OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS EM MARCO AURÉLIO
OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS EM MARCO AURÉLIO
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em mar. 2025
O imperador filósofo Marco Aurélio escreveu apenas uma obra: Meditações, que não é um tratado sistemático de filosofia. Marco Aurélio escreveu a obra sem nem mesmo ter como objetivo a sua publicação ou preocupações com explicações detalhadas sobre a doutrina estoica. Seu principal objetivo, como destaca Almeida (2015), foi o de escrever para si mesmo como um exercício de repetição e reformulação em cima dos princípios estoicos: “relembrar a si mesmo de novo e de novo aquilo que já foi assentido e, por isso, são formulações quase sempre compactas e muitas vezes obscuras para o leitor contemporâneo” (Almeida, 2015, p. 27). É uma ideia comum na antiguidade pensar a filosofia não apenas como uma atividade teórica, mas também prática, e essa prática pode ser vivenciada através dos chamados exercícios (askesis).
Foi o filósofo, historiador e filósofo francês da contemporaneidade, Pierre Hadot (1922-2010), quem apresentou a tese original de pensar a filosofia antiga como um modo de vida para o qual a filosofia serviria como uma espécie de exercício prático para o bem viver. É nesse sentido que devemos entender os exercícios espirituais de Marco Aurélio. Exercícios espirituais é a expressão utilizada por Hadot (2014) para designar qualquer modo de examinar a consciência, de meditação, de contemplação e no que diz respeito à filosofia antiga designa as práticas de exercícios estavam presentes na vida dos filósofos, ou seja, “os filósofos Antigos viveram por meio de ações filosóficas que conceitualmente é possível denominar Exercícios Espirituais” (Duarte, 2023, p. 17). Assim como um filósofo pode praticar exercícios corporais, ele também exercitar sua alma, a fim de torná-la virtuosa, desenvolver as faculdades psíquicas e morais da alma. Os exercícios espirituais
são práticas voluntárias de elevação do ser, e, que carregam consigo um valor existencial intimamente ligado a uma Maneira de Viver. Sendo assim, a filosofia Antiga é um exercício, um modo de orientação para a vida do filósofo (HADOT, 2014a, p. 10). Os Exercícios Espirituais estão presentes no discurso e na vida prática de todas as escolas filosóficas da antiguidade (Duarte, 2023, p. 18-19).
Vejamos com mais detalhes como a filosofia de Marco Aurélio, pensada como uma forma de vida, deve ser entendida a partir de um componente teórico (theōrēmata) e outro prático, através de exercícios (askēsis). Dentre os diferentes tipos de exercícios, podemos destacar: exercícios do discurso interior e exercícios de ação; exercícios para o corpo.
Os exercícios do discurso interior são aqueles feitos para fixar os princípios da doutrina, no caso, a doutrina estoica. Este exercício é feito “quando se está consigo mesmo, trabalhando-se sobre o próprio discurso interior: como Sócrates ao meditar só por longos períodos; [...] como Marco Aurélio ao escrever as Meditações” (Almeida, 2015, p. 39). Tanto os exercícios do discurso interior quanto os exercícios de ação são constantemente enfatizados na obra de Marco Aurélio.
Os exercícios de ação “inclui aqueles exercícios que envolvem pôr em prática os princípios do ensinamento estoico nas nossas ações concretas e confrontá-los com as situações da vida diária” (Almeida, 2015, p. 39). Envolve o encontro com as situações do cotidiano para confrontar nossa ação habitual e buscar aproximar-se do que é aparentemente bom e evitar o que é aparentemente mal. Em Marco Aurélio temos o exemplo da morte e de como há fatos da vida que são como “mera fumaça” ou como “nada”, fazendo com que o filósofo ganha a capacidade de lidar com tais acontecimentos. Neste exercício “da morte”, a pessoa deve evocar a imagem de pessoas semelhantes que já tenham morrido e o objetivo é produzir naquele que realiza tal exercício uma experiência antecipada da própria morte. “Recolocando, assim, a si mesmo na perspectiva da totalidade do tempo por meio da meditação sobre a morte, as coisas readquirem suas devidas proporções e o filósofo ganha a capacidade de olhar as coisas indiferentes como indiferentes” (Almeida, 2015, p. 43).
