MORAL FECHADA E MORAL ABERTA

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em jul. 2016


Numa época em que o avanço e o êxito das investigações científicas ditas positivas pareciam tornar obsoletas as indagações filosóficas, Bergson exalta e inova a metafísica, ao mesmo tempo em que pretende ampliar o domínio da investigação psicológica antepondo ao eu superficial, a sondagem do eu profundo. O contraste entre o eu de superfície e o eu profundo marcam todo o pensamento do filósofo francês Henri Bergson. Bergson reconhece que a maioria dos homens vive apenas no eu de superfície, atravessando a existência sem jamais experimentar de forma consciente as energias que impulsionam toda a vida e existência. A estes dois estados de espíritos Bergson aponta dois tipos de comportamento moral: o fechado e o aberto.

A formação intelectual de Bergson deu-se numa época em que predominavam as teses materialistas, evolucionistas e deterministas o qual Bergson respondeu com uma concepção espiritualista de evolução se opondo a todos os que pretendiam reduzir o psíquico ao meramente cerebral. É em prosseguimento ao “positivismo espiritualista” de Jules Lachelier (1832-1918) e de Emile Boutrox (1845-1912) que se pode situar o pensamento bergsoniano.

Se n’ A evolução criadora Bergson pensou o desenvolvimento do impulso original da vida em termos metafísicos, em sua obra seguinte, As duas fontes da moral e da religião, ele se dedica a investigar a ação desse impulso vital nas criações humanas, ou seja, elabora uma proposta sobre como se desenvolveram as forças criadoras do homem na história e pensa também a evolução da vida do espírito em termos morais (BONADIO, 2013, p. 85).


Tal obra, As duas fontes da moral e da religião, é a peça chave para se compreender as questões morais relativas ao pensamento do filósofo francês que ora iremos expor neste artigo.

 

As Duas Fontes da Moral e da Religião

A obra As duas fontes da moral e da religião aborda aspectos da metafísica, da religião, da visão social e da antropologia bergsoniana que servem de fundamento para os conceitos de moral fechada e moral aberta elaborada pelo filósofo francês. Com efeito, os conceitos de moral fechada (infraintelectual) e moral aberta (supraintelectual) estão de alguma forma relacionados com a ideia de uma religião estática e uma religião dinâmica, além de duas formas de sociedade: fechada e aberta. Além disso, há pelo menos, duas espécies de alma, se assim podemos nos exprimir: a escravizada e a livre; e entre a alma fechada e a alma aberta, há aquela que se abre, expressando também o aspecto espiritual da filosofia bergsoniana. Desta forma, não é possível separar o pensamento ético de Bergson de suas concepções antropológico-metafísicas-religiosas.

Há duas espécies de moral como frisamos: fechada e aberta. A moral fechada consiste numa pressão exercida pela sociedade e as ações que lhe correspondem são levadas a cabo de modo automático, instintivamente. Só em casos excepcionais se trava uma luta entre o eu individual e o social. A moral fechada é impessoal e triplamente fechada: visa a conservação dos costumes sociais, faz coincidir quase inteiramente o individual com o social e é sempre função de um grupo limitado. A moral aberta não é moral social, mas humana e pessoal, e aparece encarnada na figura de santos e heróis. Não é fixa e nem consiste numa pressão, mas é essencialmente progressiva e criadora. É aberta no sentido de que abarca a vida inteira no amor, proporciona até mesmo um sentimento de liberdade e coincide com o próprio princípio da vida. Procede de uma emoção profunda que, do mesmo modo que o sentimento provocado pela música, carece de objeto. Na moral aberta, não se trata de coerção, mas de atração mais ou menos irresistível dos grandes homens.

