BERGSON E OS FENÔMENOS PSÍQUICOS E PARANORMAIS
BERGSON E OS FENÔMENOS PSÍQUICOS E PARANORMAIS
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em dez. 2024
No final da segunda metade do século XIX uma série de fenômenos inexplicados começou a chamar a atenção de diferentes estudiosos que, para compreender tais fenômenos, começaram a criar instituições destinadas a esse objetivo.
Em 1882 foi criada, em Londres, a Society for Psychical Researche (Sociedade de pesquisa psíquica), notadamente por Henry Sidgwick, William Barret, Frederic Myers e Edmund Gurney. Dois anos depois, em 1884 foi criada uma ramificação americana, a American Society for Psychical Research, por inciativa do famoso psicólogo norte americano William James. Em 1900, na França, coube principalmente a Charles Richet, prêmio Nobel de fisiologia ou medicina de 1913 e autor da obra Traité de métapsychique de 1922, criar o Institut Psychique International vindo a ser chamado depois de Institut général psychologique. Tais sociedades e institutos tinham como objetivo investigar os inúmeros fenômenos designados por termos como paranormais, psíquicos e espíritas (aparições, clarividência, premonições, etc), procurando realizar tal investigação baseando-se em métodos experimentais e padronizados. Estes fenômenos foram estudados pela pesquisa psíquica desde as últimas décadas do século XIX, sendo que “os relatos sobre tais fenômenos e a investigação crítica e científica acerca dos mesmos eram do conhecimento de Bergson, ao ponto de o filósofo considerar seriamente a possibilidade de sua ocorrência como parte integrante do mundo natural” (Praciano, 2024, p. 18). Bergson se ocupou principalmente da telepatia e da clarividência, sendo a primeira a capacidade de duas mentes poderem se comunicar através de uma percepção extrassensorial (fenômeno que envolve duas mentes), enquanto que a clarividência é a capacidade de uma mente individual acessar informações sobre eventos distantes ou escondidos sem a aparente intermediação de outras mentes (fenômeno que envolve uma única mente e o mundo circundante).
O contato de Bergson com fenômenos psíquicos, segundo Evrard (2021), aconteceu quando ele era professor de filosofia no Clermont-Ferrand e tinha então 27 anos:
Bergson participou dos experimentos realizados na casa do doutor Moutin com sujeitos em estado de hipnose. Ele publicou em 1886, na Revue philosophique de la France et de l’étranger (Bergson, 1886a), os resultados destes experimentos sobre a hiperestesia (capacidades perceptivas exarcebadas) e a simulação inconsciente, o que lhe valeu uma repreensão da Inspeção geral do ensino superior (Evrard, 2021, p. 237, tradução nossa).
Em 1901, Bergson fez parte de um grupo de estudos dos fenômenos psíquicos do Institut Général de Psychologie (IGP). Neste Instituto, Bergson proferiu a conferência, Le rêve (O Sonho), que consta na obra L’Énergie Spirituelle (Bergson, 1922). Nesta conferência, de 1901, Bergson “propõe que a exploração dos fenômenos do inconsciente, como tarefa central da psicologia do futuro, esteja vinculada ao estudo dos fenômenos estudados pela pesquisa psíquica” (Praciano, 2024, p. 16).
Sua conferência sobre “O sonho” de 16 de março de 1901 aponta, no fim de sua exposição, para o horizonte das pesquisas psíquicas, uma vez que chama a psicologia para dirigir seus esforços para o estudo do sono profundo para “examinar estes fenômenos mais misteriosos relacionados à pesquisa psíquica”. Na versão inicial do texto (publicado na Revue scientifique, dirigida por Richet e depois em Mélanges) transparece um entusiasmo que será ligeiramente atenuado na versão publicada em L’Energie spirituelle (Evrard, 2021, p. 240, tradução nossa).
Entre os anos de 1905 e 1906, Bergson foi convidado “pelo Institut Général de Psychologie (junto com outros nomes de peso com Pierre e Marie Curie) para examinar o caso da famosa médium Eusápia Paladino” (Rochamonte, 2016, p. 129). Ele não foi apenas um observador, mas participou ativamente do controle experimental do caso, embora tenha participado apenas de seis sessões:
Ele não assistiu senão a seis sessões, mas teve a chance de observar toda a gama dos alegados fenômenos, e saiu perplexo, dividido, convencido ao mesmo tempo de que a médium às vezes havia tentado trapacear, e que algumas de suas manifestações eram de uma natureza tão extraordinária que elas desafiavam toda explicação racional (Méheust, 1999, 242 apud Evrard, 2021, p. 241, tradução nossa).
