BREVE HISTÓRIA DA MEDICINA


Desde a antiguidade que a humanidade se viu desafiada a lidar com diferentes tipos de doenças. Primordialmente essa relação saúde e doença estava diretamente relacionada com o campo mágico-religioso, partindo do pressuposto de que as doenças eram causadas por um mal externo, sendo, portanto, encarado como o pecado ou alguma maldição: um sinal da cólera divina para com o seu povo, por exemplo, devido aos pecados da humanidade, como é possível observar em alguns trechos bíblicos:  “Se não me escutardes e não puserdes em prática todos estes mandamentos, se desprezardes as minhas leis (...) porei sobre vós o terror, a tísica e a febre...” (Levítico, 26:16), ou ainda, “Servireis ao Senhor vosso Deus e ele abençoará vosso pão e vossa água e afastará de vosso meio as enfermidades” (Êxodo, 23:25).

Podemos mencionar também toda a tradição xamânica, de diversas tribos primitivas, que acreditavam que as doenças eram causadas por maus espíritos e cabia ao xamã da tribo, uma espécie de curandeiro, realizar rituais de expulsão de espíritos malignos (saiba mais em: Xamanismo). O Xamã é um indivíduo que tem a capacidade de acessar o mundo dos Espíritos, desempenhando ao mesmo tempo uma função de sacerdote e curandeiro. Através de transes de arrebatamento místico ele se eleva acima do homem comum e com seus rituais podia evocar os Espíritos da natureza para a solução de enfermidades e problemas individuais e sociais, bem como a realização de premonições e aconselhamentos diversos.

A Medicina Grega 

Na Grécia antiga ainda dominou por algum tempo o aspecto mítico e mágico da saúde através do culto associado a diversas divindades como Asclepius (deus da medicina; Esculápio para os romanos), Higeia (deusa da saúde) e Panacea (deusa da cura). Asclépio era filho do deus Apolo e pai de Panaceia e Higeia, e a ele foram dedicados vários templos para onde os doentes eram levados e tratados através de práticas ou ritos religiosos. De acordo com a mitologia grega: “o centauro Quiron ensinou aos homens a arte de curar os males. Ainda conforme a mitologia, Quiron teve como discípulo Esculapio, considerado filho de Numes e divinizado. Era chamado de "médico" e "salvador" e tinha como símbolo a serpente” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 121).

Mas a medicina grega irá estabelecer importantes mudanças no jeito de pensar a lógica do processo de doença. Essa ruptura ocorre sobretudo com os chamados médicos “leigos”, dos quais o mais conhecido é, sem dúvida, Hipócrates, que viveu entre 460-377 a.C. (não se sabe ao certo nem ano de nascimento e nem da morte de Hipócrates). O Corpus Hipocraticus, constituído por mais de cinquenta tratados, são textos que traduzem uma perspectiva racional a respeito da medicina, diferente da concepção mágico-religiosa que até então permeava o pensar do homem. Do Corpus Hipocraticus nem todos os tratados pertencem a Hipócrates. Alguns tratados lhe são atribuídos mas há margem para erro, tais como: O mal sagrado; O prognóstico; Sobre as águas, os ventos e lugares; Epidemias (provavelmente escrita por vários autores); Aforismos; e o célebre Juramento.

A ruptura com a tradição mítica é algo bastante característico da Grécia Antiga e foi o que propiciou o surgimento da própria filosofia: “Foi a ‘mentalidade cientifica’ criada pela filosofia da physis que possibilitou a constituição da medicina como ciência” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 122). E Jaeger (1995, p. 1003) vai mais além, ao afirmar que “a Medicina grega só se tornou uma arte consciente e metódica sob a ação da filosofia jônica da natureza”. É verdade que havia uma certa atitude antifilosófica da escola de Hipócrates no sentido de que a medicina deveria ser considerada uma arte eminentemente prática, mas a influência do discurso racional da filosofia não é menos evidente ao se pensar a medicina grega antiga. “A Medicina jamais teria conseguido chegar à ciência, sem as investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza, que procuravam uma explicação natural para todos os fenômenos” (JAEGER, 1995, p. 1004). Disto podemos concluir que a medicina grega foi influenciada sobretudo pelo conceito de physis (geralmente traduzido como natureza e desenvolvido pela filosofia jônica) e, consequentemente, o conceito de natureza humana e a ideia subsequente de que toda doença tem uma origem e uma causa natural. A diferença é que o filósofo tira seus ensinamentos do conhecimento objetivo da natureza em geral, enquanto que o médico o faz em relação ao conhecimento da natureza do corpo.

Entretanto, depois de ter alcançado com a ajuda da filosofia da natureza a categoria de ciência, a medicina irá dela se diferenciar tornando-se então, uma ciência médica. “É o desconhecido autor da obra intitulada Da Medicina Antiga quem, antes de qualquer outro, pugna de forma fundamental por esta orientação. E não estava sozinho no seu tempo” (JAEGER, 1995, p. 1021).

É preciso considerar que antes mesmo de Hipócrates, por volta do século VI a. C., a Escola de Crotona, sob a regência dos ensinos pitagóricos, já formava seus primeiros alunos, elevando a medicina à categoria de ciência da natureza.

