A FILOSOFIA DA DIFERENÇA DE GILLES DELEUZE: BREVES CONSIDERAÇÕES PARA SE PENSAR UMA FILOSOFIA INCLUSIVA

Trabalho Apresentado no IV CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DA UEMASUL, em maio de 2023

por Alexsandro M. Medeiros

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Dalila Araújo de Sousa

Amanda Mendes Soares

 

1. Introdução

A inclusão escolar tem se tornado um tema cada vez mais presente na realidade educacional brasileira perpassada pelo ideário inclusivista de grandes declarações de alcance internacional como a Declaração de Jomtien (1990) ou a Declaração de Salamanca (1994). Igualmente a nossa carta magna, a Constituição Federal de 1988, assegura a todos a igualdade de condições para o acesso e permanência nas escolas e estabelece como dever do Estado assumir o compromisso de promover o acesso das pessoas com necessidades especiais à educação e garantir a permanência delas no processo educacional.

E quanto ao conhecimento filosófico? Que contribuições ele pode nos oferecer para se pensar uma filosofia da educação que leve em consideração a necessidade de mudar as relações pedagógicas e sociais existentes nas escolas? Pensar uma tal filosofia da educação implica em transformar tais relações, não apenas no que diz respeito ao currículo e à avaliação, mas também em relação às atitudes, além de considerar relações sociais mais amplas como ponderam Bezerra e Araújo (2012), em uma perspectiva comprometida com a totalidade do gênero humano.

Neste trabalho, pretende-se abordar as contribuições das ideias do filósofo francês Gilles Deleuze, especificamente a partir do conceito presente em sua obra da filosofia da diferença e que nos ajude a “refletir mais detida e dialeticamente sobre os pressupostos políticos, educacionais e filosóficos que subjazem à proposta da escola inclusiva” (BEZERRA; ARAÚJO, 2012, p. 281). Como metodologia utiliza-se a pesquisa bibliográfica a partir da qual é possível perceber como os pressupostos filosóficos da filosofia da diferença têm implicações para se pensar as questões educacionais e inclusivas.

 

2. Pressupostos Filosóficos da Filosofia da Diferença

Em 1968 Deleuze publicou a obra Diferença e Repetição, resultado da sua tese de doutoramento na Sorbonne. Uma obra que incorpora e discute uma série de conhecimentos das mais diferentes áreas e “que é capaz de ordenar todo esse gigantesco arsenal de conhecimentos a favor de um sistema filosófico bem definido, porque se tratava, sobretudo, de construir e tornar operante uma filosofia da diferença” (FORNAZARI, 2005, p. 11).

Para traçar a gênese da filosofia da diferença, é preciso compreender a análise feita por Deleuze do pensamento de vários autores, como Platão, Aristóteles, Hume, Hegel, Nietzsche e Bergson. De filósofos como Platão, Aristóteles e Hegel, Deleuze não poupa críticas. Seja a concepção de um modelo ideal pensada pelo filósofo da Academia e, igualmente, o primado da identidade que Deleuze critica dos três filósofos citados: “a identidade das Ideias como fundamento, em Platão, a identidade dos gêneros e das espécies, em Aristóteles, e, ainda, a identidade da Essência que se reflete a si mesma, na dialética hegeliana” (FORNAZARI, 2005, p. 14).

A partir de tais críticas, é preciso destacar que a filosofia da diferença se apresenta antes de mais nada a partir de um estatuto ontológico e filosófico assinalando novos caminhos para o pensamento em torno do qual a diferença se transforma como algo constituinte do ser humano. É preciso repensar uma ontologia “libertando-a de sua interpretação tradicional que a condicionou a um papel subserviente à identidade – seja em Platão, Aristóteles e na maior parte da tradição metafísica. Deleuze afirma que é preciso fundar novas imagens do pensamento” (MIRANDA, 2010, p. 259).

Tal ontologia tem implicação direta sobre a noção de sujeito. Um sujeito que se torna um animal-devir, em constante transformação: “a interpretação deleuziana preconiza um afastamento da ideia de sujeito ou de Homem em prol de uma ideia de subjetividade que se condensa em um campo de forças que se instaura através de seus devires caóticos e intensos” (MIRANDA, 2010, p. 264). Para Deleuze (2009) não há seres estáticos, essencializados, mas todos se fazem em um processo de diferenciação de si mesmos.

Deleuze, um dos representantes da Filosofia da Diferença, construiu um pensamento nômade, livre de estruturas fixadas em transcendências que, supostamente, portam a verdade absoluta, indicando como os seres devem ser. O modo deleuzeano de entender a realidade fez com que o filósofo não apenas combatesse a primazia platônica e aristotélica, mas, inspirado pelas obras de Bergson, afirmasse a “diferença de natureza” (Deleuze, 1999), interna aos seres, mutante, que se difere a todo o momento (LANUTI; MANTOAN, 2018, p. 122).

  A filosofia deleuziana se opõe ao modelo platônico para considerar que todas as pessoas estão em constante transformação, que se fazem na sua própria diferença, e não como sujeitos perfeitos. Em Platão podemos pensar em um modelo de sujeito que deve ser semelhante a um perfil tido como ideal e a distinção entre “o puro e o impuro, a cópia bem feita e mal feita e, assim, reconhecer os bons pretendentes ao ícone criado, ao modelo idealizado que representasse a verdade já posta, transcendentalmente - a perfeição” (LANUTI; MANTOAN, 2018, p. 121).

A partir desse questionamento ontológico da metafísica tradicional a filosofia da diferença desemboca no campo da ética, no campo político, no campo social e até no campo educacional, como veremos agora.

