QUESTÕES FILOSÓFICAS PARA UMA FILOSOFIA INDÍGENA
QUESTÕES FILOSÓFICAS PARA UMA FILOSOFIA INDÍGENA
por Alexsandro M. Medeiros
lattes.cnpq.br/6947356140810110
postado em: jun. 2024
Utilizando categorias amplamente estudadas pela filosofia como episteme, antrophos, ethos, oikos, poiesis, podemos relacionar estes conceitos com temáticas indígenas, que nos possibilitem empreender uma reflexão sobre o homem, os valores, o ambiente, a arte (sobre o tema da arte, veja o nosso artigo: Filosofia da Arte Indígena e Indústria Cultural). Uma compreensão que vá além do que comumente se pensa em termos de um pensamento indígena brasileiro
relegado, como o reconhecem alguns/algumas de seus/as representantes mais destacados/as, ou ao âmbito da literatura infanto-juvenil, ou ao âmbito do mito como pré-filosofia, como pré-ciência, sendo assumido, quando muito, pela antropologia cultural como um objeto de estudo descritivo, talvez até como uma curiosidade etnográfica (DANNER; DORRICO; DANNER, 2019, p. 75 – grifo dos autores).
Pensar uma filosofia indígena significa pensar no compartilhamento de saberes, filosófico e indígena, para além de uma cosmogonia (mitos cosmogônicos) ou cosmologia (cosmovisão), e que inclua questões epistemológicas, ambientais, éticas ou a arte, em uma interface entre o conhecimento filosófico e indígena. Embora, sob certos aspectos, não se possa falar estritamente de uma filosofia indígena, como sugerem Danner, Dorrico e Danner (p. 75 – grifo dos autores): “por causa da recusa da voz, da negação do protagonismo e do não-reconhecimento da voz-práxis indígena”. E, a considerar a concepção hegemônica de filosofia baseada em um discurso racional, o pensamento indígena brasileiro permanecerá no âmbito do exótico e do ingênuo.
A filosofia indígena tanto pode se aproximar quanto se distanciar do pensamento da filosofia ocidental. Por um lado, Sztutman (SZTUTMAN; MATAREZIO FILHO, 2015, p. 8) fala de buscar ressonâncias entre as ideias dos filósofos ocidentais e o pensamento indígena e cita Eduardo Viveiros de Castro “quando mostra essa conexão entre o pensamento do Deleuze e do Guattari e o pensamento ameríndio. Com essas ideias de devir, de afecção”. Por outro lado, como podemos perceber nas ideias do renomado antropólogo Lévi-Strauss, existem certas categorias do pensamento filosófico ocidental que estão nos antípodas das cosmovisões indígenas.
A dimensão crítica epistemológica nos permite realçar a pluralidade e a variedade de culturas, afirmando novas possibilidades de se conceber o mundo (novas cosmovisões). Neste aspecto, Nogueira (2015, p. 398) ressalta como a Filosofia deve avaliar criticamente o que ele chama de “racismo epistêmico” sendo necessário “analisar os diversos pontos de vista sobre o problema do conhecimento, a construção da teoria do conhecimento e da epistemologia”.
Uma produção filosófica indígena ajuda-nos a desconstruir a perspectiva colonialista, de que só se pode fazer filosofia “em grego ou em alemão”. Mas é importante ressaltar, com o faz Rodrigues (2023, p. 91), que a filosofia indígena é polifônica, ou seja, “não podemos tratá-la como um bloco uníssono. Etnias diferentes, línguas diferentes, filosofias diferentes. Isso não significa que não possa haver pontos de diálogos e convergências entre elas”.
A afirmação de outras epistemologias se insere no que Santos (2007, p. 33) chama de ecologia de saberes, que supõe a existência de culturas diferentes “em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês”.
