O DIREITO À PROPRIEDADE EM LOCKE

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em jul. 2020


No texto sobre o contratualismo do filósofo John Locke temos que no estado de natureza existe a possibilidade de violação da propriedade por falta de uma lei estabelecida e de um juiz imparcial, o que pode ou não acarretar um estado de guerra uns contra os outros. Um pacto social é então estabelecido a partir da necessidade de superar esses inconvenientes levando os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si um contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Um dos principais objetivos do contrato é, portanto, a preservação e garantia do direito à propriedade. O direito à propriedade é um direito que deve ser assegurado pelo governo instituído através do contrato social: “o objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade (DT, II, §124)” (apud FRANZ, 2007, p. 94).

Para Nodari (1998, p. 121): “A teoria de Locke sobre a propriedade é um dos aspectos mais importantes e singulares do seu sistema político. É a parte mais original da filosofia política de Locke”. O que é corroborado por Franz (2007, p. 93) ao afirmar que a “grande novidade e também o centro de todo o pensamento político de John Locke é, sem dúvida, sua teoria sobre o direito que os indivíduos têm de estabelecer propriedade privada em uma sociedade civil instituída”.

Para Locke a propriedade já existe no estado de natureza e, portanto, constitui uma instituição anterior à sociedade, um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. No estado de natureza os homens têm liberdade para ordenar suas ações “e dispor de suas posses e pessoas como acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem deixar-se levar ou depender pelo desejo de qualquer outro homem” (NODARI, 1998, p. 124).

A propriedade é posta como inviolável, na condição de mais um entre os direitos naturais que devem ser observados pela razão humana. Todos que discordarem dessa cláusula e desrespeitá-la devem ser punidos pela sociedade política organizada como afirma na sua definição de poder político: “Considero, portanto, poder político o direito de fazer leis com pena de morte e, consequentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior; e tudo isso tão-só em prol do bem público” (DT, II, §3). (FRANZ, 2007, p. 93).

O Conceito de Propriedade 

Há que considerar que a ideia de propriedade em Locke tem um sentido amplo e um sentido restrito. Em sentido amplo diz respeito a soma dos direitos aos bens materiais e também o direito à vida e à liberdade. “Bobbio cita alguns trechos do Segundo tratado em que Locke amplifica o conceito de propriedade como em “O homem (...) tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e os bens (...) (DT, II, §87)” (apud FRANZ, 2007, p. 94). Em Locke a ideia de propriedade em sentido amplo pode ser aplicada à propriedade da própria pessoa, da vida, da liberdade e dos bens fundamentais e ninguém poderá apoderar-se da propriedade de alguém sem o seu consentimento. Todavia, é preciso considerar, como afirma Macpherson (apud NODARI, 1998, p. 15) que “Locke não definiu clara e objetivamente a propriedade. Locke utiliza propriedade ora no seu sentido amplo: vida, liberdade e posses e ora no seu sentido estrito, ou seja, apenas aos bens e à fortuna”. 

De qualquer forma, o direito à propriedade no sentido de direito a propriedade da própria pessoa, da liberdade, bem como a propriedade de bens é fundamental no sistema político de Locke, sendo que

O direito fundamental mais importante na vida humana é o direito de autoconservação. É da vontade do Deus que o homem busque conservar-se, pois, segundo Locke, Deus deu a todos o instinto de autoconservaçâo. O homem tem o direito e o dever de autoconservar-se e de preservar a vida, consciente de que Deus pôs toda a criação ao dispor do homem. [...] Daqui advém o direito de propriedade da própria pessoa e dos bens (NODARI, 1998, p. 159-160).

O homem é o senhor, tanto de suas propriedades e bens, quanto de sua própria vida e pessoa. “Como observou Bobbio, o direito de propriedade se torna fundamental pelo simples fato de, em sentido amplo, estender-se à própria vida” (apud FRANZ, 2007, p. 94). Na ideia de pessoa reside, portanto, o fundamento da propriedade, fazendo com que a noção de pessoa seja inseparável da noção de direito.