Embora sempre prudente em suas conclusões sobre o assunto, não negando a possibilidade de sua existência e afirmando com cautela suas causas, Bergson continuou a alimentar seu interesse pelo estudo dos fenômenos psíquicos e paranormais (principalmente a telepatia e a clarividência), vindo a se tornar presidente da Society for Psychical Researche entre 1913 e 1914. Bergson proferiu um discurso de posse na Sociedade de Pesquisa Psíquica intitulado Fantôme de vivants et Recherches psychiques (Fantasma de vivos e pesquisas psíquicas).
Este discurso, que aborda o fenômeno da telepatia, consta como capítulo de livro da obra L’Énergie Spirituelle (Bergson, 1922). “Nessa conferência, Bergson se diz orgulhoso por ter sido eleito presidente dessa sociedade, confessa sua ‘ardente curiosidade’ em relação aos trabalhos ali desenvolvidos e elogia a coragem com que seus membros levaram adiante suas pesquisas” (Rochamonte, 2016, p. 127). O filósofo francês declara seu interesse e curiosidade sobre as chamadas investigações da “pesquisa psíquica” e critica os preconceitos que são endereçados contra essas investigações e seu avanço. Bergson não só admite a possibilidade da telepatia como vê nela um fenômeno natural, da mesma forma que os fenômenos físicos e biológicos, assim são os fenômenos psíquicos. Desta forma, o fenômeno da telepatia deve ser passível de um estudo empírico como qualquer outro fenômeno natural.
Finalmente temos o livro Matéria e Memória, de 1896. Embora este livro não trate diretamente da pesquisa psíquica, algumas de suas ideias contribuem para o estudo da questão da telepatia e até da sobrevivência do espírito após a morte do corpo. “A teoria bergsoniana das relações do espírito e do corpo permite legitimar as pesquisas psíquicas, criticando a tese psicofisiológica segundo o qual a percepção seria produzida pelo sistema nervoso” (Evrard, 2021, p. 240, tradução nossa). E mais adiante: “Esta teoria mostra assim que uma extensão das faculdades de perceber é possível, sem extensão concomitante da máquina corporal” (Madelrieux et al. 2009, 288 apud Evrard, 2021, p. 240, tradução nossa).
O primeiro estudo de Bergson em torno da telepatia (transmissão de pensamento) pode ser visto a partir da publicação do artigo “De la simulation inconsciente dans l’état hypnotisme”, publicado em 1886, na Revue Philosophique de la France et de l’étranger.
Trata-se de um escrito, no estilo de relatório, urdido com base em um experimento conduzido pelo doutor Moutin, do qual o próprio Bergson participara ativamente, tendo ele mesmo organizado e integrado a experiência (Bergson, 1886a, p. 525-531). O objetivo dessa experiência consistia em averiguar a validade da tese, proposta pelos pesquisadores psíquicos, da existência de “sugestão mental” ou telepatia durante o estado de transe hipnótico, no qual o sujeito hipnotizado seria supostamente capaz de “perceber”, sem a intervenção dos sentidos, o que se passava na mente do hipnotizador (Praciano, 2024, p. 31).
Por não ter conseguido atestar decisivamente a presença do fenômeno da telepatia, Bergson o substituiu pela hipótese de uma hiperestesia sensorial inconsciente, sugerindo haver no estado hipnótico uma intensificação excepcional da visão de tal forma que ela seria capaz de atingir imagens extremamente diminutas. “Desta feita, pode-se dizer que o seu artigo limitou-se a constatar que, nos experimentos ali realizados, nada foi encontrado de positivo que indicasse, de maneira inequívoca, a existência de uma percepção extrassensorial” (Praciano, 2024, p. 33).
Mas foi com a publicação de Fantôme de vivants et Recherches psychiques que o tema da telepatia passou a ser considerado de forma mais direta por Bergson.