Para Bergson as normas morais têm duas fontes: a pressão social e o impulso criador (amor). No primeiro caso, o indivíduo segue o caminho que encontra; conforma-se às regras dessa sociedade; procura se adequar a elas. É a moral da obrigação e do hábito. O que está na base da sociedade é o hábito de contrair hábitos. “[...] os hábitos são naturalmente adquiridos e em seu conjunto, como um todo unificado, pressionam o humano a obedecer as regras que visam à coesão da vida em sociedade, garantindo, assim, a sua preservação e a harmonia do todo social” (BONADIO, 2013, p. 85). E Silene Torres complementa: “[...] há uma conformação do indivíduo às obrigações impostas pela sociedade. As escolhas que esta lhe impõe, recebem dele um consentimento natural: ele não faz esforço [...] cumpre sem esforço o caminho que a sociedade traçou para sua vida diária” (2003, p. 20). Há uma disposição quase natural que nos faz adquirir certos hábitos sociais pois a sociedade e suas leis agem sobre nós como as leis naturais agem sobre um organismo “[...] aos quais obedecemos sem pensar. Na maioria de nossas ativi­dades cotidianas, obedecemos às exigências da sociedade, como se uma força, que Bergson chama ‘o todo da obrigação’, exercesse um peso sobre nós” (ZUNINO, 2013, p. 162). A diferença é que as leis naturais são impositivas e deterministas mas não atuam no espaço de “vontades livres”, por assim dizer. Os hábitos adquiridos exercem uma pressão sobre a nossa vontade mas podemos querer seguir livremente tais impulsos e pressões. Por analogia, a sociabilidade humana é compreendida sob os moldes da vida orgânica (CAEYMAEX, 2012).

Bergson toma como exemplo o estado infantil em que nós obedecemos nossos pais, não tanto por eles mesmos, mas pela sua situação (autoridade) em relação a nós, “com uma forma de penetração que não possuiria se tivesse vindo de outra parte” (BERGSON, 1978, p. 07). Assim também obedecemos às normas da sociedade.

Quando uma criança pergunta aos pais: “por que devo fazer isso?” obtém uma resposta categórica: “porque sim”; a criança pode até mudar de estratégia: “por que não posso ir brincar?”, mas a resposta continua categórica: “porque não”. Certamente, há uma “razão” mais complexa (uma cadeia de razões) que permite explicar racionalmente a resposta (justificá-la, na verdade), mas apenas esse “porque sim” ou “porque não” é suficiente para automatizar a obrigação, sobretudo perante a autoridade dos pais (ZUNINO, 2013, p. 162).

Não se trata, por certo, de criticar essa posição subalterna dos filhos em relação aos pais, afinal, “que não teria sido nossa infância se nos deixassem à solta! Teríamos vagueado de prazeres em prazeres” (BERGSON, 1978, p. 07). E nem tampouco de desprezar a importância do nosso dever para com a sociedade, mas de destacar que o nosso comportamento se molda às exigências e normas do grupo o qual fazemos parte. O exemplo da educação infantil “[...] ajuda a mostrar que os hábitos e ensinamentos que recebemos durante o processo de nossa educação, se dão em função da vida social” (ZENI, 2014, p. 45). A obrigação moral e a obrigação social têm, pois, a mesma origem.

Seria, pois, errôneo censurar uma moral puramente social por desprezar os deveres individuais [...] dado que a solidariedade social só existe a partir do momento em que um eu social se acrescenta em cada um de nós ao eu individual. Cultivar esse ‘eu social’ é o essencial de nossa obrigação para com a sociedade. Sem algo dessa sociedade em nós, ela não teria qualquer poder sobre nós (BERGSON, 1978, p. 12 e 13)


Há uma pressão social que nos obriga a seguir um determinado caminho, comparável à tendência de um pêndulo para retornar a posição vertical, como afirma o filósofo. Até podemos tentar subtrair-nos dessa pressão, mas continuamos a ser puxados por ela. “E o peso desta obrigação, segundo o filósofo, é mais forte que o de qualquer um dos hábitos individuais quando isolados. Ele considera que, entre a pressão da obrigação e a dos demais hábitos, a diferença é tão elevada que equivale a uma diferença de natureza” (ZENI, 2014, p. 47).

