RACIONALIDADE E SABER NA TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO (resenha)

Resenha da primeira parte do capítulo 1 da obra Teoria do agir comunicativo

HABERMAS, J. Teoria do Agir Comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Tradução Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. vol. 1

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em jun. 2016


A primeira parte do capítulo 1 de a Teoria do agir comunicativo trata de algumas das principais questões presentes na prática comunicativa, envolvendo situações de argumentação racional entre pelo menos dois participantes (falante e ouvinte). O leitor precisa estar atento, pois o capítulo apresenta citações extensas em inglês, cuja tradução se encontra apenas no final do livro.

Na teoria da ação comunicativa trata-se de uma tentativa de compreender as condições universais de produção de enunciados que visem ao entendimento que inclui uma teoria da racionalidade e uma teoria da linguagem (uma teoria pragmática da linguagem), ou seja, uma teoria da ação construída sobre o conceito pragmático-formal de agir comunicativo e uma teoria comunicacional da sociedade aplicável empiricamente.

Como se trata de um agir comunicativo que tem como fundamento uma razão comunicativa, o capítulo 1 da obra inicia com uma discussão sobre o conceito de racionalidade relacionada ao conceito de saber. Um saber que se estrutura em proposições e representações sob a forma de enunciados e, ao exteriorizar verbalmente uma proposição o saber se manifesta de maneira explícita. O emprego tanto do termo “racionalidade” quanto do termo “saber” tem por objetivo a noção de ação, de onde resulta a ideia de uma “ação comunicativa”.

Duas questões dão origem a discussão do capítulo: “O que significa, afinal, comportar-se ‘racionalmente’ em determinada situação? E, se suas exteriorizações podem ser consideradas ‘racionais’, o que isso significa?” (2012, p. 32).

Dito de outro modo, no caso em que “A” expressa uma opinião com intenção comunicativa, como interpretar a relação entre saber e racionalidade? Essa ação comunicativa exteriorizada, o que quer dizer? E o que acontece quando um ouvinte contesta a asserção proposta por “A” como não verdadeira?

As reflexões feitas até aqui sugerem que se atribua a racionalidade de uma exteriorização à sua disposição de sofrer críticas e à sua capacidade de se fundamentar [...] quanto melhor se puder fundamentar a pretensão de eficiência ou de verdade proposicional associada a elas, tanto mais racionais elas serão (HABERMAS, 2012, p. 34).


Habermas propõe então uma reflexão do conceito de racionalidade em sentido cognitivo, racionalidade cognitivo-instrumental, definido em referência ao emprego do saber descritivo. Mas ao adotar como ponto de partida o emprego comunicativo do saber proposicional em ações de fala, Habermas utiliza o conceito de racionalidade comunicativa, no qual os participantes da ação comunicativa superam suas concepções subjetivas para um modo de compreensão intersubjetivo. E nesse caso uma asserção só pode ser considerada racional se satisfizer a condição de um entendimento mútuo sobre alguma coisa do mundo entre pelo menos dois participantes, A e B, da ação comunicativa. Além disso, os sujeitos da ação comunicativa necessitam como condição necessária dessa ação de um conceito de mundo para que os mesmos possam chegar a um entendimento sobre o que acontece no mundo ou sobre o que se deve fazer nele, referindo-se a alguma coisa no mundo objetivo que seja, portanto, compartilhada. “O mundo só conquista objetividade ao tornar-se válido enquanto mundo único para uma comunidade de sujeitos capazes de agir e utilizar a linguagem” (2012, p. 40). É fundamental um saber compartilhado intersubjetivamente pela comunidade da ação comunicativa para que haja condições de validade do que está sendo falado.

A racionalidade de um falante tem a ver com sua capacidade de se expressar e a pretensão de validade que tem para seus enunciados e após analisar os conceitos de racionalidade divididos em “cognitiva-instrumental” e em “racionalidade comunicativa”, Habermas descarta rapidamente o primeiro e adota o segundo, justificando sua escolha pelo fato de sermos filiados a noções mais antigas do logos (logos como discurso da razão).

Por toda a discussão realizada até aqui fica claro a necessidade de se conceituar o que se entende por racionalidade. Uma racionalidade na prática comunicativa como formas diversas de argumentação e possibilidades do agir comunicativo por meio da reflexão. Habermas parte de algumas definições genéricas do conceito de racionalidade a fim de constituir as bases para uma teoria da ação comunicativa.

Denominamos racionais os sujeitos capazes de agir e falar que na medida do possível não se enganam quanto a fatos e relações entre meio e fim [...] Em contextos de comunicação, não chamamos de racional apenas quem faz uma asserção e é capaz de fundamentá-la diante de um crítico, tratando de apresentar as evidências devidas. Também é assim chamado de racional quem segue uma norma vigente e se mostra capaz de justificar seu agir em face de um crítico, tratando de explicar uma situação dada à luz de expectativas comportamentais legítimas (2012, p. 43-44).


Para Habermas, o uso da expressão racional supõe uma estreita relação entre racionalidade e saber. Um saber que se estrutura sob a forma de enunciados e uma ideia de racionalidade que tem menos a ver com a posse de conhecimento do que com a maneira pela qual os sujeitos capazes de falar e agir adquirem e empregam o saber.