 

3. A Filosofia da Diferença e suas Implicações Educacionais e Inclusivas

Inicialmente devemos considerar, como pondera Gallo (2016), que Deleuze não se ocupou diretamente com a questão da escola, todavia, a sua filosofia nos remete diretamente a questões vivenciadas no campo educacional. “Representar o ícone do aluno perfeito e determinar que todos os demais sejam pretendentes desse modelo tem a ver com o pensamento platônico, que negou a diferença e esteve alicerçado na busca pela semelhança [...] com base no ser idealizado” (LANUTI, 2019, p. 17).

O conceito de filosofia da diferença de Deleuze “nos permite contestar preceitos pedagógicos que negam o direito à diferença” (LANUTI; MANTOAN, 2018, p. 120) e, consequentemente, construir um modelo social e pedagógico inclusivo. A diferença então deve ser considerada como um elemento central do mundo, ressignificando olhares e práticas para o reconhecimento da diferença e da diversidade como uma marca da condição humana.

  “A ideia de uma sociedade inclusiva está pautada numa Filosofia que reconhece e valoriza a diversidade, como características intrínsecas à constituição de qualquer sociedade” (RODRIGUES, 2011, p. 12). Não importam as diferenças, ou que algumas pessoas tenham necessidades diferentes das outras, todos têm o direito de viver e conviver com outros seres humanos, de aprender (dentro dos limites, possibilidades e capacidades de cada um), de se socializar, sem discriminação e sem segregações odiosas.

Por isso, mesmo que estritamente falando Deleuze não tenha um pensamento sistematizado sobre a filosofia da educação e que exista apenas fragmentos e passagens dispersas sobre temas que envolvem o universo da educação, temos na filosofia da diferença motivos para se pensar uma filosofia da educação, uma educação como “puro devir, possibilitado pelo tipo de pensamento baseado na diferença proposto por Deleuze” (MARINHO, 2012, p. 245).

Para pensar uma filosofia da educação a partir da filosofia da diferença deleuziana torna-se necessário desterritorializar os conceitos dos discursos pedagógicos pautados no modelo clássico da filosofia e criar novos conceitos para os discursos educativos. Deleuze inverte o platonismo recusando

o primado de um original sobre a cópia [...] Não se trata de um mero remanejamento de ideias de um campo para outro, mas de um movimento de reterritorialização-desterritorialização, movimento autenticamente filosófico, e por isso uma filosofia da educação nesses moldes se justifica (MARINHO, 2012, p. 247).

 

4. Conclusões

Vimos como a filosofia da diferença do filósofo francês Gilles Deleuze se coloca em uma perspectiva que visa superar a concepção homogeneizadora de um modelo ontológico universal de perfeição ao qual todos devem buscar. E mesmo que o filósofo francês não tenha realizado um estudo sistemático sobre educação, vimos que “é possível encontrar em seus escritos, de forma dispersa, várias passagens sobre essa temática” (MARINHO, 2012, p. 248).

A partir de suas ideias, podemos então pensar temas relacionados à educação, notadamente aqui, de modo mais específico, como a filosofia da diferença se insere nesse contexto. Nessa perspectiva, podemos considerar que o processo de inclusão se encontra fundamentado em um campo filosófico no qual se deve reconhecer a diferença como marca dos indivíduos. É nesse aspecto que a filosofia da diferença deleuziana pode contribuir no campo da inclusão escolar.

Vimos como a filosofia da diferença se distancia da visão clássica propondo uma inversão do platonismo, rejeitando a ideia de identidade como parâmetro filosófico e resgatando a importância e a centralidade da diferença como estatuto ontológico. Por isso, uma filosofia da educação pensada a partir do contexto da filosofia da diferença não se pauta nos moldes da filosofia grega clássica. À filosofia da educação não cabe seguir os moldes clássicos do seu campo de saber, sendo necessário ressignificar suas práticas para o reconhecimento da diferença como uma marca da condição humana, abrindo amplas possibilidades para se pensar uma filosofia inclusiva.

Referências 

BEZERRA, Giovani Ferreira; ARAÚJO, Doracina Aparecida de Castro. Filosofia e Educação Inclusiva: reflexões críticas para a formação docente. Inter-Ação, Goiânia, v. 37, n. 2, p. 267-285, jul./dez. 2012. Acesso em: 30 nov. 2022.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2.ed.rev.atual. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 2009.

FORNAZARI, Sandro Kobol. O Esplendor do Ser: A Composição da Filosofia da Diferença em Gilles Deleuze (1952-86). 194f. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, 2005.

GALLO, S. Deleuze & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

LANUTI, Jose Eduardo de Oliveira Evangelista. Tangenciamentos entre a filosofia da diferença e o ensino de Matemática para todos. Educação Por Escrito, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 1-16, jul.-dez. 2019. Acesso em: 02 dez. 2022.

LANUTI, Jose Eduardo de Oliveira Evangelista; MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ressignificar o Ensino e a Aprendizagem a partir da Filosofia da Diferença. Polyphōnía, Revista de Educación Inclusiva, v. 2, n. 1, p. 119-129, 2018. Acesso em: 30 nov. 2022.

MARINHO, Cristiane Maria. A Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze na Filosofia da Educação no Brasil. 464 f. Relatório final (pós-doutorado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2012.

MIRANDA, Wandeilson Silva. A filosofia da diferença em Deleuze e Heidegger. Revista Ítaca, n. 15, p. 250-271, 2010. Acesso em: 02 dez. 2022.

RODRIGUES, Márcio Leandro Vieira. Abordagem Teórica e Empírica da Filosofia no Desenvolvimento Humano Mediante a Inclusão Social. Monografia (Especialização em Educação). 42 f. Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2011.