UMA ÉTICA DA COMPAIXÃO

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em: nov. 2021


O caminho budista da iluminação e do despertar espiritual não se destaca apenas pelo cultivo das qualidades da mente através de práticas de concentração e meditação (saiba mais em: Budismo, Meditação e Iluminação). Mas também pelo cultivo das qualidades do coração como a bondade amorosa, a empatia e a compaixão (karuṇā, em sânscrito). “Cultive um coração aberto, preenchido por bondade amorosa e compaixão incomensuráveis, e a felicidade emergirá naturalmente de dentro de você” (WALLACE, 2015, p. 121). Diz-se que foi motivado pela compaixão, que Buda se levantou de sua meditação solitária embaixo da árvore bodhi e procurou conduzir as pessoas ao estado da felicidade genuína.

Karuṇā é importante em todas as escolas de budismo e aqui não vamos nos preocupar com pequenos detalhes que possam diferir uma escola da outra. Mas vamos pensar em como a compaixão está vinculada com a primeira verdade nobre, ou seja, de que a vida é sofrimento. Através da compaixão e de uma perspectiva não egóica, o indivíduo se dá conta do incessante sofrimento que atinge todos os seres. Em outras palavras, “todas as criaturas vivas e as que irão nascer estão imersas no oceano do sofrimento” (FERREIRA, 2007, p. 46). Ao ver todas as criaturas atormentadas em sofrimento surge a compaixão e o indivíduo vive com o intuito de amenizar o sofrimento alheio. A este fato ele é conduzido também pela indiferença com que se apega a importância de si mesmo, do seu próprio eu.

No mundo de hoje, em meio a tantos problemas, podemos dizer que estamos mergulhados em uma infinidade de sofrimentos. Neste exato momento, neste exato instante, alguém, em algum lugar, está angustiado, alguém está deprimido, alguém está confuso, desorientado.

Compaixão, é compadecer-se da dor e do sofrimento de todos os seres sencientes, é o que diz o Budismo. “A compaixão é a vontade de salvar todos os seres do sofrimento e da existência cíclica [...] que surge de forma plena com o reconhecimento de que os seres estão imersos na ignorância (GOUVEIA, 2016, p. 65-66)”.

A partir desta visão, podemos considerar que a compaixão tem a ver com senso de responsabilidade, no que podemos chamar de: a teoria da responsabilidade universal do Dalai Lama (AVELINE, 2011, p. 72-76). Ela surge a partir do momento que nos damos conta de que as pessoas que sofrem querem a felicidade tanto quanto nós. Compaixão significa desenvolver uma preocupação genuína com elas” (DALAI LAMA, 1999, p. 51 apud FERREIRA, 2015, p. 16). Significa que cada um tem responsabilidade com a felicidade dos outros o que implica no fato de pensarmos em que todos os seres são interdependentes, como ressalta o Lama Padma Samten (2005, p. 15-16 apud AVELINE, 2011, p. 72), ao dar como exemplo a ideia de que a roupa que usamos não foi feita por nós, ou que, provavelmente, a comida que comemos também não foi plantada por nós. Somos dependentes não apenas dos outros seres humanos, como também dos outros seres vivos, pois não somos capazes de retirar nutrientes do solo ou do ar, por exemplo.

O desenvolvimento do sentimento de compaixão e da empatia devem fazer surgir o senso de responsabilidade, motivar-nos a agir em benefício de todos. Souza (2012, p. 27) também ressalta a importância da compaixão ao enfatizar que, de acordo com S. S. Dalai Lama, a compaixão é “uma força que nos leva a reconhecer a dor do outro como dor que nós mesmos sentimos”. E citando o próprio Dalai Lama (apud SOUZA, 2012, p. 28 – grifo do autor), conclui: “Compaixão é essencialmente uma preocupação com o bem-estar dos outros – com a felicidade e o sofrimento deles [...] a pessoa compassiva fica preocupada quando os outros estão angustiados e desenvolve a intenção positiva de livrá-los desse estado”.

O Budismo tem um aspecto ético fundamental ao ressaltar a prática da compaixão (Karuna) como caminho para o desenvolvimento espiritual.

