HOLISMO E ESPIRITUALIDADE CRISTÃ (resenha crítica)

ALMEIDA JÚNIOR, Silvio L. Wolitz. Holismo e Espiritualidade Cristã. Dissertação (Mestrado em Teologia). Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010.

por Alexsandro M. Medeiros

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A dissertação de Silvio Luiz Júnior tem como escopo principal buscar uma relação entre a espiritualidade cristã e o paradigma Ecológico-Holístico. Um novo paradigma aliado ao princípio da espiritualidade cristã que possa fazer frente ao paradigma dominante racionalista de tipo mecanicista e reducionista, que contribui para a crise ecológica.

O velho paradigma que, para muitos, tem suas raízes na filosofia cartesiana e na física mecanicista que justifica o progresso como desenvolvimento econômico sem levar em consideração o esgotamento dos recursos naturais; impõe uma nítida separação entre sujeito e objeto, consciência e mundo, homem e natureza.

Nas últimas décadas, ocorreram transformações que atingiram todos os níveis da vida. A crise ecológica, social, e da civilização, a perplexidade diante dos complexos problemas da atualidade têm provocado a aproximação de diferentes áreas do conhecimento, procurando respostas, ações cooperativas, movimentos interdisciplinares. Nesta perspectiva, o paradigma ecológico-holístico emerge cada vez mais como uma nova forma de compreender o mundo, uma nova realidade científica e social (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 08).


De bases holísticas, o novo paradigma postula que o ser humano não pode ser explicado por suas distintas dimensões: física, psíquica, social etc. É necessário uma visão de conjunto, do todo indivisível, incluindo aí o ambiente ao nosso redor, o planeta Terra como um todo: “Cosmos, terra, vida e humanidade formam um todo” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 09).

E essa compreensão deve ser complementada a partir de uma perspectiva que englobe tanto a ciência quanto a religião. Uma relação de convergência e complementaridade. Um diálogo da religião “com as teorias científicas modernas na busca de respostas e de uma compreensão global da natureza, do homem e da experiência religiosa” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 09), devido a uma “[...] imperiosa exigência de se repensar nossa relação com o meio ambiente, com as manifestações da vida e o cosmo” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 09). E Silvio Luiz Júnior usa um pensamento de astronauta John Young, que em sua quinta viagem à Lua em 1972 afirmou:

Lá embaixo está a Terra, esse planeta branco-azul, belíssimo, resplandecente, nossa pátria humana. Desta perspectiva, não há nele brancos e negros, divisões entre leste e oeste, norte e sul. Todos formamos uma única Terra. Como uma bola de natal dependurada no fundo negro do universo. Temos um destino comum, devemos aprender a amar a terra como nossa casa comum. Somos cidadãos do mundo e não deste ou daquele país (apud ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 10).


E a espiritualidade cristã, a partir de alguns de seus pressupostos essenciais, como a concepção trinitária de Deus, sua visão cristocêntrica e eclesiológica com expressão comunitária e social, é chamada integrar-se com a ciência, com um objetivo comum: uma nova relação holística entre o homem e a natureza.

CAPÍTULO 1 – HOLISMO E ESPIRITUALIDADE HOLÍSTICA

No primeiro capítulo são apresentados os conceitos de paradigma (o velho paradigma mecanicista e o novo paradigma holístico). Bem como os aspectos científicos, culturais e éticos do Holismo.

A noção de paradigma é extraída da obra de Thomas Kuhn (A Estrutura das Revoluções Científicas) e engloba um conjunto de crenças, valores, técnicas e procedimentos que são compartilhados, neste caso específico, por uma comunidade científica. De tempos em tempos acontece rupturas, e um novo paradigma surge para substituir um paradigma vigente, como é o caso do novo paradigma Ecológico-Holístico.

Citando o físico Fritjof Capra, o autor argumenta como no século XVII o filósofo francês lançou as bases para um novo método científico, baseado em uma separação entre o espírito e a matéria, o sujeito que pensa (res cogitans) e o mundo material (res extensa) e que forneceria as bases depois para uma concepção racionalista-mecanicista-reducionista. Além de Descartes, Silvio Luiz Júnior cita também o filósofo inglês Francis Bacon, além do físico Sir. Isaac Newton.

