por Luana Pantoja Medeiros
postado em: abr. 2025
A Umbanda é uma religião afro-brasileira. Ela é uma mistura de crenças e práticas de diferentes origens, incluindo o espiritismo, o catolicismo, as religiões africanas e os cultos indígenas. Em cada região em que ela existe, agrega suas diferenças e suas características próprias como cânticos, entidades, encantados, divindades e orixás, formas de fazer as suas práticas religiosas, realização de rituais, e saberes ancestrais. Não há como definir a Umbanda sendo de uma única forma.
Mas em todas as formas da religião, há o que tem de mais profundo em sua totalidade, sendo assim, sua essência. A forma de ser apresentada é clara e objetiva para que as pessoas necessitadas possam socorrer-se nos poderes divinos sagrados e sentir-se amparados e confortados intimamente. Sobre Deus e a religião Umbanda, Saraceni discorre:
Cada religião estabelecida tem sua forma de apresentar-se e não podemos duvidar da sinceridade dos seus proselitistas porque, de fato, por trás de todas realmente está Deus e todas suas Divindades. Com a Umbanda não é diferente sua forma de apresentação, sintetizando-a, é esta: Olurum (Deus) é o Divino Criador e Poder Supremo, que tudo criou, criará, e rege tudo e todos o tempo todo (Saraceni, 2023, p.18).
A Umbanda foi oficializada a partir da história do médium Zélio Fernandino de Morais que remonta a data de 15 de novembro de 1908, quando ocorreu o episódio em que o médium incorporou a entidade chamada Caboclo das Sete Encruzilhadas, numa sessão espírita, realizada na Federação Espírita do Rio de Janeiro, sediada na época em Niterói, no Rio de Janeiro.
Por isso, Zélio Fernandino de Moraes é considerado o fundador da religião do que se conhece por Umbanda tradicional. O dia 15 de novembro é considerado, em nosso país, como o dia nacional da religião Umbanda, assim instituído oficialmente no Terceiro Congresso Brasileiro de Umbanda, realizado em 1973, no Rio de Janeiro.
Considerado fundador da Umbanda advinda a partir do espiritismo europeu, Zélio Fernandino de Moraes se encontrava paralítico e acamado. Tinha nesta época 17 anos de idade e seus pais haviam consultado diversos médicos na tentativa de solucionar o seu grave quadro de saúde, inclusive, um padre parente de sua família, tentou exorcizá-lo, sem que se obtivesse quaisquer resultados satisfatórios no sentido de se obter a sua cura.
No dia 14 de novembro de 1908, Zélio anunciou à família que seu problema de saúde seria resolvido e que ele estaria curado no dia seguinte, ou seja, no dia 15 de novembro de 1908, o que de fato ocorreu. Seus pais então o levaram neste mesmo dia à Federação Espírita localizada em Niterói, e quando lá chegaram, Zélio de Moraes foi convidado a se sentar numa mesa em que estava se realizando uma sessão espírita, e passou a tomar parte dos trabalhos mediúnicos, recebendo posteriormente, por meio da incorporação uma entidade, que ao lhe perguntarem o seu nome, se identificou como sendo o Caboclo das Sete Encruzilhadas.
O Caboclo das Sete Encruzilhadas não se sentiu muito bem acolhido pelos espíritas presentes, pois, esses não ficaram muito satisfeitos com a sua manifestação, por considerarem os Caboclos e os Pretos Velhos entidades que não eram evoluídas. Ele anunciou a seguir a todos os presentes nessa sessão, que no dia seguinte, 16 de novembro de 1908, estaria se manifestando na casa de Zélio, que ficava localizada no município de São Gonçalo (RJ), e que lá não haveria quaisquer intolerâncias ou impedimentos às manifestações de Pretos Velhos, de Indígenas ou Caboclos que quisessem trabalhar em prol dos necessitados, e ressaltou que todos seriam muito bem vindos.
No dia marcado, conforme predito, a entidade do Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou, incorporada em Zélio de Moraes e anunciou a forma pela qual se daria a realização de seus trabalhos, que seriam baseados na caridade, na prática de serviço e no amor ao próximo. Iniciou-se dessa forma a considerada primeira sessão espírita da religião Umbanda, estando criada oficialmente a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (TENSP), neste mesmo local, em São Gonçalo (RJ), instituição atualmente denominada Instituto Espírita Bezerra de Menezes.