Contudo, essa pressão não anula a liberdade. Por isso Bergson afirma que a obrigação implica a liberdade, pois o ser humano não é apenas instinto, mas é também um ser inteligente, e por via da inteligência ele pode ceder a pressão ou resistir a ela. Liberdade e inteligência, neste caso, são dois modos constitutivos dos indivíduos em sociedade. A diferença entre as sociedades humanas e os organismos biológicos é que aquelas são compostas por seres predominantemente inteligentes e não predominantemente por instintos, tal como nas organizações encontradas nas abelhas e formigas. “Sem o trabalho intelectual nossa tendência à obediência passaria despercebida como acontece com as abelhas e as formigas que cumprem o seu dever trabalhando instintivamente para a garantia do equilíbrio de suas sociedades” (BONADIO, 2013, p. 88). Mas no homem há a inteligência, que coloca para si a possibilidade da necessidade de obedecer, ou de resistir ao desejo que perturbaria a ordem e, por isso, a obediência se torna lei e a pressão social pela ordem nos inclina ao cumprimento do dever.

Por vias racionais se chega à obrigação ou ao dever, mas disto não se segue que a obrigação tenha sido de ordem racional. O dever, a obrigação e a moral procedem de uma exigência social e não da inteligência ou da racionalidade (CAEYMAEX, 2012), mas é a inteligência ou razão que dá um significado consciente à obrigação, e que

[...] é sempre vinculada à função reguladora, ordenadora e mantenedora da “coerência lógica” entre as “regras ou máximas obrigatórias”. A inteligência pesa as razões, “comparando as máximas, remontando aos princípios”, colocando “coerência lógica numa conduta submissa, por definição, às exigências sociais”. (TORRES, 2003, p. 22, nota 5).


Contrariando o imperativo categórico kantiano,

[...] Bergson afirma que dever, obrigação e moral não diz respeito a uma razão prática, sendo o imperativo categórico kantiano insuficiente para fundamentar a experiência moral em toda a sua profundidade e multiplicidade, uma vez que a ordem moral depende, antes, da ordem social que se apresenta em diferentes formas, em diversas sensibilidades sociais (BONADIO, 2013, p. 89).


Tiago Zeni reforça a ideia da diferença entre a posição kantiana e a do filósofo francês, uma vez que para este “[...] o motivo da obediência não se dá originalmente por uma determinação da razão, como é caso do imperativo categórico, mas através de um hábito” (2014, p. 45 – ver também p. 55-61).

Além do mais, Bergson afirma que “nos momentos de tentação, ninguém jamais sacrificaria seu interesse, sua paixão, sua vaidade por pura necessidade de coerência lógica” (BERGSON, p. 19). Nenhuma lógica tem força suficiente diante de uma emoção ou do hábito e por isso a lógica pode até servir de base para a formulação de uma ética, mas não é suficiente para lhe sustentar e fornecer uma base segura (PHILONENKO, 1994). Como diria Pascal, o coração tem razões, que a própria razão desconhece. Emoção e Razão nem sempre parecem caminhar juntas. O que para uma pessoa pode ser um ato de extrema irracionalidade, para uma outra, em grande estado de desequilíbrio emocional, ainda que com os mesmos pressupostos do primeiro, nenhum raciocínio ou argumento, por mais coerente ou racional que possa parecer, o impede de tomar atitudes que, se tocado depois por uma espécie de arrependimento, é causa de grande remorso.

Mas se a moral da obrigação é própria de uma sociedade fechada, Bergson postula uma outra moral, a moral completa que é a moral da sociedade aberta e que tem por fundamento uma emoção original e continua o esforço gerador da vida. Uma moral aberta “[...] que se destina à humanidade inteira e não pertence apenas a um grupo social específico, é o outro polo que define, de acordo com o autor, uma fonte segunda para a moral que não aquela fundada na estrita obrigação e que forma as sociedades fechadas” (BONADIO, 2013, p. 86).

O filósofo constatou que, para além dos hábitos morais próprios da tendência fechada das sociedades – que levam à coesão social e à guerra –, se apresentam ainda, nas mesmas sociedades, hábitos que apontam para uma finalidade mais ampla. Tais hábitos apresentam uma perspectiva mais universal do que aqueles outros voltados naturalmente para a coesão social (ZENI, 2014, p. 68).


