A NOVELA PIMPA

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em fev. 2024


A novela Pimpa (tradução de Pixie) tem 11 capítulos e é destinada a crianças na faixa dos 9 aos 11 anos. A novela tem como manual: Em busca do sentido ou Em busca do significado; em inglês Looking for Meaning. “Esta obra tem continuidade na novela Nous que já aborda a questão da moral e decisões éticas, com manual especifico intitulado Decidindo o que fazer” (TORRES, 2020, p. 63). No manual de Pimpa, eis o que descreve a respeito da novela o próprio Lipman:

 

Pimpa é um programa de raciocínio, comunicação e expressão que se concentra no aperfeiçoamento das habilidades do pensar e que, através do questionamento dialógico cooperativo, proporciona as crianças a possibilidade de pensar filosoficamente sobre as ideias que lhes interessam. O propósito inicial de Pimpa talvez seja deixar os leitores intrigados e perplexos. E uma razão para isso é que desse modo se pode chegar o mais perto possível do estado de maravilhamento e perplexidade que é uma característica geral da infância (LIPMAN, 1995, p. 1 apud TORRES, 2020, p. 64).

 

Pimpa narra as aventuras de uma menina curiosa e desejosa de descobrir o significado das coisas e, por isso, o tema principal da novela é a linguagem. Mas a linguagem não é a única questão que pode ser abordada na novela pois, como vimos acima na citação do próprio Lipman, ela objetiva trabalhar as habilidades do pensar através do questionamento dialógico cooperativo. Caetano (2010, p. 66), por sua vez, destaca ainda a possibilidade de trabalhar temas como a verdade, dever, necessidades, regras de conduta e até questões filosóficas como a metafísica e a fenomenologia.

A menina Pimpa, protagonista da novela, é uma garota questionadora, preocupada em descobrir o significado das coisas e suas possíveis relações, indagando sobre diferentes questões como o seu próprio nome, criando um universo paralelo entre o mundo real e sua imaginação questionando inclusive se as coisas são reais ou se só existem no nosso pensamento. “De tudo um pouco ela [Pimpa] quer saber e entender. Suas relações com sua irmã, com sua família, consigo mesma. Seus segredos na escola, sua melhor amiga. Pimpa é curiosa, atenta e busca resposta para aquilo que a incomoda” (CAETANO, 2010, p. 71-72). “Pimpa se questiona se ‘espaço’, ‘tempo’, ‘família’, ‘mamífero’ e até mesmo o seu próprio nome são relações reais ou que só existem em nosso pensamento. Ou, dito de outra forma: qual a relação entre a linguagem e as coisas?” (DIAS, 2009, p. 209).

Logo no início da novela, Pimpa afirma que este não é o seu verdadeiro nome. “Este é o nome que ela mesma deu a si própria” (DINIS, 2011, p. 27). Começa então a aventura de Pimpa. Este momento, apesar de parecer irrelevante, é considerado já significativo, pois é a partir deste momento que nascem as dúvidas e as interrogações e constitui aquilo que podemos chamar de “o lançamento da isca”, como destaca Dinis (2011, p. 27): “Qual o seu verdadeiro nome? Porque é que não somos nós que damos os nomes a nós próprios? Os nomes fazem parte das pessoas ou são as pessoas que fazem parte dos nomes? Etc...”.

O enredo da novela se dá a partir da notícia de que os alunos da escola onde Pimpa estuda irão ao zoológico, “porém antes desta ida eles devem pensar em um animal do zoológico, o que o texto denomina ‘criatura misteriosa’, e não contar a ninguém. Após a ida eles redigirão uma história e nesta deve conter a sua criatura misteriosa” (CAETANO, 2010, p. 67). O professor de Pimpa, Seu Marcos, foi quem propôs a atividade. Uma história “sobre os animais que nós víssemos, ou sobre os lugares de onde os animais vieram, ou sobre como os animais foram capturados e trazidos ao zoológico” (LIPMAN, 1997, p. 4).