Dito de outro modo, o conceito de pessoa é um conceito de direito que confere às ações os seus méritos, suas punições e suas recompensas, implicando diretamente na responsabilidade do homem. Aqui, pessoa é o homem considerado na sua significação jurídica. Logo, o conceito pessoa se aplica tão-somente a um agente inteligente e racional, capaz de uma lei e viver segundo a lei, isto é, segundo um direito, porque não há pessoa sem direito, sem direito à liberdade em particular. Em suma, cada homem nasceu com um duplo direito: direito à liberdade de sua pessoa e direito à liberdade de seus bens, reconhecidos tradicionalmente como os critérios do individualismo (NODARI, 1998, p. 126).


Este sentido amplo de propriedade como propriedade da própria pessoa é o ponto chave da antropologia individualista de Locke, caracterizando o homem como indivíduo e tornando-o distinto e independente de todos os outros homens, tanto pela sua pessoa como pela sua liberdade natural.

E estando cada homem, por natureza, num estado de perfeita liberdade, somente a identidade pessoal saberá medir-se com a continuidade de sua vida reconhecível na continuidade do seu si mesmo, presente num corpo organizado único. Porque a liberdade de uma pessoa tão-somente tem sentido se esta pessoa é um ser pensante e inteligente, ou seja, dotado de razão e reflexão. A identidade de um ser racional é função, portanto, da consciência que acompanha todo o pensamento. É a (NODARI, 1998, p. 125) consciência que assume e assegura a identidade da pessoa e faz com que cada pessoa seja um si mesmo individual e se reconheça como tal, sendo que a liberdade da pessoa pode ser somente esta de um ser dotado de razão (NODARI, 1998, p. 125-126).


Quando Locke amplia o sentido de propriedade das coisas para a própria vida humana, ele dá um salto fundamental para sustentar a importância que este direito deve adquirir para o homem, sem o qual, estaria sujeito à própria morte. Se preservar a propriedade também inclui preservar a própria vida, tem-se aqui que a propriedade deve ser entendida realmente como um direito natural e de alta relevância. É justamente a falta de garantias quanto à preservação da propriedade individual entendida em seu sentido mais amplo que justifica a união dos homens em uma sociedade política. Daí a necessidade da sociedade civil tentar atingir, por meio de leis positivas, as mesmas características do estado de natureza com a preocupação central de garantir o direito natural de propriedade (FRANZ, 2007, p. 99).

Já no sentido restrito trata-se da propriedade de bens (é no capítulo V do Segundo Tratado que trata da propriedade que prevalece este sentido restrito).

Temos, portanto, a definição de propriedade relativa aos bens mas também a ideia de propriedade da própria pessoa (como marca mais evidente do individualismo de Locke).

A Questão Teológica da Propriedade e do Trabalho 

O Primeiro Tratado escrito por Locke se caracteriza pelo posicionamento contrário as teses de Robert Filmer que procurou legitimar a teoria do direito divino dos reis (a teoria segundo a qual o poder do rei deriva diretamente de Deus) e igualmente procurou fundamentar o conceito de propriedade com base na ideia “de que Deus concedeu a Adão e aos seus herdeiros o domínio sobre a terra e seus habitantes” (NODARI, 1998, p. 122).

Se por um lado Locke contesta a legitimidade do poder absoluto do domínio dos reis que teria origem em Adão, por outro lado Locke advoga a tese de que o direito de propriedade é sim um direito natural, oriundo de uma lei natural, estabelecida por Deus.

No Segundo Tratado, Locke abre o capítulo sobre a propriedade reiterando a convicção de que Deus “deu a terra aos filhos de Adão” (SI 115, 16) concedendo-a em comum a toda humanidade. A questão emergente aqui é - mas, então, como alguém chega a obter propriedade de qualquer coisa? Frente a esta interrogação, Locke declara que procurará, no capítulo sobre a propriedade, mostrar como os homens podem chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo dado por Deus à humanidade em comum e isso ainda sem qualquer pacto expresso entre todos os membros da comunidade (NODARI, 1998, p. 122).


Locke aceita, portanto, o preceito de que Deus doou a terra e seus frutos aos homens, uma concepção que não era nova “e fazia parte da tradição puritana do século XVII” (MACPHERSON 1979, p. 211 apud FRANZ, 2007, p. 94).

Luiz Pinto (2007, p. 56) destaca a influência teológica do protestantismo na visão do trabalho em John Locke:

Mantendo a influência do protestantismo em suas concepções, Locke coloca como elemento para a posse da propriedade – e direito sobre a mesma – o trabalho. Embora ele não demonstre concretamente como uns detêm a posse e outros não, a justificativa para o fenômeno dar-se-ia pelo fato de que uns trabalharam para possuir a propriedade e outros não.