Essa visão que atribui ao filósofo francês René Descartes a origem do paradigma mecanicista e reducionista pode ser perfeitamente ser questionado. De modo geral, critica-se o filósofo francês pela concepção de mundo dualista que está na base de seu pensamento, sem levar em consideração o contexto da obra e a razão que levou Descartes a dividir a realidade em duas substâncias distintas: o ser pensante e o ser material. Com efeito, o propósito de Descarte era, fundamentalmente, provar a existência e a realidade do espírito, em uma época de profundo ceticismo e de descrença nas verdades reveladas por meio da religião. Descartes procurou encontrar argumentos racionais que não pudessem, de forma alguma, serem postos em dúvida, sobre a realidade do espírito. De onde resulta a divisão da realidade em três substâncias: a substância pensante (res cogitans), a substância material (res extensa) e o ser divino (res infinita). Por isso acredito que é bastante injusto atribuir ao filósofo francês a origem, por assim dizer, de todos os “males” modernos oriundo do velho paradigma, sem levar em consideração o contexto das ideias cartesianas e qual era o seu verdadeiro propósito.

Atribuir ao filósofo francês a origem dos problemas oriundo da visão reducionista e mecanicista do mundo é o mesmo que atribuir a Jesus a causa das “guerras santas” e lutas travadas séculos após séculos em nome da religião. Embora o Cristo tenha dito “eu não vim trazer a paz, mas a espada”, o sentido figurado dessa afirmação deve ser levado em consideração e bem tolo seria aquele que pretendesse defender a ideia de que Jesus defendeu a guerra e suas pregações. Acredito que o mesmo caso se aplica ao filósofo francês que tinha um objetivo bem diverso daquele pretendido por seus críticos e que veem em sua teoria os fundamentos do velho paradigma moderno.

De modo geral, “o paradigma moderno, como grande poder explicativo, sustentou o marcante progresso tecnológico, com ênfase no racionalismo empírico e no controle da natureza, expressando a atitude geral do homem frente ao mundo” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 16).

O grande problema são as consequências que este paradigma deixou de herança para a humanidade: crise ambiental, aquecimento global, esgotamentos dos recursos naturais, mudanças climáticas, ecossistemas ameaçados.

A crise não está somente nos acontecimentos que levam a destruição da natureza, ela está também no fato de não haver possibilidade alguma de resolver as problemáticas da nossa realidade baseado na lógica do desenvolvimento tomada como padrão para a maioria das nações do mundo e pela globalização, processo caracterizado pela competição totalmente desregrada (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 18).


Esse paradigma vigente precisa, portanto, ser questionado. O que traz como consequências um modelo econômico desordenado, baseado nas forças do mercado e do capital. Uma outra racionalidade se faz necessária na era globalizada que oriente a humanidade para novos rumos. E ao perceber os limites e consequências desse tipo de racionalidade emerge a discussão em torno de um novo paradigma: o paradigma Holístico.

Em contraste com a visão mecanicista cartesiana-newtoniana da vida, a visão de mundo que está surgindo a partir da física moderna pode caracterizar-se por palavras como orgânica, holística, e ecológica. Pode ser também denominada de sistêmica, no sentido da teoria dos sistemas. O universo deixa de ser visto como uma máquina, composta de uma infinidade de objetos, para ser descrito como um todo dinâmico, indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um processo cósmico (CAPRA, 2006, p. 71 apud ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 23)


A emergência deste novo paradigma exige uma visão de totalidade não fragmentada, de interdependência orgânica que compreende o todo nas partes e as partes no todo, que vislumbra o próprio planeta Terra como um organismo e todos os seres vivos como partes integrantes deste Todo (e não apenas o homem). O autor cita neste aspecto a teoria de Gaia:

Proposta por James Lovelock, nome dado em referência à deusa grega suprema da Terra – Gaia. A hipótese Gaia descreve a Terra como um único organismo vivo. Lovelock e outros pesquisadores que apóiam a ideia atualmente consideram-a como uma teoria científica não apenas uma hipótese (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 29, nota de rodapé 59).