Na busca pelo “animal misterioso” vemos algumas questões aparecerem na novela, como por exemplo o fato de Pimpa sugerir para que um de seus colegas da escola, Tomás, pensasse em um unicórnio como “animal misterioso”. Um animal que na verdade não existe. Este ponto é relevante pois, como veremos mais adiante, há uma discussão na novela sobre o que pode e o que não pode ser considerado real. Se pessoas, coisas e relações podem ser consideradas reais. Já em uma conversa com seu pai, surge a ideia de que uma lagartixa poderia perder o rabo e no lugar do rabo nascer uma pata. Pimpa então tem um sonho: “uma lagartixa que tinha perdido o rabo, e que alguém tinha posto um pequeno pé no seu lugar. Mas o pé não sabia o que ele deveria ser quando crescesse. Ele poderia ser um pé ou um rabo, mas ele não sabia o quê. Ele estava tão confuso” (LIPMAN, 1997, p. 17).

Em meio a toda essa discussão vão surgindo outras questões que nos remetem ao tema central da novela que é a linguagem. Questões como a forma como os sujeitos estão ligados a verbos, como no exemplo: “cachorros latem” (LIPMAN, 1997, p. 30). Figuras de linguagem como a metáfora e a analogia: “Esta manhã foi tão comprida quanto o Amazonas” (LIPMAN, 1997, p. 40) e “Júnior come como um porco” (LIPMAN, 1997, p. 41). No caso das analogias, são dados exemplos de quando você compara duas coisas que têm as mesmas relações, mas partes diferentes: “Uma asa está relacionada a uma ave, do mesmo modo que uma barbatana está relacionada a um peixe” (LIPMAN, 1997, p. 37). “Uma lâmpada está para a luz [...] assim como o fogo está para o calor” (LIPMAN, 1997, p. 38).

Pimpa e seus colegas da escola debatem sobre diferentes relações que existem na linguagem. “Dentre os temas, um especialmente é enfrentado nesta história: o tema das relações. As coisas e os fatos são o que são, por si mesmos, ou são resultados de múltiplas relações? O que são relações?” (CAETANO, 2010, p. 68). É assim que na novela surgem questões sobre as relações na linguagem, como as relações de espaço: “perto de”, “longe de” (LIPMAN, 1997, p. 29); relações de tempo: “mais cedo que”, “mais tarde que” (LIPMAN, 1997, p. 29); relações entre números: um número é menor que outro, ou maior que outro; relações de lugar: “A cidade de Brasília está a oeste [à esquerda] da cidade de Salvador” (LIPMAN, 1997, p. 37).

O tema das relações também aparece no material de apoio do professor (que abordaremos mais adiante), como ressalta Caetano (2010, p. 69): “O material de apoio ao livro da Pimpa completa os capítulos e exercícios e planos de discussões que pretendem facilitar a construção destas relações existentes entre famílias, palavras, objetos, ideias etc.”.

De modo geral, conclui-se, no livro Pimpa, que “Palavras e coisas têm relações. A palavra ‘montanha’ tem relação com todas as montanhas que existem. E a palavra ‘China’ tem uma relação com o país China” (LIPMAN, 1997, p. 31), mas uma questão filosófica, implícita nessa discussão, é não apenas sobre as relações na linguagem, mas também saber se as relações são algo real. “Pessoas são reais e coisas são reais, mas relações só existem em nossas mentes” (LIPMAN, 1997, p. 23), como por exemplo: “a palavra ‘montanha’ e a ideia ‘montanha’ estão na nossa mente [...] E as montanhas reais estão no mundo” (LIPMAN, 1997, p. 33). Da mesma forma, poderíamos ainda questionar se tempo e espaço são apenas palavras, ou designam algo real?

