, mais nobre que a realidade. Pertencemos à pior categoria de cegos: aqueles que não querem ver e, de sobejo, não querem permitir que ninguém veja.