Wallace (2015, p. 139) ressalta como a tradição budista reconhece três níveis de compaixão: “1. compaixão por aqueles que experimentam sofrimento e dor; 2. compaixão por aqueles presos em preocupações mundanas na busca pela felicidade; 3. compaixão por aqueles fixados a uma falsa sensação de ‘eu’ e ‘meu’”.

Todos nós experimentamos dor e sofrimento. Saber que o outro sofre, tanto quanto nós, deve nos levar a preocuparmo-nos não apenas com o nosso, mas com o sofrimento de todos. De certo modo, o sofrimento nos conecta uns aos outros e, por isso, é um fator que deve unir todas as criaturas. Se não existimos independentemente dos outros, tampouco nossa felicidade pode ser independente.

Por outro lado, nem todos podem estar sofrendo neste exato momento e que, por isso, são levadas a buscar caminhos em suas vidas que até podem levar a uma felicidade transitória a curto prazo, mas que a longo prazo levará ao sofrimento.

Essas são as pessoas que ainda acreditam que a felicidade pode ser encontrada ao alcançarem seus objetivos materialistas de obter mais riqueza, poder, luxo, elogios e respeito dos outros. Com bastante frequência, essas pessoas não expressam nenhum escrúpulo, envolvendo-se em atos sem coração, egoístas e desonestos para alcançarem o sucesso que almejam (WALLACE, 2015, p. 140).

Não devemos desprezar tais pessoas e sim, sentir compaixão por elas, porque estão cultivando o próprio sofrimento.

Às vezes, podemos achar difícil amar nossos semelhantes, homens e mulheres, porque eles nem sempre agem de maneira amável. Como fazemos brotar amor e compaixão genuínos pelas pessoas que se comportam mal? Temos a sensação de estarmos batendo contra um muro. Mas esse obstáculo não está localizado nas atitudes ou conduta das pessoas, mas em nosso coração e em nossa mente. Não somos capazes de ver os outros com compaixão porque nossa mente está sob a influência dos kleshas, as aflições mentais venenosas. Uma premissa fundamental do budismo é que o estado natural de nossa mente é de pura luminosidade. Porém, quando as aflições infectam a mente, ela se torna confusa ou distorcida [...] Sejamos ousados e vejamos se somos capazes de cultivar a compaixão por aqueles que estão plantando as sementes de sofrimento, e não apenas por aqueles que estão colhendo os frutos do sofrimento (WALLACE, 2015, p. 141-142).


Esse nível mais profundo de compaixão só pode ser sentido quando compreendemos profundamente que as pessoas praticam o mal por ignorância. Até os que comentem os piores tipos de barbaridades merecem a nossa compaixão, pois se assim o fazem, é porque não têm conhecimento da verdadeira fonte de felicidade e, ao contrário, da verdadeira fonte de sofrimento.

Finalmente, o tema da compaixão se relaciona diretamente com a forma como percebemos o nosso eu, que pode ser individualista e de apego ou relacional e de desapego. Vejamos essa questão com mais detalhes.

O apego a personalidade leva ao individualismo e também ao egoísmo que procura, antes de mais nada, a satisfação e o bem estar de si mesmo. Essa busca pela satisfação das nossas necessidades pessoais leva ao fortalecimento do egoísmo inclusive diante da possibilidade de satisfação pessoal dos desejos a qualquer custo.

Se o apego a personalidade fortalece o egoísmo, o desapego deve ter um efeito contrário, o de transcender o mundo do individualismo em uma perspectiva do eu que é relacional: o eu existe em comunhão com os outros. Tal pensamento faz surgir o afeto e a solidariedade entre as pessoas e, consequentemente, a compaixão. Devemos ter compaixão por aqueles que ainda estão presos ao próprio eu, ao mesmo tempo em que a compaixão surge do fato percebermos a vida em comunhão com todos os seres.

Mas não basta apenas sentir compaixão. Mais do que sentir, precisamos ajudar as pessoas que sofrem a se libertar do seu sofrimento. E qual a via que o Budismo ensina a este respeito?

Segundo Venerável Geshe Kelsang Rinpoche, um mestre budista conhecido internacionalmente, autor da obra: Budismo moderno: o caminho da compaixão e da sabedoria, a felicidade e o sofrimento são estados mentais. Portanto, sua origem não está em algo fora da mente. “Se desejarmos ser verda­deiramente felizes e livres do sofrimento, precisamos aprender a como controlar nossa mente” (KELSANG, 2015, p. XIII).