E é neste cenário da emergência do novo, da necessidade de mudança e transformação radical das formas de ser e agir, que a espiritualidade desempenha também um papel fundamental. A partir da ideia de teólogos brasileiros como Frei Beto e Leonardo Boff, e teólogos estrangeiros como Karl Rahner e Thomas Berry, o autor da dissertação discute temas procurando estabelecer uma ligação entre a espiritualidade e o novo paradigma holístico. Uma espiritualidade não apenas intelectual, mas fundada na prática do amor e de abertura para o transcendente, que se coloca em sintonia e harmonia com o mistério profundo da natureza, a partir do sentimento de filiação com o arquétipo da Terra como a grande mãe, seja ela Gaia (deusa da Terra para os gredos) ou Pachamana (a Mãe Terra para os Incas). Uma espiritualidade que se funda não apenas na experiência mística com Deus, mas na fusão orgânica com a Terra ou em outras palavras: “a experiência de Deus como Mãe infinita e cheia de misericórdia, a qual, somada à experiência do Pai de infinita justiça e bondade, fará despontar o alvorecer de uma experiência mais integradora e global de Deus” (BOFF, 2003, p. 59 apud ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 33).

Vamos encerrar a análise deste capítulo fazendo referência a uma ideia que não está presente na dissertação em questão, mas que acredito ser igualmente relevante para a discussão a que se propor o autor. Não consiste portanto de uma crítica, mas de uma lacuna que deve ser preenchida.

Trata-se da referência aos teóricos da Escola de Frankfurt a partir da crítica da razão instrumental, sobretudo a partir de Adorno e Horkheimer, com a publicação da obra Dialética do Esclarecimento, onde ambos fazem uma crítica contumaz ao conceito de razão instrumental, que é um tipo de racionalidade baseada no domínio da técnica e do homem sobre a natureza: o uso instrumental da razão. A razão iluminista que se erguera como potencial libertador se subordinou à técnica e a um processo de dominação hostil da natureza se afastando desta forma do seu projeto originário. O sonho de uma humanidade emancipada e “iluminada” transformou-se em uma nova barbárie e a crítica de Adorno e Horkhemer intenta examinar o conceito de racionalidade que está na base da moderna cultura industrial e procura investigar nesse conceito as suas falhas, ou os vícios da racionalidade instrumental.

CAPÍTULO 2 – ESPECIFICIDADE DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

O segundo capítulo desenvolve alguns conceitos da espiritualidade cristã com vistas a desenhar o esboço da espiritualidade holística. O autor parte do princípio de que há um aumento na busca pelo desenvolvimento da espiritualidade, decorrente, em parte, do fracasso de modelo civilizatório que caracteriza a nossa época.

Por isso cresce a busca e o despertar para algo que dê sentido às suas vidas. As inquietações da crise de sentido, diante do anseio de paz de espírito e de libertação dos sentimentos de medo e ansiedade75 e da sensação de vazio interior, estão conduzindo homens e mulheres a procurar respostas nas diversas formas de expressão religiosa, em filosofias e correntes de misticismo e esoterismo. O ser humano procura o Absoluto e manifesta motivação e movimento de quem escolhe percorrer um caminho espiritual (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 35).


Naturalmente no caso da religião cristã, a ideia de espiritualidade se baseia em princípios como o dogma da Santíssima Trindade, nos escritos revelados através das Sagradas Escrituras (Antigo e Novo Testamento) e sobretudo na mensagem da boa nova trazida por Jesus de Nazaré (cristologia católica).

Citando várias passagens bíblicas o autor procura demonstrar como as verdades reveladas desde o Antigo Testamento configuram como um princípio basilar para a vida do cristão, com ênfase no decálogo e na ideia de “pecado” e “lei”, sendo o pecado a transgressão da lei, cuja expressão divina são os 10 mandamentos. Mas uma noção de pecado que traz implícita uma concepção de “pecado social”, ou seja, aquele que transgredir a lei promove a injustiça contra o seu próximo.

Já o elemento fundamental do Novo Testamento é a paternidade divina trazida na mensagem de seu filho unigênito Jesus de Nazaré. É através do Cristo que o ser humano se abre para a relação e conhecimento do Pai, com ênfase no amor a Deus e no amor ao próximo (os dois maiores mandamentos).