Locke fundamenta sua ideia de propriedade no fato de que Deus deu a terra à humanidade como algo evidente pela razão e pela revelação. Além disso, para Locke, “o homem no estado de natureza deve ser apto a apropriar as coisas necessárias para seu sustento, ou seja, apropriar é fazer algo próprio para si mesmo. Locke fez da apropriação o início e a fundação do direito de propriedade” (NODARI, 1998, p. 125), de onde resulta o direito de apropriação.

O Direito de Apropriação 

Deus deu o mundo aos homens para que façam bom uso e para melhor proveito da vida. Por isso, os frutos que a natureza produz e até os animais pertencem à humanidade em comum não tendo, ninguém em particular, domínio privado sobre aquilo que é produzido pela natureza em seu estado natural, com exclusão dos demais. Por outro lado, mesmo tendo dado o mundo aos homens para seu usufruto, há um meio de apropriá-los de algum modo que possa beneficiar os indivíduos em particular. É nesta perspectiva da apropriação que Locke dá um passo decisivo:

segundo Locke, a apropriação, no caso do alimento, requer que este seja de algum proveito para o homem, ou seja, que ele se torne parte dele e seja dele [...] Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, existe, mesmo antes de qualquer apropriação, alguma propriedade privada: cada homem tem a propriedade em sua própria pessoa e sobre a própria pessoa ninguém tem direito [...] Dito isso Locke está pronto para dar o passo determinante. Além da minha pessoa, algo que é fruto do meu trabalho, do trabalho do meu corpo e da obra das minhas mãos, não é mais comum, mas é meu. Neste sentido, para Locke, o homem, ao usar o corpo e as mãos de que é dono, mistura seu trabalho aos produtos da natureza, retira-os da esfera comum e torna-os seus. O homem, com o trabalho, adiciona algo à natureza e toma algo privado (NODARI, 1998, p. 123-124).


Se por um lado o mundo foi dado aos homens em comum e embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, por outro lado cada homem tem a propriedade de sua própria pessoa do qual resulta a necessidade de ter um meio que permita a cada uma apropriar-se daquilo que for necessário para sua sobrevivência. E o meio necessário para a legitimação da apropriação é o trabalho que, por sua vez, constitui o fundamento originário da propriedade. A partir deste direito fundamental, a propriedade, aquilo que resulta do trabalho do próprio corpo e a obra das próprias mãos se tornam propriedade do trabalhador. “Desde que este trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que o outro juntou pelo seu trabalho. Então, o trabalho, por remover os frutos da terra do estado comum, cria o direito de propriedade” (NODARI, 1998, p. 128).

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento originário da propriedade: “o trabalho é responsável pela maior parte do valor das coisas de que desfrutamos neste mundo” (LOCKE, 1994, p. 107 apud HORTA, 2004, p. 245). E ao situar o trabalho humano como algo que dá valor às coisas, Locke revela seu interesse em economia a partir da ideia do “princípio do valor do trabalho” que será tematizado nos séculos seguintes (WOLKMER, 2003).

A dedução que Locke efetua do direito de propriedade a partir do trabalho é algo novo na história da teoria política. O indivíduo, segundo Locke, deve unicamente ao seu esforço e à sua própria força de trabalho a consecução da própria propriedade. Acrescida à teoria do trabalho, Locke sustentou que a descoberta do dinheiro possibilitou evitar o desperdício e apropriar-se mais do que era necessário, possibilitando o subsequente uso da terra e do dinheiro como capital (NODARI, 1998, p. 160).


Todos são donos de seus próprios corpos. E o trabalho realizado pelo homem, fruto de seu próprio esforço, deve saciar as necessidades do corpo. Por isso, o homem passa a ser dono não apenas do seu corpo, mas também do seu trabalho e dos resultados obtidos pelo seu esforço para se alimentar e garantir sua sobrevivência.

O argumento usa uma relação extrativista com a natureza. Locke afirma a propriedade sobre a própria pessoa e seu próprio esforço: “Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele” (DT, II, §27). Em seguida, o trabalho se torna agente de contaminação do direito de propriedade do indivíduo justificado na necessidade de sua própria subsistência: “Seria roubo tomar de tal maneira para si o que pertencia a todos em comum? Se semelhante consentimento fosse necessário, o homem morreria de fome, apesar da abundância que Deus lhe deu” (DT, II, §28). (FRANZ, 2007, p. 95).