De um lado temos a moral fechada que se caracteriza por fórmulas impessoais, pela aceitação/obrigação de uma lei e por isso tende à conservação. “Trata-se de um movimento circular que se produz através do hábito como uma imitação da repetição do instinto [...] comparável ao funciona­mento normal da vida (em células de tecidos ou nas sociedades de insetos)” (ZUNINO, 2013, p. 164). Do outro temos uma moral aberta que está em movimento e tende ao progresso. É a moral dos grandes reformadores e revolucionários como os iluminados do Budismo ou os grandes místicos cristãos. “Essa ‘outra moral’ encarna nesses ‘homens excepcionais’: homens de gênio (artistas, cientistas); filósofos gregos; iluminados (budistas); Santos do cristianismo” (ZUNINO, 2013, p. 164). É a moral dos heróis morais, como Sócrates, e de todos aqueles que seguem a inspiração que os induz a segui-los, que vão além dos valores do grupo ou da sociedade a que pertencem.

Desde a eternidade surgiram homens excepcionais nos quais se encarnava essa moral. Antes dos santos do cristianismo, a humanidade conheceu os sábios da Grécia, os profetas de Israel, os iluminados do budismo e outros mais. A eles é que sempre se referiu para ter essa moralidade completa, que seria preferível chamar de absoluta [...] Ao passo que a obrigação natural é pressão ou empurrão, na moral completa e perfeita há um chamado (BERGSON, 1978, p. 28 e 29).


A moral da sociedade fechada é estática e induz ao acomodamento; a da sociedade aberta é dinâmica e aspira ao progresso. Na primeira a sociedade visa apenas a se conservar. “Na moral da aspiração, ao contrário, está implicitamente contido o sentimento de um progresso” (BERGSON, 1978, p. 43). A moral fechada é conformista e apenas repete hábitos adquiridos e transformados em tabus. A segunda recorre à profundidade da pessoa. O fundamento da moral aberta é a pessoa criadora e o seu fim é a humanidade; e só esta moral é capaz de romper com os esquemas fixos das sociedades fechadas. A moral da obrigação se reduz a fórmulas impessoais e é apenas social: o indivíduo tem obrigações para com a sociedade. A moral completa encarna-se numa personalidade que a vive e a converte como exemplo e é não apenas social, mas humana:

ao falar aqui do amor da humanidade, caracterizaríamos sem dúvida essa moral. E, no entanto não exprimiríamos sua essência, porque o amor à humanidade não é um móvel que baste a si mesmo e que atue diretamente. Os educadores da mocidade sabem muito bem que não se triunfa do egoísmo recomendando-se o altruísmo (BERGSON, 1978, p. 30).


A grande lição de Bergson é que nenhum princípio formal ou um conceito jamais impulsionaram a vontade e que é necessário uma emoção. Esta emoção abre a alma a uma corrente vital, que é o impulso próprio da vida. Assim, a moral aberta emana de uma emoção, como veremos mais adiante, que é uma tomada de contato com o próprio esforço criador da vida. “Essa nova moral é o resultado de um impulso, de uma emoção criadora própria ao movimento da vida e que leva espontaneamente o homem a comunicar novos valores que redirecionem a humanidade” (BONADIO, 2013, p. 86).

Da moral fechada à moral aberta 

A moral aberta, como vimos, é a moral dos grandes missionários da história. A moral fechada é a moral da conformação às normas e regras estabelecidas socialmente. Existe alguma possibilidade de passar de uma moral à outra? Como um indivíduo, que aprende a viver de acordo com as normas sociais pode sair de uma moral à outra? É preciso compreender que, para Bergson, entre uma “alma fechada” e uma “alma aberta”, existe aquela que se abre: “entre o estático e o dinâmico observa-se em moral uma transição” (BERGSON, 1978, p. 52). O objetivo de toda alma é compreender e viver a expressão da moral completa: a moral do evangelho da boa nova, da iluminação budista, da sabedoria socrática. A moral do evangelho é essencialmente a da alma aberta: “ouvistes o que foi dito... Eu porém vos digo”. De um lado o fechado, do outro o aberto. E quem ousaria classificar Sócrates entre as almas fechadas?” (BERGSON, 1978, p. 52).