Sob o aval da então forma de pensar dos primeiros filósofos gregos, a medicina grega começava a ganhar contornos mais racionalistas embora a ruptura com a tradição mítica não tenha acontecido completamente. Prova disso é o fato de que aqueles se curavam deveriam depois sacrificar um galo a Asclépio.

A mais importante instituição médica da Grécia Antiga foi a Escola de Cós (ou Kos), fundada no século V a.C. e seu maior representante foi Hipócrates, seguramente o mais famoso médico grego, reconhecido como o pai da medicina e que pode ser considerado o fundador da medicina científica ou pelo menos da medicina conduzida sobre bases racionais, a quem se atribui o mundialmente famoso juramento médico: “foi sobretudo em Cós que a medicina elevou-se ao mais alto nível, por mérito particular de Hipócrates, que, desfrutando dos resultados das experiências das anteriores gerações de médicos, soube dar à medicina a estatura de “ciência’” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 121). Como chefe da escola de Cós, Hipócrates ensinava medicina em Atenas, “onde Platão e Aristóteles o consideraram como o paradigma do grande médico” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 123). “Não há a menor dúvida que já para Platão e Aristóteles, Hipócrates era a personificação da arte da Medicina” (JAEGER, 1995, p. 1008).

Podemos considerar como aspectos fundamentais do Corpus Hipocraticus:

 

1) separou claramente o conteúdo científico da medicina em relação a todas as crenças religiosas que acompanharam seu nascimento; 2) considerou o homem e sua saúde não como realidades isoladas, mas como parte de um conjunto de fatores mais amplo, que pode ser não só o ambiente circundante, mas também as instituições políticas; 3) defendeu a autonomia da ciência médica em relação à filosofia: com efeito, enquanto esta vê o homem em geral, a medicina trata do homem concreto e de sua saúde física, relacionada com seu próprio ambiente; 4) definiu de modo quase perfeito o quadro ético dentro do qual devia agir o médico e mover-se a sua pesquisa (REALE; ANTISERI, 2007, p. 123).

 

Seguindo a tradição do pensamento lógico e racional, Hipócrates defendeu que a saúde baseava-se na existência de quatro elementos que ele chamou de fluidos ou humores: a bile amarela, bile negra, fleuma e sangue. De acordo com esta visão, a doença e saúde passam a ser vistas como dependentes do equilíbrio ou desequilíbrio desses quatro humores. A natureza do corpo humano é constituída pelos quatro humores e, ao analisá-los em conjunto com as quatro substâncias (terra, água, fogo e ar), as qualidades correspondentes, as estações e os temperamentos do homem constituem um “esquema de análise médica” (conforme quadro logo mais abaixo).

Outro ponto que merece destaque é a forma como Hipócrates pensava a questão da ética médica, “o ethos ou identidade moral que deve caracterizá-lo” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 126), o que levou Hipócrates a conceber o juramento médico que é utilizado até hoje nos cursos de medicina. O juramento é um pouco extenso e vamos apenas destacar aqui alguns trechos:

 

Por Apolo médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os deuses e deusas, invocando-os como testemunhas, juro manter este juramento e este pacto escrito, segundo minhas forças e meu juízo. [...] Valer-me-ei do regimento para ajudar os doentes, segundo minhas forças e meu juízo, mas me absterei de causar dano e injustiça. Não darei a ninguém nenhum preparado mortal, nem mesmo se me for pedido, e nunca darei tal conselho; também não darei as mulheres pessários para provocar aborto. Preservarei minha vida e minha arte puras e santas. [...] Em todas casas em que entrar, irei para ajudar os doentes, abstendo-me de levar voluntariamente injustiça e danos, especialmente de qualquer ato de libidinagem nos corpos de mulheres e homens, livres ou escravos. Tudo aquilo que possa ver e ouvir no exercício de minha profissão e também fora dela, nas minhas relações com os homens, se for algo que não deva ser divulgado, calar-me-ei, considerando-o como segredo sagrado. Se mantiver este juramento e não rompê-lo, que me seja dado desfrutar o melhor da vida e da arte, considerado por todos e sempre honrado. No entanto, se me tornar transgressor e perjuro, que me suceda o contrário disso (apud REALE; ANTISERI, 2007, p. 126-127).

 

A teoria de Hipócrates foi revisitada no séc. II por Cláudio Galeno (129-199), representante da Escola de Cnido (Knidos) na Grécia Antiga (mas a região onde se situava a escola pertence, hoje, à Turquia). Galeno, no entanto, viveu a maior parte de sua vida na cidade dos Césares, onde exerceu sua medicina, sendo, por isso, considerado por muitos historiadores um médico romano. Foi em Roma que Galeno fez seus mais importantes estudos e publicou obras que influenciaram a medicina ocidental praticamente por toda a Idade Média, perdurando por mais de mil anos.