Ao abordar a temática do ensino de Filosofia no Brasil, Nogueira (2015, p. 398-399) propõe incluir temáticas que estejam de acordo com a questão racial e relacionadas ao Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Neste aspecto, ressalta a possibilidade de incluir tais temáticas, seja no campo da História da Filosofia, da Teoria do Conhecimento, da Ética, da Lógica e até de Problemas Metafísicos (Filosofia Geral).
Levando em consideração as diretrizes fundamentais do ensino de filosofia de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases (alterada pela lei 10.639/2014), a Filosofia pode contribuir na construção de:
1º) Uma Estética plural e antirracista [estética da sensibilidade], incluindo elementos indígenas; 2º) Uma Política que combata as assimetrias baseadas em critérios Étnico-raciais [política da igualdade], descatequizando e descolonizando a agenda dos povos indígenas; 3º) Uma Ética que combata as discriminações negativas endereçadas para grupos Étnico-raciais [ética da identidade] que historicamente têm sido subalternizados, colocando nos circuitos curriculares as questões éticas dos povos indígenas (NOGUEIRA, 2015, p. 399).
Para analisar a questão antropológica vamos considerar o pensamento de Ailton Krenak: “um filósofo indígena, ativista político, ambientalista, professor [...] Podemos situá-lo na corrente da filosofia indígena contemporânea brasileira” (Rodrigues, 2023, p. 191).
A filosofia de Ailton Krenak é uma crítica à ideia de humanidade que considera o ser humano apenas sob a ótica ocidental: “como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência?” (Krenak, 2019, p. 10-11 apud Rodrigues, 2023, p. 192). Desta forma, seu pensamento propõe a desconstrução de uma antropologia filosófica pautada na ideia genérica de humanidade.
“Sua crítica é direta: a ideia de humanidade ocidental é inventada, ‘é como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade’ (Krenak, 2020a, p. 10)” (Rodrigues, 2023, p. 193). E mais adiante: “Krenak expõe o retrato dramático de nossa existência coletiva e individual pautada pelas determinações do conceito de humanidade ocidental, e pelas exigências do capital” (Rodrigues, 2023, p. 194).
Da crítica ao conceito ocidental de humanidade decorre sua visão em torno da ética e também da questão ambiental, que veremos logo a seguir. (veja também: Filosofia Indígena e Educação: Breves Apontamentos)
No campo da ética e dos valores, a Filosofia é chamada a refletir e problematizar as justificações e fundamentações de princípios e valores em diversas culturas, incluindo aí as sociedades e culturas ameríndias e dos povos indígenas. A ética entendida como o “ramo da filosofia que analisa conceitos morais (tais como os da bondade e da verdade moral) e preceitos morais (tais como os da reciprocidade)” (BUNGE, 2002, p. 130), ou como um ramo “da filosofia prática que tem por objetivo elaborar uma reflexão sobre os problemas fundamentais da moral (finalidade e sentido da vida humana, os fundamentos da obrigação e do dever, natureza do bem e do mal, o valor da consciência moral etc.)” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 69).
Não é difícil pensar em como a Filosofia pode contribuir com o pensamento indígena se levarmos em consideração que toda sociedade, incluindo aí as comunidades indígenas, possuem um ethos, um conjunto de valores que determinam o modo de ser, pensar e agir de um determinado grupo social.