A moral fechada opera naturalmente, quase como um instinto. E todos aprendemos a viver de acordo com a moral fechada. A moral aberta por sua vez deve ser adquirida e exige esforço: o esforço de uma alma que se abre a essência da vida, ao élan vital (força da vida). Que pode ser praticada tomando para si um modelo de vida a ser seguido ou através de um chamamento, de uma emoção mística que se exprime à maneira da paixão amorosa. A voz demoníaca de Sócrates não parece outra coisa, senão um chamamento, um chamamento para uma missão que é de ordem religiosa, moral e mística. “Não nos parece duvidoso que uma emoção nova esteja na origem das grandes criações da arte, da ciência e da civilização em geral. Não apenas porque a emoção é um estimulante, mas porque incita a inteligência a empreender e a vontade a perseverar” (BERGSON, 1978, p. 36). Os homens excepcionais são aqueles que se abriram a esse energia criadora, mística, base fundamental de toda vida.

A diferença entre a emoção e a obrigação (moral) é que a ação decorrente da emoção não encontra resistência. Assim como a obrigação, a emoção também impõe alguma coisa, mas ela é consentida [...] Ora, como agimos quando seguimos uma emoção? Sem resistir: “Se a atmosfera da emoção está lá, se eu a respirei, se a emoção me contagia, eu agirei de acordo com ela, serei levado por ela”. Não se trata mais de coerção ou necessidade, mas sim de uma “inclinação à qual não vou querer me resistir”. (ZUNINO, 2013, p. 165-166).


Na moral aberta a pressão social é substituída por uma atração emocional. Os místicos que experimentaram essa emoção originária procuraram traduzi-la em representações mais ou menos acessíveis, de acordo com o grau de abertura em que uma alma se encontra e que, por isso, é mais ou menos capaz de sentir essa emoção e ser atraído por ela. Uma alma que se abre deve se esforçar para sentir essa emoção e ser atraído por ela, ao passo que o místico é aquele que abriu sua alma e rompeu com toda pressão social que encerra uma sociedade fechada. A pessoa que quiser se aproximar desta fonte deve se esforçar para tal, e para isso ela dispõe de numerosos exemplos: de tempos em tempos aparecem estes grandes homens, missionários, gênios, artistas, intelectuais, santos “que ampliaram os limites da inteligência; o ímpeto vital se manifesta nessas almas privilegiadas (místicos) que visam a humanidade em geral, ao invés de permanecerem nos limites do grupo” (ZUNINO, 2013, p. 167). O testemunho dos vários místicos e heróis do passado revelam que é possível alcançar a fonte profunda da moral aberta. Seus exemplos são notáveis e permite-nos pensar que já houve seres humanos que encontraram esta fonte. E mais do que conhecer seus exemplos e segui-los, é necessário sentir a mesma emoção originária, no todo ou em parte, cuja experiência tão profunda é capaz de transformar a subjetividade e a partir de então, e só então

[...] a prática dos novos hábitos advindos dos conteúdos da fonte da moral aberta poderá ser traduzida em máximas e representada através de símbolos da linguagem que facilitarão a comunicação. Porém, ao serem passados para a linguagem os hábitos perderão um pouco do seu brilho original, posto que não estarão mais diretamente enraizados no elã original que os fez surgir. Dessa forma, para que se mantenha viva a força motivadora dos hábitos oriundos daquela fonte, um esforço pessoal pela apreensão da mística se faz preciso, a fim de que se possa revigorar, nas sociedades, as bases que dão vida à moral aberta (ZENI, 2014, p. 73).


Tiago Zeni (2014) acentua ainda que a passagem de uma moral a outra não pode se dar de forma natural ou progressiva, tão somente partindo da observação. Para chegar ao amor à humanidade é preciso dar um salto, um salto para além da tendência natural do instinto, e que só a experiência mística pode proporcionar. E acrescenta que: “De acordo com o filósofo [Bergson], o lugar onde se poderia encontrar a fonte desta outra moralidade seria não mais na superfície do espírito humano [...] mas nas profundezas desse mesmo espírito” (2014, p. 71).