Além dos exercícios feitos para a alma, o imperador filósofo considera, ainda que em menor medida, exercícios para o corpo. Através do exercício corporal podemos ter a oportunidade de libertarmo-nos dos desejos e aversões (prazer e dor), indo ao seu extremo oposto, com o fim de contrapor-se às propensões habituais do corpo. A função dos exercícios espirituais que envolvem o corpo
é eliminar o hábito de empregar desejo e aversão com relação ao prazer e a dor no corpo, criando um hábito oposto. Assim, ao forçar as propensões naturais corporais em seu sentido contrário, abstendo-se do prazer e tolerando a dor, o filósofo pode descobrir através da ascese sua independência e autonomia com relação ao próprio corpo (Almeida, 2015, p. 37-38).
A Escrita como Exercício Espiritual
A obra Meditações não é um tratado sistemático de filosofia, mas antes, uma espécie de anotações pessoais do imperador filósofo que não tinha nem mesmo a pretensão de publicá-las. “Trata-se de um guia mnêmico (hypomnemata) composto por máximas, muitas delas repetitivas, as quais são configuradas por leis rigorosas que orientaram o filósofo a se relacionar com o mundo, a tomar juízo das suas representações e ações” (Duarte, 2023, p. 9). Desta forma, podemos entender a obra também como uma espécie de exercício espiritual do imperador que, ao utilizar a escrita, buscava exercitar-se na busca em direção à sabedoria: “ele recorreu a escrita como um meio de orientação espiritual e, através dela, viveu exercitando sua alma, buscando transformar e formar sua interioridade, revivendo os dogmas do estoicismo de modo que impregnassem à própria personalidade” (Duarte, 2023, p. 9). Através da escrita, ele se exercitava filosoficamente, exercitava sua alma, examinando suas ideias e a si mesmo, voltando o olhar para si através do que escrevia.
A escrita, a meditação, a atenção no momento presente, entre outras práticas, foram exercícios por meio dos quais os filósofos antigos buscavam viver e reviver as doutrinas de suas escolas filosóficas. O termo Askesis tes Psykhes remete-se a exercitar a alma por meio de sabedorias e práticas que visam conduzir à vida boa. O conjunto de exercícios espirituais integravam à filosofia Antiga e o estoicismo se utilizava vastamente dessa arte de viver (Duarte, 2023, p. 10).
Através do exercício da escrita, Marco Aurélio relembrava as regras essenciais para viver como um filósofo estoico, exercitando assim o seu intelecto e a moral. Escrevendo, medita-se sobre os pensamentos, inclusive aqueles considerados impuros, o que remete a questão do bem e do mal e o que fazer para viver de acordo com o bem, funcionando assim como uma ferramenta de autoconhecimento. Através do exercício da escrita, o filósofo está exercendo as faculdades cognitivas da alma, alimentando e renovando a sua memória em busca da sabedoria: “Formular e reformular ensinamentos filosóficos diariamente através de uma caneta e folha, escrevendo, seria uma maneira marcante e concreta de se tornar um amante da sabedoria” (Duarte, 2023, p. 57).
ALMEIDA, Henrique Castro de. Arte do viver e exercícios espirituais em Epicteto e Marco Aurélio. 2015. 67f. Trabalho de Conclusão de Curso (bacharelado e licenciatura em Filosofia), Departamento de Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niteóri-RJ, 2015.
Duarte, José Cleber Leandro. A escrita como exercício espiritual: uma leitura sobre o Marco Aurélio de Pierre Hadot. 2023. 88f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, 2023.
HADOT, P. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Tradução de Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, São Paulo, 2014.