[...] no quarto evangelho, o mandamento único e específico do Cristo é de nos amarmos mutuamente (Jo 13,34) como Cristo nos amou, não há como dizer que amamos o Filho se não nos amarmos reciprocamente, com amor gratuito até a morte. O amor é então responsável por fazer circular a própria vida trinitária no espírito do crente. Além de sua dimensão individual o amor apresenta um aspecto eclesial, aludida na figura da videira e dos ramos (Jo15, 4-7) (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 45).


O que há de fundamental neste capítulo é entender como a concepção bíblica de ser humano abrange o ser integral, ou seja, corpo, alma e espírito. Através do corpo (criação de Deus) o ser humano está em íntima relação com a natureza e com seus semelhantes. Através do espírito é força que se assemelha ao Criador. “Então Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente (Gn 2,7)” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 47). E em Cristo temos a corporificação, ou mais exatamente a encarnação, do Verbo divino: e Deus se fez carne, e habitou entre nós e assim como Deus se fez presente na história, a experiência espiritual deve acontecer na história e não ser alheio ou indiferente aos sofrimentos humanos.

Merece destaque também o que o autor chama de “cristologia católica”: um modo de viver onde Cristo seja o maior e mais importante exemplo a ser seguido. Na verdade o autor coloca o Cristo como o único exemplo a ser seguido, “o único modelo de vida humana e cristã” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 50), o que nos permite fazer mais uma análise crítica, já que esta ideia de “único exemplo e modelo” confronta com a ideia de espiritualidade que respeita e considera todas as religiões em sua importância e significado histórico e legítimo de relação com o divino. Não discordo do fato de que Cristo possa ser considerado o maior exemplo que temos para ser seguido, e de que devemos procurar nos identificarmos com suas atitudes e valores, apenas o fato de considerá-lo como único modelo de vida cristã, contrastando com a própria ideia ressaltada pelo autor de um “cristo ecumênico” que “derrubou as muralhas” do separatismo. Mas, de modo geral,

A prática de Jesus nos ensina a ter a fraternidade e o amor como parâmetro do relacionamento com as outras pessoas, ensina a testemunhar a luta pela verdade e justiça, atribui sentido ao amor pelos inimigos e a opção pelos pobres e sofredores. Sua prática nos ensina o valor da pobreza e da humildade, a sermos fiéis nos compromissos humanos e cristãos e a valorizar os momentos de “carregar a cruz” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 53).


E se a vida do cristão é procurar seguir o exemplo do seu mestre maior, então ser cristão significa também lutar por aquilo que seu mestre lutou: o Reino de Deus, com sua justiça, amor, fraternidade, paz, reconciliação, perdão, liberdade. Tal é a missão do cristão, a grande missão, fazer com que a realidade do Reino de Deus não seja uma realidade desligada das lutas terrenas. A vida do cristão deve ser iluminada pela busca da realização dos valores do Reino de Deus no mundo terreno, no campo das lutas políticas e sociais, de libertação da pobreza e da miséria.

Neste capítulo, que é o maior da dissertação, o autor faz a opção de apresentar vários aspectos do fundamento da espiritualidade cristã, a partir da concepção do dogma da Santíssima Trindade, da ideia de Reino de Deus, dos ensinamentos do Cristo, mas nem sempre é fácil perceber como cada um destes aspectos se conecta com a ideia do novo paradigma Ecológico-Holístico. Na verdade muitos dos aspectos apresentados parecem não ter de fato nenhuma conexão com o novo paradigma sendo preciso, portanto, esperar pelo terceiro capítulo para encontrar esse ponto de ligação entre o Holismo e a Espiritualidade Cristã.

CAPÍTULO 3 – ESPIRITUALIDADE CRISTÃ E HOLISMO – CONFRONTO, SIMILARIDADES E DIFERENÇAS

O terceiro capítulo busca as convergências entre o Holismo e a Espiritualidade Cristã. Diante de todos os desafios que o século XX e XXI impõe como o combate a fome e a miséria, a luta contras as injustiças sociais, a busca pela paz, há que se ressaltar também o reconhecimento dos problemas ambientais e uma vida ecologicamente mais equilibrada e em harmonia com a mãe-Terra. Este é um desafio que se impõe também para a espiritualidade cristã. E o autor busca refletir sobre este desafio a partir de pelo menos três aspectos que são sub capítulos deste tópico: inculturação e encarnação; holismo trinitário; e espiritualidade escatológica da criação.