O direito da apropriação, resultado do direito natural da propriedade tem, porém, seus limites.

O limite da propriedade é fixado de acordo com a capacidade de trabalho do ser humano e o direito de usar aquilo do qual o homem apropriou e criou, por seu trabalho, não é absoluto e incondicional, pois o homem deve observar a lei da natureza e respeitar os direitos naturais de cada homem. Com efeito, o direito à apropriação está sujeito à existência de um número suficiente de frutos para os outros e a que cada homem não desperdice o que apropriou. O desperdício é um crime contra a lei comum da natureza, pois nenhum homem tem o direito de tomar para si mais do que pode consumir [...] a injunção moral contra o desperdício, a fim de que sobre o suficiente para os outros, aplica-se também à terra. Há, portanto, segundo Locke, no estado natural, limites naturais que determinam o limite e o padrão de apropriação (NODARI, 1998, p. 128-129).

 

Podemos resumir assim os limites ao direito de apropriação:

1) O primeiro limite é aquele que estabelece que todos podem tomar posse do fruto do seu trabalho, desde que haja o bastante para os demais. “Esse limite se justifica no direito que todo homem tem à própria conservação, a se apropriar das necessidades vitais” (FRANZ, 2007, p. 95-96). Este primeiro limite está relacionado com a refutação de Locke no Primeiro Tratado, do “argumento de Robert Filmer que desejava que o monarca fosse proprietário do mundo inteiro por herança de Adão. A ideia que todas as coisas possam pertencer a um homem só contradiz a bênção de Deus a Adão: ‘crescei e multiplicai’” (FRANZ, 2007, p. 96).

2) O segundo limite estabelece que o direito de propriedade se estende ao que é necessário para a manutenção do corpo e garantia da sobrevivência.

Aquilo que o trabalho produzir a mais pertence a terceiros. Então, para disciplinar o usufruto dos bens, surge outro limite racional para a apropriação: o homem tem direito a “tanto quanto qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a vida antes que se estrague (...) o excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e pertence a terceiros” (DT, II, §31). Deste argumento, Locke derivará a origem e necessidade do comércio que, através de trocas, evita que os produtos do trabalho sejam desperdiçados. Este é o primeiro passo para gerar a desigualdade econômica entre os indivíduos naturalmente iguais. O segundo passo seria a invenção do dinheiro baseado no seguinte raciocínio: se a troca do excedente do trabalho por outras mercadorias a fim de que não se estraguem não contraria a lei de natureza, então basta trocar esse excedente por ouro ou prata e reverter a troca quando precisar. Os homens, então, aderem ao uso do dinheiro de forma “tácita” como define Locke. E finalmente o terceiro passo para a desigualdade seria a alienação do trabalho humano, mas para justifica-la, Locke precisa abandonar seu modelo extrativista e adotar o problema da posse da terra (FRANZ, 2007, p. 96).


3) O direito de apropriação também é limitado pela capacidade que o homem tem de lavrar a terra. O homem tem o direito de cercar um lote de terras que tenha condições de cultivar, caso contrário, “se não o fizer ou deixar de consumir os produtos, o direito de possuir a terra, baseado no trabalho de cercá-la, é anulado, podendo qualquer um que dela necessite tomar posse da terra para seu uso próprio” (ver L. J Macfarlane, 1981, p. 183 apud NODARI, 1998, p. 128). Não faz sentido cercar uma área que seja superior à sua disponibilidade de trabalho “pois não conseguiria lavrar toda a extensão reivindicada” (FRANZ, 2007, p. 97). Em uma área que seja superior à possibilidade de seu trabalho, irá acontecer o desperdício, como ressaltado neste trecho: “Mas, se a grama do cercado apodrecesse no chão ou o fruto das plantações perecesse sem que o colhesse e guardasse, esta parte da terra, apesar de por ele cercada, tinha de considerar-se abandonada e podia passar à posse de terceiro” (DT, II, §38) (FRANZ, 2007, p. 97).