Segundo Matarezio Filho, “Lévi-Strauss já antevia uma moral indígena implícita na mitologia, nos rituais e nos cuidados com o corpo [...] Uma moral com a qual temos muito o que aprender” (SZTUTMAN; MATAREZIO FILHO, 2015, p. 2 – ver também a parte final de A Origem dos Modos à Mesa chamado de “A moral dos mitos”, de Lévi-Strauss). Podemos, portanto, falar de uma moral que pode ser pensada através dos mitos e dos rituais. Existe uma ética do sujeito, como por exemplo, quando as meninas menstruam e precisam ficar reclusas
elas precisavam entrar em reclusão porque aquela desordem que acontece no corpo delas tem um efeito, pode ter um efeito para sociedade e para o cosmos. Quer dizer, a realidade física daquelas pessoas não é assunto só delas, não compete só a elas, mas está em relação com toda uma outra realidade, física e metafísica do cosmo e da sociedade [...] Temos que saber controlar os nossos fluidos para viver num mundo social, portanto, num mundo cósmico. Tem toda uma ética do sujeito que parte do princípio – que é uma ética indígena – de que este sujeito está integrado a um mundo maior. As próprias substâncias que compõem aquele corpo não dizem respeito apenas a ele, mas dizem respeito às relações, e estas relações são entre pessoas e são entre pessoas e o mundo. Então tem um princípio ético que aparece via mito e rito indígena (SZTUTMAN; MATAREZIO FILHO, 2015, p. 11).
A filosofia moral indígena é distinta da filosofia moral ocidental, segundo a análise que Sztutman (SZTUTMAN; MATAREZIO FILHO, 2015, p. 11) faz do pensamento de Lévi-Strauss, porquê: “as filosofias morais ocidentais, ou seja, a ética ocidental, elas partem do princípio de um sujeito, que é um sujeito unitário, autônomo, de uma certa maneira que vai dar na discussão dele com o Sartre, no sujeito supremo, livre, sem amarras”.
A questão ambiental, por sua vez, pode ser articulada, em certa medida e em sentido amplo, com o que podemos chamar de uma filosofia da natureza e, neste campo, dois personagens de renome são conhecidos: Daniel Munduruku e Davi Kopenawa.
Davi Kopenawa é um xamã e líder político do povo yanomami.
O xamã Davi Kopenawa reconhece como uma tragédia humana e cosmológica a destruição do território de seu povo Yanomami causada por garimpeiros (KOPENAWA; ALBERT, 2015). Entende a predação mercantil como uma destruição da ordem cosmológica dos fenômenos ecológicos e meteorológicos (migração da caça, fertilidade de plantas silvestres, controle da chuva, alternância das estações), construindo a cosmovisão de uma queda do céu, mito que anuncia a morte dos xamãs em consequência da devastação da natureza e, com isso, o afastamento do espírito da floresta (Álvaro, 2022, p. 333).
Daniel Munduruku é um escritor indígena brasileiro e etnofilósofo, autor de vários livros, com destaque para Banquete dos deuses. Daniel Munduruku
é um dos pensadores que trazem para o diálogo em seus livros e palestras uma cosmoética presente na tradição de seu povo, na qual a ancestralidade é a grande voz que ensina a estar no presente. Construindo caminhos que levam a uma educação de base complexa, Daniel tem dialogado com várias áreas do conhecimento que entrelaçam seus escritos, sendo também uma voz de resistência há décadas (Araújo, 2022, p. 322).
A visão de Munduruku sobre a natureza é a de que
A natureza não pertence a outra família. Humanos e natureza são da mesma família, o que só pode ser alçado, compreendido e experimentado através de um modo de vida peculiar. A narrativa de Munduruku pretende provocar, estimular e garantir a apreensão desse modo de vida (NOGUEIRA, 2015, p. 401).
Gersem Baniwa (do povo Baniwa e professor da UFAM), por sua vez, em entrevista a Rubens Lopes, ressalta a forma como os povos indígenas compreendem o território que é fonte e condição de vida, é tudo o que envolve o meio ambiente, o ar que se respira, os espíritos sagrados, lugar de coexistência de todos os seres, humanos e não-humanos. Não é possível viver sem o território, porque ele é natureza integrada, é o cosmos.
Não há sofrimento maior para o povo indígena do que ser retirado de sua terra, porque ao ser tirado dali, ele perde a conexão com a vida sagrada. A relação não é com o solo, é a cosmologia que concebe tudo que vive como sujeitos, com seus espíritos. [...] Na visão cosmológica indígena o que prevalece é a vida, e os povos entendem a necessidade da auto realização da natureza. O que interessa é justamente o equilíbrio. Isso se choca com a visão materialista da cultura ocidental (BANIWA, 2016).