Sobre o primeiro ponto o autor ressalta como o cristianismo se baseia na capacidade de comunicar-se com diferentes culturas e como o Evangelho do Cristo deve renovar permanentemente a vida e a cultura humanas. Ressalta ainda o processo de inculturação do Evangelho da Boa Nova que é personificado na encarnação do Verbo divino: o Cristo Jesus. Sendo, portanto, a revelação de Deus algo que se faz no seio da cultura humana e que a salvação de Deus é para a condição humana que é uma condição cultural. A cultura influencia e é influenciada, diretamente, pela espiritualidade cristã e esta deve estar fortemente impregnada pela cultura. Com efeito,

Quando os valores espirituais coincidem com os valores de determinada cultura tais valores são fortalecidos e privilegiados e tem por resultado um modelo de espiritualidade. Em contrapartida os desvalores e a ausência de certos valores em uma cultura, podem enfraquecer os valores correlatos na espiritualidade. Essa debilidade terá reflexos na doutrina, no testemunho da fé, na prática espiritual e na encarnação característica da espiritualidade. A fé e a espiritualidade purificam os valores da cultura (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 81-82).


O ponto chave aqui é como a busca por uma integração entre ciência e espiritualidade deve promover uma mudança de racionalidade e a emergência de novos valores culturais a partir da compaixão e do cuidado com tudo o que vive e existe em nosso planeta e, portanto, de uma consciência ecológica, a partir da compreensão de que tudo está interligado à tudo: “existe uma rede de relações que compõem a natureza e a própria vida” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 84). A compreensão de uma cultura que não pode ser reduzida ao desenvolvimento tecnológico e científico, que elege como padrão um modelo de sociedade associado ao crescimento econômico sem levar em consideração um modelo de desenvolvimento e sustentabilidade ambiental. Uma compreensão da cultura com base no que o autor chama de “ecoespiritualidade”, ou seja, na relação entre espírito e meio ambiente, a partir do paradigma Ecológico-Holístico e do respeito à vida em todas as suas formas.

O Cristianismo e sua espiritualidade, na missão de discipulado missionário e evangelizador, deve se relacionar com os grupos que defendem a emergência do holismo, da nova racionalidade econômica e científica, enfim da espiritualidade holística como colaborador no fortalecimento de sua identidade e crente no seu futuro específico (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 86).


A emergência do novo paradigma convida, portanto, o cristão a uma renovada postura espiritual que envolve a contemplação da natureza e o cuidado com a biodiversidade. Uma postura que deve ser complementada com a comunhão com o Deus-Trino, que nos possibilite viver a experiência de ser uma grande comunidade humana, como ressalta o autor, e ao que poderia ser acrescentado: viver a experiência de ser uma grande comunidade humana e não humana, já que engloba a vida de todos os seres vivos no planeta, algo como que uma visão de mundo fransciscana, se considerarmos a forma como o Santo Francisco de Assis nutria um profundo amor pelos animais e pela natureza.

O autor vai buscar uma imagem profundamente ecológica do Planeta a partir da figura de Francisco de Assis, mencionando como o apóstolo da pobreza louvou a Deus e cantou a generosidade da Mãe-Terra em seu Cântico do Sol. A propósito, a epígrafe da dissertação é se chama “Cântico das criaturas”, inspirada precisamente no Cântico do poverello de Assis.

O autor usa ainda como referência o teólogo Leonardo Boff e Teilhard de Cardin, a partir do conceito de panenteísmo, ou seja, a ideia de que tudo está em Deus. Uma concepção teológica imanentista mas que não se confunde com o panteísmo, que significa que tudo “é” Deus. Deus em tudo e tudo em Deus. Com efeito, o radical pan significa “tudo” e teísmo se refere à divindade: theos em grego significa Deus; e “en” = em (BOFF, 2008 apud ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 91).