Finalmente é preciso considerar que se todos têm o mesmo direito à posse, pode acontecer de todos quererem resolver disputar os mesmos bens e esta disputa pode gerar um estado equivalente ao estado de guerra, visto que no estado de natureza não existe uma lei para impor limites a não ser a força da lei de natureza que pode ser transgredida. E aqui temos, mais uma vez, uma razão para que os homens abandonem o estado de natureza e, por meio de um pacto (ou contrato), fundem a sociedade civil.

Dinheiro e Comércio 

A defesa do trabalho como fundamento originário da propriedade que pode ser interpretada por alguns como uma defesa do capitalismo e de um liberalismo sem limites deve ser vista com ressalvas, pois o filósofo fala claramente no Segundo tratado como o homem deve utilizar o seu trabalho sem retirar com isso vantagens para sua existência, evitando todo e qualquer desperdício pois “Tudo o que excede a este limite é mais que a sua parte e pertence aos outros. Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem” (LOCKE, 1994, p. 100 apud HORTA, 2004, p. 246) e a regra de propriedade estabelecida por Locke afirma que “[...] cada homem deve ter tanto quanto pode utilizar [...]” (id., ibidem, p. 246) e foi a instituição do dinheiro que, a partir de um acordo tácito entre os homens, estabeleceu um valor para que o homem introduzisse posses maiores e o direito a elas.

Foi o aparecimento do dinheiro que alterou a situação entre propriedade e trabalho. Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, que, além do trabalho, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou, finalmente, à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, grosso modo, o processo que determinou a passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.

Por um lado, o aparecimento do dinheiro resolveu um problema, o problema do desperdício: “O dinheiro possibilitou a troca de coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro (ouro e prata), convencionalmente aceito pelos homens (NODARI, 1998, p. 129)”. Por outro lado, o dinheiro permitiu a acumulação da riqueza e possibilitou a que cada homem detivesse mais do que realmente necessitava: “O uso do dinheiro levou finalmente à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens” (NODARI, 1998, p. 129). Por esta razão, Locke é considerado como um dos pais da economia científica:

Em suma, a concepção de Locke, segundo a qual é o trabalho, na realidade, que provoca a diferença do valor em tudo quanto existe, pode ser considerada, em certa medida, como precursora da teoria do valor-trabalho, desenvolvida posteriormente pelos economistas Smith e Ricardo do liberalismo clássico (NODARI, 1998, p. 129-130).


Não significa dizer que Locke tenha desenvolvido de forma pormenorizada e aguçada esta teoria “mas, como diz Louis Dumont, em Locke, encontra-se um momento decisivo da emancipação do econômico com relação ao político” (NODARI, 1998, p. 130).

Recapitulando temos que o comércio surge para possibilitar a troca do excedente por outros tipos de alimentos ou por outras coisas úteis como roupa, cadeira etc. Aí há uma expansão do cultivo para usar o excedente no comércio por outros bens quaisquer. Possibilita ampliar os ganhos obtidos com o esforço do trabalho. Há aqui, a ideia puritana herdada por Locke de que quanto maior o trabalho, melhor. Abre-se a possibilidade do enriquecimento (FRANZ, 2007, p. 98).


O dinheiro, além de ser utilizado como troca por alimentos, é utilizado também para trocar por algo que seja mais durável. Assim, o trabalhador poderia trocar o dinheiro tanto por outros alimentos quando seus suprimentos esgotassem, como por objetos que lhe trariam conforto e bem estar.

Finalmente, vem o terceiro passo que culmina na acentuação da desigualdade econômica entre os homens na medida em que o dinheiro abre a possibilidade de compra da força de trabalho de outrem. Dessa forma, os limites bem definidos da sociedade extrativista usada por Locke no início de seu argumento são superados pelo comércio, dinheiro, e alienação do trabalho alheio e deixam de existir (FRANZ, 2007, p. 98).

Referências 

HORTA, José Luiz Borges. Uma breve introdução à filosofia do estado de John Locke. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 90, p. 239–260, jul./dez., 2004.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil; Ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Introd. J.W. Gough. Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes, 1994. (Coleção clássicos do pensamento político, 14).

PINTO, Luiz Antônio Gomes. Aspectos da filosofia política de John Locke e a sua aplicação na contemporaneidade. SINAIS, Revista Eletrônica, Vitória, n.02, v.1, pp.47-65, out. 2007. Acessado em 03/11/2015.

WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Introdução à História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.