Sendo a questão ambiental umas das mais importantes questões do nosso tempo, e levando em consideração que precisamos repensar a nossa forma de se relacionar com a natureza, uma forma de pensar que “nos ajude a entender que nós, seres humanos, estamos interligados na teia da existência da vida” (MEDEIROS, 2012, p. 81), então o pensamento indígena é muito próximo da discussão atual no campo da filosofia da natureza sobre a relação entre o homem e o meio ambiente.
Vimos mais acima como, da crítica ao modelo ocidental de humanidade decorre a visão do filósofo Ailton Krenak em torno da questão ambiental e, agora, iremos explorar um pouco mais esta questão (veja também: Filosofia Indígena e Educação: Breves Apontamentos).
A filosofia de Ailton Krenak é uma filosofia do agora, da urgência. Pois parte dos problemas concretos enfrentados pela humanidade em escala mundial: a questão climática; desmatamentos; genocídio de povos originários; consumismo; aniquilamento do outro como humano e natureza; as contradições do capitalismo, entre outros. Mas também é uma filosofia da esperança, uma filosofia utópica concreta. Seus escritos nos levam a uma profunda reflexão sobre o antes, o agora e o depois, sendo, logo, uma filosofia da temporalidade localizada. Pois sabe exatamente que o hoje é seu lugar de existência. Sua preocupação com o outro humano e com o mundo nos apresenta a crise de sentido sobre a velocidade de “nosso” próprio aniquilamento (Rodrigues, 2023, p. 192).
Esta questão também pode ser analisada a partir da crítica do antropólogo Lévi-Strauss ao modelo filosófico/antropológico centrado no eu, no cogito cartesiano, e que Lévi-Strauss propõe pensar o eu, tanto em relação ao outro, quanto em relação ao Mundo: “o humanismo mais razoável tem que colocar o homem dentro, ao lado das espécies, o homem ao lado dos outros homens e a humanidade ao lado do mundo natural, que por sua vez faz parte de um mundo mais geral do universo” (SZTUTMAN; MATAREZIO FILHO, 2015, p. 11).
ARAÚJO, C. E. de. Saberes ancestrais e a educação para o sensível. In: Anais do VIII CONEDU - Fundamentos da Educação. Campina Grande: Realize Editora, 2022. Acesso em: 23/06/2024
BANIWA, Gersem. O território indígena. Entrevista concedida a Rubens Lopes, em 17.06.2016. Acesso em: 31 jan. 2020.
BUNGE, Mario. Dicionário de Filosofia. Tradução de Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2002. (Coleção Big Bang)
DANNER, Fernando; DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco. Pensamento indígena brasileiro como crítica da modernidade: sobre uma expressão de Ailton Krenak. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.19, n.3, p.74-104, outubro, 2019.
JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MEDEIROS, Alexsandro Melo. O paradigma ecológico, a teoria da complexidade e a questão ambiental. In: FERREIRA; Gerson André A.; RODRIGUES, Renan Albuquerque (orgs.). Amazônia: Chaves múltiplas para a interpretação da realidade. São Paulo: Scortecci, 2012, p. 81-100.
NOGUEIRA, Renato. Introdução à Filosofia a partir da História e Culturas dos Povos Indígenas. Revista Interinstitucional Artes de Educar, v. 1, n. 3, p. 394-407, 2015. Acesso em 30 dez. 2019.
RODRIGUES, U. de M. A ética ancestral na filosofia de Ailton Krenak. Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 7, n. 16., p. 190-207, jan./jun., 2023. Acesso em 10 jun. 2024.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.
SZTUTMAN, Renato; MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. Sobre Lévi-Strauss e Filosofias Indígenas - Entrevista Com Renato Sztutman. Ponto Urbe, 16, 2015. Acesso em: 13 jan. 2020.