Habermas propõe várias definições do que se pode entender por racionalidade: seja a partir da ideia de uma pessoa fazer uma interpretação à luz e padrões valorativos culturalmente aprendidos; seja quando ela é capaz de assumir uma postura reflexiva diante dos próprios padrões valorativos; ou ainda, quando uma pessoa se comporta com disposição positiva diante de um entendimento e reage de modo que reflita sobre as regras da linguagem.

Na prática comunicativa para a racionalidade ser exteriorizada é necessário que haja o reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validade criticável, ou seja, a racionalidade deve ser passível de ser fundamentada e criticada. Para se chegar a um comum acordo por via comunicativa, é preciso sustentar-se sobre razões: o consenso baseado no reconhecimento intersubjetivo. Além disso, a racionalidade está ligada “à capacidade de aprender a partir de fracassos, a partir da refutação de hipóteses e do insucesso de algumas intervenções” (2012, p. 49). “Exteriorizações racionais, em virtude da possibilidade de serem criticadas, são também passíveis de correção: podemos corrigir tentativas mal sucedidas quando logramos identificar os erros que nos tenham passado despercebido” (2012, p. 49).

O capítulo 1 se dedica também a proceder a uma análise sobre uma teoria da argumentação (um aspecto central da teoria do agir comunicativo) com pretensão de validade, capaz de explicar o conceito de racionalidade comunicativa.

Denominamos argumentação o tipo de discurso em que os participantes tematizam pretensões de validade controversas e procuram resolvê-las ou criticá-las com argumentos. Um argumento contém razões que se ligam sistematicamente à pretensão de validade de uma exteriorização problemática. A ‘força’ de um argumento mede-se, em dado contexto, pela acuidade das razões; esta se revela, entre outras coisas, pelo fato de o argumento convencer ou não os participantes de um discurso, ou seja, de o argumento ser capaz de motivá-los, ou não, a dar assentimento à respectiva pretensão de validade (2012, p. 48 – grifos no autor).


A teoria da argumentação (a partir da página 57 há o que Habermas propõe como sendo um excurso sobre a teoria da argumentação) não se refere a concatenações de raciocínio através de proposições como na lógica formal aristotélica, “mas a relações internas, inclusive não dedutivas, entre unidades pragmáticas (ações de fala) das quais os argumentos se compõem” (2012, p. 58). É possível até falar de uma “lógica informal” em oposição à “lógica formal”. Habermas aponta para os limites da lógica formal no que concerne a dar conta das situações de fala e de prática comunicativa, pois o conceito de verdade proposicional é muito estrito para dar conta de todas as coisas para as quais os participantes de uma argumentação reivindicam validade, em sentido lógico.

Algumas questões são problematizadas dentro da teoria da argumentação, com vistas a uma validade de exteriorização (2012, p. 60): 1) como é possível sustentar com boas razões as pretensões de validade que se tornaram problemáticas? 2) como criticar as razões? 3) o que torna um argumento mais forte ou mais fraco que outros e, portanto, as pretensões de validade?

Habermas distingue pelo menos três aspectos na fala argumentativa:

- uma reflexão direcionada e orientada para o entendimento;

- um tipo de procedimento e interação regulamentada, de maneira que os partícipes tematizam uma pretensão de validade e chequem, mediante razões, se tal pretensão defendida é válida, além de assumir um posicionamento hipotético que possa conduzir ao termo da argumentação.

- a argumentação pode produzir argumentos procedentes e convincentes, com o objetivo de resolver ou refutar pretensões de validade.


Habermas supõe que toda e qualquer teoria da argumentação deve apontar características gerais dos argumentos procedentes.

Os participantes de uma argumentação pretendem decidir, com base em razões que possam convencer, pretensões de validade. E citando Wolfgang Klein (2012, p. 64-71) oferece o seguinte exemplo: “a religião é prejudicial ao povo”. O que indica que essa ideia marxista-leninista é superior à compreensão do fenômeno religioso dado por Durkheim ou Weber? O que tem validade ou é questionável é relativo, sempre com referência a um contexto, pessoas e momentos.

Já no caso de se referir a multiplicidade de contexto de ações de fala em que pode haver argumentações Habermas cita St. Toulmin (2012, p. 71-82), autor de The Uses of Argument (os usos do argumento) e Human Understanding (entendimento humano) para falar de “campos sociais” ou “campos de argumentações”. Contextos de ações de fala podem ser: tribunais, reuniões de conselhos administrativos de empresas, seminários universitários, audiências parlamentares, entre outros. “Toulmin delineia cinco campos de argumentação representativos, a saber: direito, moral, ciência, administração e crítica de arte” (2012, p. 75). Contudo, “Toulmin não leva a lógica da argumentação longe o suficiente para que ela adentre os campos da dialética e da retórica” (2012, p. 78).

De modo geral podemos dizer que nesta primeira parte do capítulo 1 são tematizados: a racionalidade presente na prática comunicativa; a possibilidade para um agir comunicativo por meio de recursos reflexivos; uma teoria da argumentação e pretensões de validade na prática comunicativa.

As formas de argumentação são reconhecíveis em meio ao contexto de uma exteriorização de fala e tem de ser capaz de indicar um sistema de pretensão de validade manifestada por um falante diante de pelo menos um ouvinte. Uma pretensão de validade pode ser expressa em sentenças do tipo: é verdadeiro/é correto que “p” e pode representar um enunciado, a descrição de uma ação ou sentença vivencial. Um ouvinte pode aceitar (concordar), rejeitar (refutar) ou adiar temporariamente a pretensão de validade de um falante, mas deve fazê-lo com base em razões, expressas em um discernimento.