Precisamos aprender a responder a situações difíceis com uma mente positiva e considerá-las como oportunidade de crescimento e desenvolvimento. Mas ao contrário, se respondermos com uma mente negativa, teremos bastante dificuldade de lidar com as mais diferentes situações, por isso, diz Kelsang Rinpoche (2015, p. XIV): “se temos o desejo de ficar livres de problemas, precisamos transformar nossa mente”.

Se o sofrimento é fruto dos pensamentos e ações, é possível evita-lo. A mente é a fonte do sofrimento assim como da felicidade. A boa notícia é que ela, a mente, pode ser controlada e treinada. O sofrimento é causado por estados mentais fugazes e emoções aflitivas (kleshas) que povoam a mente. São estes os nossos inimigos e o nosso sofrimento será tanto maior quanto menos formos capazes de comandar a atuação da mente.

Foi isso o que o Buda procurou ensinar com suas quatro nobres verdades. Que a vida é sofrimento, que o sofrimento tem uma origem e que é possível se libertar do sofrimento através do caminho Óctuplo.

Uma das tradições budistas que mais exalta a prática compassiva é a escola vajraiana [...] Consciente da fragilidade humana, a escola indicava aos seus adeptos a conversão das limitações do “eu” no ideal da “grande compaixão” por todos os seres vivos [...] o ponto de chegada da perfeição búdica se traduz na ação compassiva (FERREIRA, 2007, p. 49).

A via do Bodhisattva 

A via do Bodhisattva (Bodhisattvacaryāvatāra ou apenas Bodhicharyāvatāra) é um texto do século VII, escrito por Śāntideva e um dos maiores clássicos do Budismo Mahāyāna: “o Bodhicharyāvatāra é, em si, a mensagem de liberação de Shāntideva para o mundo” (Introdução. In: SHANTIDEVA, 2013, p. 21).

O título mais longo “Bodhisattvacaryāvatāra” é o da versão tibetana e significa: “A entrada para o caminho do bodisatva” (In: SHANTIDEVA, 2013, p. 189). O título mais curto “Bodhicharyāvatāra”: “significa A entrada para o caminho do despertar” (In: SHANTIDEVA, 2013, p. 189). Das poucas informações que temos a respeito de Śāntideva, sabe-se que ele foi um membro da universidade monástica de Nālandā e pertenceu à escola Madhyamaka, ou Caminho do Meio, fundada por Nāgārjuna.

No Budismo, bodhisattva (बोधिसत्त्व), é um ser (sattva) iluminado (bodhi). Um bodhisattva “reúne em si todas as condições para atingir o nirvana e transcender a roda dos renascimentos e mortes” (DURAZZO, 2017, p. 133), entretanto, por compaixão a todos os seres sencientes, ele faz um voto de libertar todos os seres da ignorância, do apego e sofrimento, antes que ele próprio, bodhisattva, saia do samsara: “aqueles seres que, a despeito de abandonarem a futilidade e os sofrimentos do saṃsāra, renunciam a paz da salvação individual e fazem o voto de trabalhar pela liberação de todos os seres e de alcançar a iluminação suprema do estado búdico pelo bem de todos” (Introdução. In: SHANTIDEVA, 2013, p. 16).

Ao falar sobre o caminho do Bodhisattva, o Venerável Geshe Kelsang Gyatso Rinpoche afirma que não devemos nos contentar em buscar apenas a nossa própria libertação, mas também a libertação e o bem-estar dos outros, de todos aqueles que estão “afogando-se no oceano do samsara” (KELSANG, 2015, p. 68).

O Bodhisattvacaryāvatāra contém 10 capítulos e pode ser dividido em três partes, além do décimo capítulo que é apenas uma prece de dedicação e encerramento.

os primeiros três capítulos ("A excelência da boditchita", "Confissão" e "Apoderar-se da boditchita") foram idealizados para estimular o surgimento da boditchita na mente. Os três capítulos seguintes ("Cuidado", "Introspecção vigilante" e "Paciência") dão instruções de como impedir que a preciosa atitude se dissipe, enquanto o sétimo, o oitavo e o nono capítulos ("Diligência", "Concentração meditativa" e "Sabedoria") prescrevem maneiras por meio das quais a boditchita possa ser progressivamente intensificada (Introdução. In: SHANTIDEVA, 2013, p. 16).