Esquema da medicina hipocrática (REALE; ANTISERI, 2007, p. 128)

Medicina no Oriente 

A cultura oriental trabalha com o conceito de saúde ainda hoje atrelada a existência de forças vitais responsáveis por atuar no corpo humano: Ying e Yang, na China ou Prana, na Índia. Na primeira temos a medicina tradicional chinesa e, na segunda, a medicina ayurvédica. Quando estas energias estão em desequilíbrio o resultado é a doença do corpo físico.

A medicina ayurveda/indiana, tem suas raízes nas tradições védicas e remontam às origens do hinduísmo há pelo menos cinco mil anos. Ayus, significa vida, e veda, conhecimento. Temos, assim, uma ciência ou conhecimento da vida, que tem suas bases na milenar doutrina hinduísta. É uma medicina que se fundamenta na existência de energias sutis na formação e funcionamento do corpo humano, cujos desequilíbrios levam-no a adoecer. O trabalho do médico ayurvédico consiste em identificar alterações no funcionamento do organismo humanos e lhes impor estímulos para que se reequilibrem. Os tratamentos propostos utilizam o emprego de medicamentos fitoterápicos, alimentação equilibrada, massagens, aplicações de metais e pedras (gemoterapia) e aromas medicinais. Podemos incluir também a prática do yoga e da meditação como recursos utilizados visando a manutenção saudável do equilíbrio da unidade mente-corpo.

A milenar medicina chinesa tem suas raízes nas antigas filosofias do taoísmo e do confucionismo. Huang Di, um dos lendários imperadores que reinou entre 2698 e 2599 a.C., é autor do célebre compêndio médico, conhecido como Cânone de Medicina do Imperador Amarelo (o Huangdi Neijing). Esse célebre tem como fundamento essencial a noção de que o mundo é movido por uma força especial, chamada chi, compreendida como uma energia que sustenta o universo e, consequentemente, a vida em todas as suas expressões. O Chi é uma energia responsável pelos ciclos da natureza, suas alternâncias e circula dentro do organismo humano através de canais chamados meridianos. O médico deve conhecer como se dá o fluxo do Chi no organismo a fim de procurar por possíveis obstáculos a sua livre circulação que resultam em desarmonias do corpo físico.

Medicina Moderna e Contemporânea

Uma nova paisagem paradigmática se descortinou à compreensão do homem moderno a partir dos trabalhos da física de Galileu Galilei, o racionalismo de filósofos como René Descartes (autor da obra Discurso sobre o método) e Leibniz, além dos filósofos empiristas como Francis Bacon, Jonh Locke e David Hume. Nasce a metodologia científica moderna, sob as bases da observação, da experimentação, do estrito uso da razão e alicerçada em uma cosmovisão mecanicista (o universo é entendido como uma máquina cujas engrenagens devem ser descobertas pela pesquisa científica).

Nesse novo cenário ergue-se a medicina científica. Da mesma maneira que o universo, o homem passou a se ver visto como uma máquina e para desvendar os segredos da saúde e da doença era preciso entender como essa máquina funciona e buscar em suas partes mínimas e nas relações entre elas a explicação última para seu funcionamento e, consequentemente, para seu adoecimento e subsequente tratamento.

A partir da segunda metade do século XVII e, sobretudo, o século XIX, serão especialmente relevantes para os avanços da medicina. Robert Hooke (1635-1703) descobriu, por volta de 1665, a presença de estruturas biológicas mínimas nos tecidos vivos, a qual chamou de célula. Publicando seus estudos no livro Micrographia, sua descoberta fez-se logo mundialmente conhecida e a célula tornou-se a unidade da vida. No século XVIII, o holandês comerciante de tecidos Antoni Van Leeuwenhoek aprimorou o uso do microscópio e pôde constatar, pela primeira vez, a existência de animálculos invisíveis a olho nu, como protozoários, bactérias e espermatozoides. No século XIX, na França, o médico Claude Bernard (1813-1878), com seus estudos na área da fisiologia, procurou explicar as forças que atuam no organismo como reações e interações físico-químicas e introduziu o método experimental na medicina científica ao utilizar animais em testes laboratoriais. Na Alemanha, em 1847, o médico e professor da Faculdade de Medicina de Berlin, Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821-1894), criou o oftalmoscópio, realizou estudos de termodinâmica, eletrodinamismo e movimentação de fluidos, reforçando a ideia das interações físico-químicas no organismo. Em 1872, Louis Pasteur trouxe a público seu famoso trabalho que atestava a existência dos microrganismos. A vida somente podia ser reproduzida a partir de outra vida, por meio de germes ou brotos provenientes de outros seres vivos e não de forma espontânea e constatou ainda que as enfermidades contagiosas eram, na verdade, transmitidas por microscópicos agentes biológicos: as bactérias.

Os exemplos são ainda maiores e, de modo geral, a nova medicina, baseada no então empirismo científico, buscou seus conhecimentos na análise do ser humano: para se conhecer a doença, seja orgânica ou psíquica, é agora necessário “desmontar” o homem em suas mínimas partes constituintes, onde se ocultariam as alterações responsáveis pelo seu adoecimento, sendo necessário a utilização de novo método, capaz de agir nesses menores locais, a fim de consertar e manter o indivíduo saudável.

Referências

JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Filosofia pagã antiga. Tradução de Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007.