Moral, Emoção e Mística 

Para Bergson, mais até do que a razão, a emoção é a origem das grandes criações humanas, desde a arte até a literatura e a ciência. É a emoção que estimula e incita a inteligência e a vontade humana. A obra de gênio tem origem, via de regra, de uma emoção única no seu gênero. Na origem de toda criação há uma energia criadora, impulso fundamental que, em última instância, culmina no fenômeno do misticismo. Por isso a emoção criadora que serve de base para a moral aberta é a origem também da metafísica, do misticismo, da religiosidade em sua aspiração mais profunda: “moral e metafísica são originárias de uma mesma emoção. A moral exprime em termos de vontade o que a metafísica exprime em termos de inteligência” (ZENI, 2014, p. 77). Uma emoção profunda vivida no estado místico direciona um chamado para valores mais humanos, universais, que conclama o eu profundo a estabelecer um vínculo com toda a humanidade em um sentimento de amor. “O misticismo é uma tomada de contato com o esforço criador que a vida manifesta. Este esforço é de Deus, se não o Deus mesmo” (BERGSON, 1978, p. 182). O amor do místico pela humanidade é o próprio amor de Deus: é um amor que continua a obra da criação divina.

aqui se fala de uma inclinação à abertura, de uma emoção que põe a alma de quem ama em coincidência com o élan criador da vida, em contato com uma ação da sensibilidade que ultrapassa a obrigação pura. Por isso, o apelo do místico ou seu chamado à abertura é inevitável: há a exigência de fazer jus a um dever, mas sem o constrangimento que este implica, pois é um movimento do afeto que toma o ser, atravessando sua interioridade que espontaneamente se abre a esse movimento (BONADIO, 2013, p. 92).


A experiência mística tem a mesma origem que direciona um indivíduo à moral aberta: um impulso criador de uma emoção que é um reencontro com a totalidade do eu, que põe a alma em movimento em um anseio gerador de pensamentos, sentimentos, emoções, criação. Uma emoção que amplia a percepção do eu superficial e se dirige diretamente ao eu profundo.  Essa emoção desencadeia a intuição, a experiência mística, tanto quando “está na origem da moral aberta, pois é impulso para a concepção de um novo valor que não encontra expressão na moral constituída e, ao mesmo tempo pode levar ao conhecimento profundo da realidade” (BONADIO, 2013, p. 93). E acrescenta Bonadio:

O místico ganha importância para Bergson, pois pode servir de modelo a outros homens, comunicando uma nova moral que influenciaria os destinos da humanidade ao se imiscuir nas regras já determinadas e estanques da sociedade, reacendendo a brasa da criação para novas atitudes morais que visariam à humanidade inteira num impulso de amor. A possibilidade de uma moral aberta induz ao estado de alma que contradita as determinações naturais e impulsiona o homem a dar prosseguimento no élan criador do qual ele mesmo é fruto (2013, p. 98).


A emoção sentida pelo místico o impulsiona a comunicar essa emoção aos demais. Uma emoção que o faz entrar em contato íntimo e direto com a fonte originária da vida, cujo impulso direciona para uma moral aberta, e não fechada nos limites estreitos estabelecidos pelas normas sociais. Percebido desta forma, o élan vital reencontra sua força criativa, adquire outra expressão e, ao invés de se manifestar em formas estáticas de moral ou religião, adquire formas dinâmicas que inclinam a humanidade e constitui uma marcha para o progresso. Os homens elevam-se muito acima dos padrões estáticos da moral e da religião fechadas, adquirindo a liberdade plena em sociedades abertas, quando reconquistam, através da intuição mística, seu ímpeto vital original (BOCHENSKY, 1968).

Considerações Finais 

A obra As duas fontes da moral e da religião, conhecida no meio acadêmico e filosófico, talvez ainda não o seja tanto do público comum. A obra aborda aspectos filosóficos que exigem um esforço intelectual de compreensão de temas como a metafísica, a religião, a vida social, a antropologia filosófica. Mas é inegável que a obra traz um novo horizonte, em se tratando de temas como a ética e a moral. Não mais, ou apenas, a moral intelectual de bases racionais que orientam o agir de acordo com um dever, um imperativo categórico, uma imposição lógica. Mas uma moral supraintelectual, que encontra nas profundezas da psyché humana sua mais alta aspiração. Uma moral que procede de uma emoção profunda, que produz um efeito no espírito semelhante àquele provocado por uma música e que eleva os nossos pensamentos acima das esferas terrenas. Esta é a moral aberta, que tem por fundamento uma emoção original e continua o esforço gerador da vida. E nem todos puderam experimentar, ainda, essa emoção originária.