Vemos aqui um conceito bastante presente, o da Bodhitchita. Tchita significa mente e Bodi significa iluminação. Literalmente temos a mente iluminada, ou mente desperta.

A compaixão faz parte do processo de Bodhichitta. É necessário ingressar no caminho do Bodhisattva através da mente iluminada: “No momento em que desenvolvermos essa pre­ciosa mente da bodhichitta, teremos nos tornado um Bodhisattva – uma pessoa que deseja espontaneamente alcançar a iluminação para o benefício de todos os seres vivos” (KELSANG, 2015, p. 68).

São cinco estágios para treinar a Bodhichitta: através do amor afetuoso, do amor apreciativo, do grande amor, da compaixão universal e a Bodhichitta propriamente dita. Aqui iremos considerar sobretudo a compaixão universal.

Todos os seres vivos, sem exceção, merecem a nossa compaixão. É devido, sobretudo a ignorância, que os indivíduos executam ações não virtuosas, e por isso sofrem, tal como nós mesmos. Por isso não é difícil nos colocarmos no lugar do outro com empatia para sentir suas dores tão intensamente como se fossem nossas próprias dores e pensar: preciso libertar os seres vivos de seus sofrimentos, assim como eu não quero sofrer. Essa é a compaixão universal.

Compaixão universal é uma mente que sinceramente deseja libertar, de modo permanente, todos os seres vivos do sofri­mento. Se, com base no apreço por todos os seres vivos, con­templarmos o fato de que eles estão experienciando o ciclo de sofrimento físico e dor mental, vida após vida, sem-fim – sua inabilidade para se libertarem, a si próprios, do sofrimento; sua carência de liberdade; e o modo como criam as causas de sofri­mento futuro ao se envolverem em ações negativas – desenvolveremos profunda compaixão por eles (KELSANG, 2015, p. 81).  

A via do bodhisattva ensina também sobre as seis virtudes fundamentais ou transcendentais, também conhecidas como paramitas. As seis paramitas são: generosidade, moralidade, paciência, perseverança, meditação e sabedoria. É através destas virtudes que um bodhisattva procura prover meios de auxílio aos seres que dele necessitem.

Referências 

AVELINE, Ricardo Strauch. As Transformações Históricas do Budismo e suas Implicações Ético-Sociais. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade da Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS, São Leopoldo, 2011.

DURAZZO, Leandro. A negação do Ego no budismo chinês ou orientações para uma ética do Budismo Humanista de Taiwan. Revista Lusófona de Ciência das Religiões, v. 1, n. 20, p. 125-138, 2017. Acesso em: 23 jul. 2021.

FERREIRA, Fábio Lustosa. A Ética da Compaixão de Schopenhauer em sua Intersecção com a Ética da Compaixão Budista. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Centro de Teologia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba-PR, 2007.

FERREIRA, Marilane Pereira L. Os olhares filosóficos orientais e ocidentais sobre a inteligência espiritual e suas possíveis convergências. Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapiências, v. 1, n. 1, p. 1-19, 2015.

GOUVEIA, Ana Paula Martins. Introdução à Filosofia Budista. São Paulo: Paulus, 2016.

KELSANG, Geshe. Budismo moderno: o caminho da compaixão e da sabedoria. 3. ed. São Paulo: Editora Tharpa, 2015.

SOUZA, Carlos Henrique Amaral de. Constituição do Campo Sensível: Apegos, Renúncia, e Liberdade – Uma Contribuição da Filosofia Budista. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória-ES, 2012.

WALLACE, B. Alan. Felicidade genuína: meditação como o caminho para a realização. tradução Jeanne Pilli; prefácio Sua Santidade o Dalai Lama; apresentação Lama Padma Samten. Teresópolis-RJ: Lúcida Letra, 2015.

Curiosidade

O mudra budista (gesto manual) representa a compaixão e a sabedoria. A mão esquerda, com a palma virada para cima, simboliza a sabedoria. A mão direita, também com a palma virada para cima e apoiada sobre a mão esquerda, representa a compaixão. A união entre a compaixão e a sabedoria é representada pela união entre as pontas dos polegares das duas mãos.