No entanto, sobre a data de fundação e fundador da Umbanda, é um ponto bastante discutido entre pesquisadores contemporâneos, e até mesmo assunto entre seus próprios fiéis. Considerar Zélio Fernandino o precursor da Religião é visto como um resultado de um processo de “embraquecimento”, uma vez que há documentações de práticas rituais africanas no Brasil em comunidades afro-brasileiras (por negros escravizados que vieram da África e seus descendentes em solo brasileiro) desde o século XVII. Dentre estas práticas temos o Calundu: rodas de batuques onde os escravizados dançavam, tocavam atabaques em seus momentos de folga ao redor das senzalas. O Calundu, por sua vez, se dividiu em duas outras práticas: a Cabula (que sincretizava rituais africanos com o catolicismo e crenças indígenas) e o Candomblé Bantu ou Angola. Daí, Zélio Fernandino de Morais adaptou a Cabula sob uma roupagem espírita kardecista, dando surgimento a Umbanda como religião organizada.
A palavra Umbanda tem origem no dialeto quimbundo da família bantu da África, e significa algo ligado a “arte de curar”, é uma palavra que existe há muito tempo como sendo arte ou maneira de curar, se trata de uma prática medicinal e espiritual realizada por um médico feiticeiro “um- banda” ou o “médico da banda”, o médico do lugar, aquele que cura “naquele lugar” ou “naquela “banda”.
A prática dessa cura era realizada por centros-africanos desde muito tempo atrás e, a partir da diáspora, do tráfico de escravizados, acaba sendo trazida para o Brasil. Por esse motivo, no Rio de Janeiro do século 19 já havia diversas casas de “médicos curadores” africanos. A história da Umbanda, como muitas expressões religiosas de matriz afro-indígena no Brasil, foi marcada por apagamentos, disputas simbólicas e processos de embranquecimento.
A narrativa hegemônica que atribui à figura de Zélio Fernandino de Moraes, um jovem médium branco de origem espírita, a fundação da Umbanda em 1908, configura-se como uma tentativa de organizar, sistematizar e, sobretudo, tornar palatável ao imaginário cristão-ocidental uma religiosidade que, até então, era marginalizada e criminalizada. Tal marco, embora importante como registro histórico, não dá conta da complexidade e da profundidade das práticas ancestrais que já vinham sendo realizadas muito antes de sua oficialização.
A Umbanda que antecede Zélio é um saber ancestral que nasce da encruzilhada entre a experiência negra, indígena e popular, e não de uma revelação mediúnica isolada. Antes da “Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade”, existiam os curadores, rezadores, encantados, caboclos e pretos-velhos que atuavam nos terreiros e nos fundos de quintais das periferias brasileiras, sobretudo nos quilombos urbanos e rurais. Essa Umbanda sem registro oficial, nascida do chão da senzala e dos saberes encantados das matas, das águas e dos ventos, é constantemente silenciada em nome de uma “Umbanda branca”, civilizada e aceita principalmente pelo espiritismo kardecista.
A tentativa de institucionalização e branqueamento da Umbanda pode ser lida como uma expressão da colonialidade religiosa, conceito trabalhado por autores como Aníbal Quijano (2005) e Rita Laura Segato (2012) que busca apagar os saberes subalternizados, colocando-os à margem ou deslegitimando-os como superstição. Contudo, essa “Umbranca” não representa a totalidade da religiosidade umbandista. O povo de terreiro segue resistindo e reexistindo nas margens e no centro, evocando suas ancestralidades, exaltando Exu, reverenciando Pombagira, caboclos, encantados, ciganos, boiadeiros, etc. Como defende Rubens Saraceni (2006), a Umbanda é uma religião viva e dinâmica, que manifesta-se de acordo com os elementos culturais e espirituais do povo que a pratica. Ignorar a sua raiz afro-indígena é negar o próprio chão onde ela se ergue.
É urgente retomar a memória ancestral da Umbanda como forma de enfrentamento ao racismo religioso e à colonialidade do saber. Como propõe Muniz Sodré (2002), precisamos “descender epistemicamente” para resgatar os saberes enraizados nas corporeidades negras, nas oralidades indígenas e nas cosmovisões populares que sustentam as práticas de terreiro.
Os espíritos têm muitas vias evolutivas à disposição e seguem aquela que se mostra mais afim com suas naturezas íntimas e suas expectativas sobre seus futuros. Entre estas vias, algumas são tão atrativas que se tornam “religiões” aqui no plano material.
A Umbanda Sagrada é umas dessas vias evolutivas, pois a quantidade de espíritos que afluem para ela é tão grande que foi preciso criar linhas ou correntes espirituais para acomodar tantos espíritos ávidos por manifestarem-se por intermédio da incorporação mediúnica (Saraceni, 2024, p. 143).
Mestre Saraceni define a Umbanda como uma religião que tem seus rituais, que são de natureza magística, iniciática e religiosa. “magística, porque são realizadores, iniciáticos, porque são iniciadores, religiosos porque são atos de fé” (Saraceni, 2023, p. 07).