A maioria das pessoas, sobretudo aquelas que vivem na superfície da existência, sem procurar mergulhar a fundo em sua psyché, não estão desprovidos de um senso ou dever moral. Mas esta moral de superfície é uma moral fechada, que conforma-se às regras dessa sociedade e se torna um agir por hábito, quase automático e instintivo, semelhante ao modo de vida das abelhas e formigas. Homens e mulheres apenas obedecem e se conformam as regras que visam à coesão da vida em sociedade, garantindo, assim, a sua preservação e a harmonia do todo social. As escolhas que a sociedade impõe recebem um consentimento quase natural: não é necessário fazer nenhum esforço, basta seguir o caminho que a sociedade traçou para sua vida diária. É uma disposição que nos faz adquirir certos hábitos sociais com a diferença de que as leis naturais são impositivas e deterministas mas não atuam no espaço de vontades livres e da inteligência humana. Por isso, mesmo a moral fechada, não anula a liberdade e, por via da inteligência, homens e mulheres podem ou não ceder a pressão imposta pela sociedade.

Mas se por vias racionais se pode chegar à obrigação ou ao dever, ela não é suficiente para explicar o comportamento moral de certos indivíduos excepcionais e o imperativo categórico kantiano é insuficiente para fundamentar a experiência moral em toda a sua profundidade pois, nos momentos de tentação, ninguém jamais sacrificaria seu interesse, sua paixão, sua vaidade por pura necessidade de coerência lógica. Nenhuma coerência lógica tem força suficiente diante de uma emoção ou do hábito. Uma das grandes lições do filósofo francês é que um princípio formal ou um conceito lógico não são suficientes para explicar as ações morais dos indivíduos.

Os indivíduos agem por impulso, são movidos por suas emoções, sentimentos, paixões, e é de uma emoção profunda que brota o mais sublime dos sentimentos humanos que serve de base a toda ação moral: o amor. A moral aberta é o resultado de um impulso, de uma emoção criadora própria ao movimento da vida. Por isso, para Bergson, mais até do que a razão, a emoção é a origem das grandes criações humanas, incluindo aí o agir moral. Uma emoção que põe a alma em contato com o élan criador da vida, que amplia sua percepção, que põe a alma em movimento e a impulsiona a agir num ato de amor, influenciando o destino da humanidade e que faz com que os homens se elevem acima dos padrões estáticos da moral e da sociedade fechada.

Referências 

BERGSON. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. Versão em francês disponível em: Les classiques des sciences sociales.

BOCHENSKY. A Filosofia Contemporânea Ocidental. São Paulo: Ed. Herder, 1968.

BONADIO, Gilberto Bettini. Moral: vida e emoção. Kinesis, vol. 5, n. 10, p. 84-100, dez. 2013. Acessado em 12/06/2016.

CAEYMAEX, Florence. La societé sortie des mains de la nature. Nature et biologie dans Les Deux Sources. In: Annales Bergsoniennes V, Bergson et la politique: de Jaures à aujourd'hui. Paris: PUF, 2012, p. 311-333. Acessado em 11/06/2016.

PHILONENKO, Alexis. Bergson ou la philosophie comme science rigoureuse. Paris: Le Cerf, 1994.

TORRES, Silene. Obrigação, Inteligência e Liberdade: Bergson e o fundamento da moral. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.15 n.16, p. 19-23, jan./jun. 2003. Acessado em 09/06/2016.

VALÉRY, Paul. Discours sur Bergson. Discours prononcé à l’Académie française le 9 janvier 1941, In : Œuvres I, Nrf, Gallimard, 1957, 1857 pages, pp. 883-886. Une édition électronique réalisée dans le cadre de la collection: Les classiques des sciences sociales.

ZUNINO, Pablo E. A. O filósofo e o místico: da sociedade fechada à ruptura moral. Atualidade Teológica, Ano XVII, nº 43, p. 157-170, jan./abr. 2013. Acessado em 11/06/2016.