A cosmologia ecológica enfatiza a imanência de Deus. Ele esta misturado com todos os processos, sem se perder dentro deles. Deus não é apresentado apenas como o Criador, mas como o Espírito do mundo. O advento consciente de Deus está ligado à realidade quântica, ao processo evolucionário cósmico, ao caráter processual e escatológico da natureza, a sacralização de todas as coisas e o panenteísmo. Deus está presente no cosmos e o cosmos em Deus (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 91).


Uma concepção teológica da divindade que ao mesmo tempo que afirma sua unicidade e diferenciação com o mundo, sustenta a diversidade das três pessoas divinas sem com isso “multiplicar” a Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Fazendo com que o panenteísmo seja um caminho para a trindade.

O Universo é um desdobramento da diversidade e da união presentes na Trindade. O mundo que conhecemos é complexo, diverso, entrelaçado, uno, interconectado, uma rede fantástica de interrelações, um espelho da Trindade. Deus irrompe em cada ecossistema em cada ser. Sobretudo se sacramenta na vida de cada pessoa humana, no ser humano encontra a inteligência, a vontade e a sensibilidade como concretizações da nossa única e integral humanidade. Constituímos uma só vida e comunhão realizadas distintamente, sendo unos e múltiplos em analogia com o mistério do “Deus tri-uno” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 93).


Mergulhados nessa essência de espiritualidade, o cristão é chamado a amar o universo e suas criaturas “pois elas são a glória gratuita de Deus aos nossos olhos” (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 95).

Por fim o autor considera como a espiritualidade cristã é escatológica, ou seja, aguarda a vinda do Reino de Deus e a consequente renovação da criação e de toda a humanidade: uma nova Jerusalém, uma nova humanidade. Uma escatologia cristã que afirma a esperança no futuro, de uma esperança que não deve ser passiva, mas ativa como instrumento da busca pela paz e pelas mudanças nos campos sociais, político, econômico e ecológico.

A nova racionalidade ecológica é atuante, engajada na construção de um caminho para transformação, da mesma forma a espiritualidade cristã deve atuar através do horizonte escatológico na realidade concreta, construindo desde já “os novos céus e a nova terra”, com os olhos voltados para a Páscoa de Cristo (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 97).


Uma escatologia que se fundamenta na ideia de uma vida que só tem propósito ou sentido na preparação daquela outra vida que virá com o Reino de Deus e que por isso não pode ser apenas uma observação passiva do que acontece com a humanidade. Mas deve antes ser uma preparação: preparação do cristão para a vida no Reino do Senhor. Ninguém deve olhar para o futuro passivamente. Antes deve se tornar um dos artífices desse futuro. Participar da construção do Reino de Deus e da civilização do amor, em harmonia com a Natureza, sem a qual nenhum Reino e nenhuma civilização poderão sobreviver e onde a Terra se converterá, enfim, na morada do paraíso e dos bem-aventurados.

Por fim, à guisa de conclusão, é preciso destacar que o cristão não pode permanecer indiferente aos problemas que afetam a toda humanidade, direta ou indiretamente, com os impactos ambientais causados pela ação humana. Diante da possibilidade de ameaça de toda forma de vida no planeta, é preciso buscar uma renovação espiritual que inclua em suas bases a emergência do paradigma Ecológico-Holístico que possibilite uma compreensão da realidade de forma integrada entre a consciência e o mundo, o homem e a natureza, os indivíduos e a coletividade. Uma compreensão complexa, sistêmica, orgânica e espiritual da vida. Uma espiritualidade que gera encantamento diante das maravilhas da natureza e do universo e que se percebe como parte integrante deste sistema, comprometida com as lutas sociais e ambientais que atende o chamado divido para a construção do Reino de Deus e da civilização do amor sobre a Terra.

[...] todos aqueles que se identificam com os valores evangélicos são convidados a promover e proteger a vida, a envolver-se nos movimentos políticos, nas organizações não-governamentais, nas instituições e entidades, nos diversos projetos que estão comprometidos com a possibilidade de mudança e principalmente com a renovação da sua percepção e consciência (ALMEIDA JÚNIOR, 2010, p. 105).