Os rituais umbandistas apresentam essas três características mesmo quando elas não são visíveis. Sendo considerado uma sessão de trabalhos espirituais um ato de fé, pois a religiosidade prega que é a partir da incorporação que os médiuns vivenciam a sua religião, incorporando seus guias espirituais praticando a caridade espiritual.
Nos trabalhos de caridade espiritual, realizados nos centros de Umbanda, tudo é magia. “Ela vai desde a bafora de fumaça do cachimbo ou charuto, até mesmo um estalar de dedos, desde a defumação até os cantos dos pontos de chamamento para trabalho, tudo é mágico na Umbanda.” (Saraceni, 2023, p. 07).
Para o sacerdote e estudioso das religiões de matriz africana, Elton Ibrahin de Vasconcelos Pantoja, iniciado na Umbanda, no Candomblé, em Ìfá e em Ìsèlè L’àgbà, em uma entrevista concedida para este website, ele afirma que no espiritismo europeu, não eram bem vindos para trabalhos mediúnicos “um espírito de um caboclo ou de um indígena, pois consideravam esses, pouco evoluídos ou que não haviam atingido a evolução adequada para guiar outras pessoas”. Aqui podemos compreender o motivo pelo qual o Caboclo das Sete Encruzilhadas, guia espiritual de Zélio Fernandino teve que abrir uma casa para oferecer os trabalhos de caridade em outro espaço.
O pesquisador afirma que existe uma diferença na Umbanda que era realizada pelos negros escravizados, ela partia dos cultos Bantus que tinha em sua essência a ancestralidade, e essa ancestralidade, ao contrário dos Orixás que são divindades, a ancestralidade nesse seguimento era algo mais próximo do humano, eles reconheciam esses ancestrais como seus parentes que desencarnavam e que se divinizaram por seus feitos aqui na Terra. E por isso surgiram vários cultos de espíritos que não são considerados divindades, eram pessoas desencarnadas, que viveram na terra e tiveram alguma ligação espiritual ou até mesmo consanguínea com o médium.
E por isso existe uma certa divisão de espíritos que caminharam na Terra, tiveram uma vida encarnados, viveram, sofreram, amaram, choraram, tiveram filhos, casaram etc., e por questões evolutivas ou expansão do espírito, receberam uma nova missão de orientar os encarnados.
Elton Ibrahin de Vasconcelos Pantoja afirma, ainda, que o que temos como Umbanda no Amazonas (onde ele reside), como em outros lugares do Brasil, pode ser muito diferente da Umbanda de Zélio Fernandino. Não se pode dar uma definição exata ou encerrar a religião apenas por um viés um conceito de espiritualidade brasileiro que diz respeito a cultos afro-indígenas e afro-brasileiros.
A Umbanda que foi fundada no século XX é mais robusta no sentido de definição e conceitos, porque existem datas e documentações que podem falar sobre ela, até mesmo com a história do médium Zélio Fernandino, como vimos no início deste texto, porém no restante do Brasil, como no Amazonas, os cultos e práticas que são também denominadas Umbanda apresentam características muito diferentes.
Na cosmologia da Umbanda, as entidades espirituais que se manifestam nos terreiros representam mais do que guias espirituais. Elas são arquétipos de ancestralidade, da sabedoria popular e das forças sagradas da natureza, atuando como ponte para o mundo espiritual e o mundo material, essas entidades carregam consigo a missão de orientar, curar, proteger e promover a evolução moral e espiritual dos médiuns e consulentes.
As manifestações mais recorrentes nos rituais de Umbanda envolvem cinco grandes linhas de trabalho: os Pretos-Velhos, Caboclos, Exus, Encantados e Ciganos. Cada uma dessas linhas expressa valores, experiências, e sabedorias específicas que compõem a diversidade e a riqueza da ancestralidade afro-brasileira e indígena.
A composição acadêmica dessas entidades demanda um olhar descolonizado, que reconheça o valor dos saberes não só hegemônicos, o papel da oralidade, e a legitimidade de uma espiritualidade construída na diáspora africana e nos territórios periféricos da América Latina.
Esses espíritos não são em si, os Orixás, mas se manifestam sob a égide deles, como trabalhadores da espiritualidade que atuam diretamente com os seres humanos. São, portanto, figuras simbólicas que retratam a fé de um Brasil profundo: místico, mestiço e sincrético.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. CLACSO, 2005.
SARACENI, Rubens. As sete linhas de umbanda: A religião dos mistérios. 17. Ed. São Paulo: Madras, 2024.
SARACENI, Rubens. Os arquétipos da Umbanda: as hierarquias espirituais dos Orixás- São Paulo: Madras, 2023.
SARACENI, Rubens. Doutrina e Teologia de Umbanda Sagrada. São Paulo: Madras, 2006.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2012.