Esta questão sobre a relação da linguagem com as coisas sempre foi objeto de discussão filosófica e está presente na história da filosofia desde Platão, na antiguidade. Também encontramos este debate na chamada querela dos universais da Idade Média. No diálogo Crátilo, de Platão, Sócrates é questionado por dois personagens, Crátilo e Hermógenes, que passa então a refletir sobre a justeza dos nomes: saber se os nomes são resultantes de pura convenção (hipótese de Hermógenes) ou se espelham a natureza das coisas (hipótese de Crátilo), em outras palavras, se a linguagem é um sistema de símbolos arbitrários ou se as palavras possuem uma relação intrínseca com as coisas que elas significam. Sócrates é então chamado para tentar resolver este impasse e, por isso, “o Crátilo nos oferece, senão as respostas, ao menos, um tratamento condigno à sua questão central – qual seja, a justeza dos nomes (orthotês onomatôn)” (MONTENEGRO, 2007, p. 368-369). Este tema é retomado na Idade Média através do chamado problema dos universais, que diz respeito a questão de saber se os universais (um conceito filosófico que diz que existe algo de universal que é partilhado por objetos particulares diferentes) são coisas reais (tal como encontramos em Platão, a chamada tese realista, defendida por filósofos medievais como Tomás de Aquino ou Duns Scotus) ou meramente palavras (a tese nominalista de Guilherme de Ockham do século XIV, por exemplo).

Naturalmente o objetivo da novela Pimpa não é abordar esta discussão com o mesmo alcance filosófico que nós encontramos na obra de Platão e dos filósofos da Idade Média. O mérito de Lipman reside, precisamente, no fato de trazer esta discussão para o universo infantil através de uma linguagem mais simples e que possa ser facilmente compreendida. Retomando a novela, vejamos o seguinte exemplo de um diálogo sobre “o que é real”:

 

– Mamãe, a Pimpa está certa quando ela diz que algo não é real  se não puder ser visto ou tocado?

– Acho que isso depende do que entendemos por “real” – disse mamãe.

– Manhê – disse eu [Pimpa] – por que é que você não pode só dizer quem de nós está certa e quem está errada?

Mamãe respondeu com uma voz meio engraçada como se estivesse pensando alto: – Será que é necessário que uma de vocês esteja certa e a outra errada? (LIPMAN, 1997, p. 24).

 

Para finalizar, vejamos como podemos facilmente relacionar o modo com que Lipman procura desenvolver o enredo da novela com o método socrático de fazer filosofia e também com a filosofia de Platão.

No primeiro caso, o método socrático, vemos na novela que Pimpa que e os seus colegas da escola precisam desenvolver uma história a partir de uma visita ao zoológico e que essa história deve conter um animal misterioso. Entretanto, ninguém deve revelar qual é esse animal misterioso e somente na escola, depois da visita, quando cada um contar sua história, é que ficarão sabendo sobre o animal misterioso.

Ao longo do livro, Pimpa já havia dito que não pretendia revelar qual seria a sua criatura misteriosa e no final do livro (LIPMAN, 1997, p. 84) ela termina, na verdade, deixando “no ar”, afirmando que não seria esse, mais um mistério? aguçando, assim, a capacidade reflexiva dos leitores e das crianças.

A relação que podemos estabelecer aqui com o método socrático é que, nos chamados diálogos socráticos de Platão, Sócrates, ao debater sobre um determinado assunto, nunca chega a uma conclusão definitiva, aguçando, da mesma forma, a capacidade reflexiva de seus interlocutores.

Já a relação com Platão encontramos em um dos últimos diálogos do livro. Um diálogo entre Bruno e Pimpa (na verdade, Pimpa aqui está sendo representada por um colega da escola, o Beto), que nos remete a Teoria das Ideias de Platão:

 

Bruno: Pimpa, de noite quando você olha para o céu, o que você vê?

Pimpa: Estrelas.

[...]

Bruno: [...] as luzes que nós vemos aos milhões, aos bilhões e aos trilhões no céu, - essas luzes que nós chamamos estrelas – naquela época não eram estrelas.

Pimpa: Bruno, você está inventando tudo isto. Se elas não eram estrelas, o que eram então?