A posição de Bergson a respeito da telepatia pode ser vista como uma consequência natural da sua concepção sobre a relação entre a consciência e o corpo. Para muitos cientistas, de índole materialista, os estados mentais são equivalentes aos movimentos cerebrais, não havendo, portanto, espaço para que a consciência possa atuar a não ser nos limites do cérebro e considerar a consciência com sendo uma função da atividade do corpo, o que reduz a percepção tão somente a uma espécie de produto dos mecanismos sensório-motores: “em última instância, a consciência não passaria de um subproduto daqueles movimentos” (Praciano, 2024, p. 68). Atendo-se, portanto, ao fato cerebral e desconsiderando a possibilidade de que os fatos psíquicos possam sem medidos e submetidos a um exato controle laboratorial, há cientistas que simplesmente rejeitam a possibilidade de determinados fenômenos psíquicos como a telepatia, opondo-se, em alguns casos, radicalmente à pesquisa psíquica. Por outro lado, Bergson considera que a vida mental extrapola os limites vida cerebral.
Em contraposição à tese materialista do espírito, Bergson entende que o papel do cérebro e do sistema nervoso em geral não consiste em produzir e nem em traduzir de modo equivalente as percepções conscientes, servindo antes para limitar a percepção ao domínio da ação, e, assim, selecionar as imagens que entrarão em nossa consciência (Praciano, 2024, p. 68).
Eis porque, com razão, Durant (1925, p. 7, tradução nossa) chama Bergson de “o Davi destinado a matar o Golias do materialismo”.
O corpo atuaria então como um redutor das percepções, limitando a percepção consciente. A tese bergsoniana é que a percepção pode estender-se para além das restrições sensório-motoras e, desta forma, a percepção além do corpo pode ser uma possibilidade teoricamente justificada. A discussão sobre se a mente é apenas um produto cerebral ou se ela “ultrapassa” os limites do corpo também é tema da conferência L’âme et le corps (A alma e o corpo), de 1912, e que consta como capítulo 2 da obra L’énergie spirituelle (Bergson, 1967)
Constata-se, portanto, o reconhecimento de que para além das interações sensoriais, podem existir interações extrassensoriais entre as mentes, pois a consciência pode transcender as interações locais e sensoriais.
Bergson entrevê uma interação extraespacial entre as consciências, permitindo assim uma explicação para os fenômenos da telepatia, e isto em razão de a atividade psíquica chegar a transbordar as limitações usuais que encerram o corpo numa determinada localidade espacial, a saber, aquela em que ocorrem as trocas sensoriais (Praciano, 2024, p. 73).
O intercâmbio entre duas mentes (que é o que ocorre na telepatia) não estaria condicionado pela mediação dos corpos ou pela troca de estímulos sensoriais entre eles. “Ao contrário, o que a telepatia sugere é a existência de uma faculdade ou capacidade latente da mente de obter informações sobre outras mentes a despeito da distância e, ao que tudo indica, para além da atividade sensório-motora” (Praciano, 2024, p. 73-74).
O intercâmbio e a interconectividade psíquica entre consciências não se limita ao espaço de interação local, já que não se limita aos corpos sendo, portanto, de natureza extraespacial. Por isso, duas consciências são capazes de manter uma com a outra uma comunicação extracorpórea ou extrassensorial. Temos aqui então duas consequências importantes. A primeira: “aponta para a existência de uma potencialidade latente à mente humana, capaz de estender o seu alcance para além da localidade espacial em que se encontra seu corpo” (Praciano, 2024, p. 75). Já a segunda consequência, indica a existência de um campo real, que Praciano (2024) designa como campo ou dimensão virtual, sendo que “a percepção que dele resulta será, pois, uma apercepção virtual” (Praciano, 2024, p. 76).
Por conseguinte, a comunicação extraespacial entre as consciências sugeriria a existência de uma dimensão virtual, aproximada mais à natureza do que Bergson considerava ser o tempo, do que ao espaço, pois nele estaria assegurada uma interconexão virtual entre as mentes, e, por que não dizer, entre as mentes e todos os demais processos, fluxos ou eventos que lhes sejam contemporâneos (Praciano, 2024, p. 75).
A posição de Bergson a respeito da telepatia, entretanto, continuou sendo cautelosa. Somente a pesquisa científica poderia afirmar ou negar a realidade dos fenômenos psíquicos, investigando-os a fundo.
quando perguntado diretamente sobre o assunto, Bergson indicava ligeiramente uma postura ambígua. Do ponto de vista objetivo, parecia sustentar um ceticismo metodológico, porém entrecortado de uma convicção subjetiva, pelo menos até ao ponto onde o relato humano, investigado sem preconceitos e com criticidade por homens de ciência, fosse capaz de conduzir (Praciano, 2024, p. 40-41).
Referências
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Sugestões Bibliográficas sobre o Tema
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