Bruno: Ideias.

Pimpa: Ideias? Ideias de quê?

Bruno: Ideias de tudo. Ideias de frigideira, de trincos, de discos voadores, de números, de biscoitos recheados...

[...]

Pimpa: Elas eram realmente ideias? Ideias mesmo?

Bruno: Sim, e cada uma delas era perfeita. A Ideia de cadeira era a ideia perfeita de cadeira perfeita [...] E a ideia de bondade era a ideia perfeita da bondade perfeita (LIPMAN, 1997, p. 78-79).

Manual do Professor 

O manual do texto Pimpa contém numerosos planos de discussão filosófica, que tem como objetivo desenvolver as habilidades de raciocínio e investigação, como destaca Dinis (2011, p. 29-30), tais como: “a generalização, a classificação, a formação de conceitos, fazer comparações, dar contra-exemplos, usar analogias, fazer seriações e identificar contradições”.

De acordo com o material de apoio do professor, no capítulo cinco do livro Pimpa pode-se elaborar um plano de discussão ressaltando as seguintes questões que envolvem o tema das relações (que foi discutido mais acima):

 

1. Quando você pensa, você consegue pensar em coisas sem relações? Por exemplo, você consegue pensar na sua cama sem pensar na relação com o seu quarto ou com você? [...] 3. Você consegue não pensar ou em coisas ou em relações? Se conseguir, pode dar um exemplo? [...] 5. Pensar é uma questão de descobrir relações? (LIPMAN, 1997, p. 73 apud CAETANO, 2010, p. 69).

 

Dinis (2011, p. 30 e 31) destaca algumas questões que podem ser elaboradas a partir dos planos de discussão que constam no manual de apoio:

 

Plano de discussão: Histórias

1. Como é que as histórias de faz-de-conta costumam começar?

2. «Era uma vez» o que quer dizer?

[...]

8. Todas as histórias são verdadeiras, ou algumas são verdadeiras e outras inventadas?

9. Qual é a diferença entre as histórias verdadeiras e as histórias inventadas?

[...]

14. Pode haver histórias sobre pessoas que estão a sonhar?

15. Pode haver histórias sobre pessoas que estão a pensar?

 

Plano de discussão: Amigos.

1. As pessoas podem falar muito umas com as outras sem serem amigas?

[...]

5. Há algumas pessoas sem amigos?

6. Há pessoas que têm amigos embora não tenham quase mais nada?

7. Confias mais nos teus amigos do que em qualquer outra pessoa?

8. Há algumas pessoas em quem confias mais do que nos teus amigos?

9. Será possível ter medo de um amigo?

10. Qual a diferença entre amigos e a família?

Referências

CAETANO, Wagner Aparecido. Contribuições da Filosofia de Matthew Lipman para a Educação de Crianças: perspectiva dialética ou dialógica? Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Oeste Paulista-UNOESTE, Presidente Prudente-SP, 2010.

 

DIAS, Marinês Barbosa de Oliveira. Professores de Filosofia para Crianças – quem são eles? Uma análise critico diagnostica da construção da identidade profissional dos professores que trabalham com o Programa Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Campinas-SP, 2009.

 

DINIS, Carlos Manuel dos S. J. O que é a Filosofia para Crianças: Programa de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Faculdade de Artes e Letras, Universidade da Beira Interior, Covilhã-Portugal, 2011.

 

TORRES, Camila Raissa Santos. Educar para o pensar: o processo de ensino aprendizagem na perspectiva da comunidade de investigação de Matthew Lipman - uma experiência filosófica na UEB Professor Ronald da Silva Carvalho. 2020. 206f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional em Filosofia, Universidade Federal do Maranhão, São Luís-MA, 2020.

 

MONTENEGRO, Maria Aparecida de Paiva. Linguagem e Conhecimento no Crátilo de Platão. Kriterion, Belo Horizonte, nº 116, dez., 2007, p. 367-377. Acesso em: 02 fev. 2024.

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